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Pag. | |
A mãe | 3 |
O ouro | 12 |
Doçura e bondade | 13 |
O malmequer | 14 |
Não quero | 20 |
Piloto | 21 |
O rico e o pobre | 23 |
Como um camponez aprendeu o Padre Nosso | 26 |
O talisman | 28 |
A alma | 30 |
Alberto | 31 |
A canção da cerejeira | 33 |
Os gigantes da montanha e os anões da planície | 35 |
A creança, o anjo e flôr | 37 |
Presente por presente | 41 |
O pinheiro ambicioso | 44 |
Perfeição das obras de Deus | 46 |
João e os seus camaradas | 52 |
O rabequista | 60 |
Os pecegos | 62 |
A urna das lagrimas | 64 |
Reconhecimento e ingratidão | 65 |
O fato novo do sultão | 68 |
Boa sentença | 74 |
Os animaes agradecidos | 76 |
O ermitão | 83 |
Carlos Magno e o abade de S. Gall | 85 |
A boneca | 88 |
Inconveniente de riqueza | 99 |
Querer é poder | 102 |
Qual será rei? | 104 |
Os três véos de Maria | 106 |
Os pequenos no bosque | 107 |
O chapellinho encarnado | 109 |
Os cinco sonhos | 113 |
A egreja do rei | 115 |
O valente soldado de chumbo | 117 |
João Pateta | 123 |
Branca de Neve | 126 |
A rapariguinha e os phosphoros | 134 |
O primeiro peccado de Margarida | 138 |
Um nome inscripto no céo | 141 |
O linho | 142 |
Produced by / Produzido por Manuela Alves (Spelling modernization of the
original version, already available at Project Gutenberg. / Actualização
ortográfica da versão original, já disponível no Project Gutenberg.)
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Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do
berço do seu filho, com medo que lhe morresse. A criancinha pálida
tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, e às vezes tão
profundamente, que parecia gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima
do que o pequenino moribundo.
Nisto bateram à porta, e
entrou um pobre homem muito velho, embuçado numa manta de arrieiro.
Era no Inverno. Lá fora estava tudo coberto de neve e de gelo, e o
vento cortava como uma navalha.
O pobre homem tremia de frio; a
criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se
a pôr ao lume uma caneca com cerveja. O velho começou a
embalar a criança, e a mãe, pegando numa cadeira, sentou-se
ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez
com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e disse para
o velho:
Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar! não
é verdade?―
[4]E o
velho, que era a Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em
ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão,
e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada
com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três
dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um
minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
―Que
é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar
alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora,
roubando-lhe a criança.
A pobre mãe saiu
precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no
meio da neve, vestida de luto. «A Morte entrou-te em casa, disse-lhe
ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento,
e o que ela furta nunca o torna a entregar.»
―Por
onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de Deus!»
―Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de
preto. Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as canções
que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa.
Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
―Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe.
Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.―
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas,
começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas
foram mais do que as palavras.
[5]No
fim disse-lhe a Noite: «Toma à direita, pela floresta escura
de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.»
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o
caminho, e não sabia que direcção havia de seguir.
Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de
cujos ramos pendia a neve cristalizada.
―Não viste a Morte que levava o meu filho?»
perguntou-lhe a mãe.
―Vi, respondeu o matagal, mas
não te ensino o caminho, senão com a condição
de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.»
E a mãe
estreitou o matagal contra o coração; os espinhos
dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de
folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno
frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio duma mãe
angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir.
Foi andando, andando, até que chegou à margem dum grande
lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava
suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente
profundo para o passar a vau. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era
necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor,
atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do
lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão,
faria talvez um milagre.
[6]―Não!
não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e
entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das
minhas águas, e os teus olhos são dum brilho mais suave do
que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres,
arranca-os das órbitas à força de chorar, e
levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa
estufa é a habitação da Morte; e as flores e as
árvores que estão lá dentro, é ela quem as
cultiva; cada flor e cada árvore é a vida duma criatura
humana.»
―Oh! o que não darei eu, para
reaver o meu filho!» disse a mãe. E apesar de ter já
chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e
os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do
lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não
teve no mundo uma rainha.
O lago então ergueu-a, e com
um movimento de ondulação depositou-a na outra margem, aonde
havia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de
comprido. De longe não se sabia se era uma construção
artística ou uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe
não podia ver nada; tinha dado os seus olhos.
―Como
hei-de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho!» bradou ela
desesperada.
―A Morte ainda não chegou,
respondeu-lhe uma boa velha, que andava dum lado para o outro,
inspeccionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste tu aqui parar?
Quem te ensinou o caminho?»
―Deus auxiliou-me,
respondeu ela. Deus é misericordioso. [7]Compadece-te
de mim, e diz-me onde está o meu filho.»
―Eu
não o conheço, e tu és cega, disse a velha. Há
aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a
Morte não tarda aí para as tirar da estufa. Deves saber, que
toda a criatura humana tem neste sítio uma árvore ou uma
flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas
como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração.
Guia-te por isto, e talvez reconheças as pulsações do
coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que
tens ainda de fazer?»
―Já não tenho
nada que te dar, disse a pobre mãe. Mas irei até ao fim do
mundo buscar o que tu quiseres.―«Fora daqui não preciso
de nada, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu
sabes que são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus
cabelos brancos.»―Não pedes mais nada do que isso?
disse a mãe. Aí os tens, dou-tos de boa vontade.»
E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido
outrora o seu orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e
inteiramente brancos da velha.
Esta levou-a pela mão
à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação
maravilhosa. Viam-se debaixo de campânulas de cristal jacintos mimosíssimos
ao lado de peónias inchadas e ordinárias. Havia também
plantas aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em
cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas.
[8]Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas,
carvalhos e plátanos frondosos; depois num outro sítio
isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas
humildes que representavam o género de utilidade das pessoas que
elas simbolizavam.
Havia ainda grandes arbustos em vasos
demasiadamente estreitos, que pareciam rebentar; mas viam-se também
florzitas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra,
circundadas de musgo, tratadas com esmero delicadíssimo. Tudo isso
representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a
China até à Groenlândia.
A velha queria
mostrar-lhe todas estas coisas misteriosas, mas a mãe impacientada
pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam as plantas
pequeninas; tacteava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do coração,
e, depois de ter tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações
do coração do seu filho.
―É ele!»
exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que,
pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.
―Não
lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier,
que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a
de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte terá
medo, porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem
o seu consentimento.»
Nisto sentiu-se um vento glacial, e
a mãe adivinhou que era a Morte, que se aproximava.
[9]―Como é que deste com o
caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o
conseguiste?―«Sou mãe» respondeu ela.
E a
Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.
Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as mãos,
tendo o cuidado de não ferir uma só das pequeninas pétalas.
Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair
inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos
enregelados do Inverno.
―Não podes nada comigo!»
disse a Morte.―Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a
mãe.»―«É verdade, mas eu não faço
senão aquilo que ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas
plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar,
transplanto-as para outros jardins, um dos quais é o grande jardim
do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém
sabe o que se lá passa.»
―Misericórdia!
misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o
meu filho, agora que acabo de o encontrar!» Suplicava e gemia. A
Morte conservava-se impassível; agarrou então
instantaneamente em duas flores lindíssimas e disse à Morte:
«Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não
só esta, mas todas as flores que estão aqui!
―Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes
que és desgraçada, e querias ir partir o coração
de outra mãe!―«Outra mãe!» disse a pobre
mulher, largando as flores imediatamente. [10]―Toma,
aqui tens os teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente
que os tirei do lago. Não sabia que eram teus. Mete-os nas órbitas,
e olha para o fundo deste poço; vê o que ias destruir, se
arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da água,
como numa miragem, a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a
que teria tido o teu filho, se porventura vivesse.»
Debruçou-se
no poço, e viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros
risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis de miséria,
de angústias e de desolação.
―Nisto
que eu vejo, disse a mãe aflitíssima, não distingo
qual era a sorte que Deus destinava ao meu filho.»
―Não posso dizer-to, respondeu a Morte. Mas repito-te, em
tudo isto que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu
filho.»
A mãe desvairada, lançou-se de
joelhos exclamando: Suplico-te, diz-me: era a sorte infeliz a que lhe
estava reservada? Não é verdade! Fala! Não me
respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele
sofrer desgraças tão horríveis. O meu querido filho!
Quero-lho mais que à minha vida. As angústias que sejam para
mim. Leva-o para o reino dos céus. Esquece as minhas lágrimas,
as minhas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que disse.»
―Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te
entregue o teu filho ou que o leve para a região desconhecida de
que não posso falar-te!» Então a mãe alucinada,
convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos e dirigindo-se
[11]a Deus exclamou: «Não me ouças,
Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra a tua
vontade que é sempre justa! Não me atendas meu Deus!»
E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua
agonia dilacerante.
E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro,
e foi transplantá-lo no jardim do paraíso.
[12]
Era uma vez um rei, que, tendo achado no seu reino algumas
minas de ouro, empregou a maior parte dos vassalos a extrair o ouro dessas
minas; e o resultado foi que as terras ficaram por cultivar, e que houve
uma grande fome no país.
Mas a rainha, que era prudente
e que amava o povo, mandou fabricar em segredo frangos, pombos, galinhas e
outras iguarias todas de ouro fino; e quando o rei quis jantar mandou-lhe
servir essas iguarias de ouro, com que ele ficou todo satisfeito, porque não
compreendeu ao princípio qual era o sentido da rainha; mas, vendo
que não lhe traziam mais nada de comer, começou a zangar-se.
Pediu-lhe então a rainha, que visse bem que o ouro não era
alimento, e que seria melhor empregar os seus vassalos em cultivar a
terra, que nunca se cansa de produzir, do que trazê-los nas minas
à busca do ouro, que não mata a fome nem a sede, e que não
tem outro valor além da estimação que lhe é
dada pelos homens, estimação que havia de converter-se em
desprezo, logo que ouro aparecesse em abundância.
A
rainha tinha juízo.
[13]
Há entre vós, meus filhos, índoles
violentas, que não sabem dominar-se, e que são arrastadas
pelas primeiras impressões. É uma péssima disposição,
que é necessário corrigir; dá lugar a disputas, e a
que se cometam acções, cujo arrependimento chega
demasiadamente tarde. Citar-vos-ei dois exemplos de que fui testemunha.
Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha
diante dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.
―Oh!
senhor! exclamou o outro, mal sabe a pena que vai ter! Bateu num cego!»
Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns
camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a bater no
burro, para o fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e,
mostrando-lhes a sua perna aleijada, disse-lhes: «Se soubésseis
que eu era coxo, não teríeis sido tão covardes.»
Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar
uma palavra.
Que vos parece estas duas lições?
Estou convencido que aproveitaram a quem as recebeu.
[14]
Ouvi com atenção esta pequenina história!
No campo, junto da estrada real, havia uma casinha muito bonita, que
deveis ter visto muitas vezes. Há na frente um jardinzinho com
flores, rodeado por uma sebe verdejante. Ali perto nas bordas do valado,
no meio da erva espessa, floria um pequenino malmequer. Desabrochava a
olhos vistos, graças ao sol, que repartia igualmente a sua luz
tanto por ele como pelas grandes e maravilhosas flores do jardim. Uma bela
manhã, já inteiramente aberto, com as folhinhas alvas e
brilhantes, parecia um sol em miniatura circundado dos seus raios. Pouco
se lhe dava que o vissem no meio da erva e não fizessem caso dele,
pobre florinha insignificante. Vivia satisfeito, aspirando deliciosamente
o calor do sol, e ouvindo o canto da cotovia, que se perdia nos ares.
Nesse dia o pequeno malmequer, apesar de ser numa segunda-feira,
sentia-se tão feliz como se fosse um domingo. Enquanto as crianças
sentadas nos bancos da escola estudavam a lição, ele,
sentado na haste verdejante, estudava na formosura da natureza a bondade
de Deus, e tudo o que [15]sentia
misteriosamente, em silêncio, julgava ouvi-lo traduzido com admirável
nitidez nas canções alegres da cotovia. Por isso pôs-se
a olhar com uma espécie de respeito, mas sem inveja, para essa
avezinha feliz que cantava e voava.
«Eu vejo e oiço,
pensou o malmequer; o sol aquece-me e o vento acaricia-me. Oh! não
tenho razão de me queixar.»
Dentro da sebe havia
muitas flores altivas, aristocráticas; quanto menos aroma tinham,
mais orgulhosas se aprumavam. As dálias inchavam-se para parecerem
maiores do que as rosas; mas não é o tamanho que faz a rosa.
As tulipas brilhavam pela beleza das suas cores, pavoneando-se
pretensiosamente. Não se dignavam de lançar um olhar para o
pequeno malmequer, enquanto que o pobrezinho admirava-as, exclamando:
«Como são ricas e bonitas! A cotovia irá certamente
visitá-las. Graças a Deus, poderei assistir a este belo
espectáculo.» E no mesmo instante a cotovia dirigiu o seu
voo, não para as dálias e tulipas, mas para a relva, junto
do pobre malmequer, que morto de alegria não sabia o que havia de
pensar.
O passarinho pôs-se a saltitar à roda
dele, cantando: «Como a erva é macia! oh! que encantadora
florinha, com um coração de oiro, vestida de prata!»
Não se pode fazer ideia da felicidade do malmequer. A ave
acariciou-o com o bico, cantou outra vez diante dele, e perdeu-se depois
no azul do firmamento. Durante mais de um quarto de hora não pôde
o malmequer reprimir a sua comoção. Meio envergonhado, mas
todo contente, olhou [16]para as outras
flores do jardim, que, como testemunhas da honra que acaba de receber,
deviam avaliar muito bem a sua alegria natural; mas as tulipas estavam
cada vez mais aprumadas; a sua haste vermelha e pontiaguda manifestava o
despeito. As dálias tinham a cabeça toda inchada. Se elas
pudessem falar, teriam dito coisas bem desagradáveis ao pobre
malmequer. A florinha viu isto, e ficou triste.
Passados alguns
momentos, entrou no jardim uma rapariguita com uma grande faca afiada e
brilhante, aproximou-se das tulipas, e cortou-as uma a uma.
«Que desgraça! disse o malmequer suspirando; é horrível;
foram-se todas.»
E enquanto a rapariguinha levava as
tulipas, o malmequer alegrara-se por ser simplesmente uma pequenina flor
no meio da erva. Apreciando reconhecido a bondade de Deus, cerrou ao cair
da tarde as suas folhas, adormeceu, e sonhou toda a noite com o sol e com
a cotovia.
No dia seguinte de manhã, assim que o
malmequer abriu as suas folhas ao ar e à luz, reconheceu a voz do
passarinho, mas o seu canto era triste, muitíssimo triste. A pobre
cotovia tinha boas razões para se afligir: haviam-na agarrado e
metido numa gaiola, suspensa entre uma janela aberta. Cantava a alegria da
liberdade, a beleza dos campos e as suas antigas viagens através do
espaço ilimitado.
O pequenino malmequer tinha boa
vontade de lhe acudir: mas como? Era difícil. A compaixão
pelo pobre passarinho prisioneiro, fez-lhe esquecer [17]inteiramente
as belezas que o cercavam, o doce calor do sol e a alvura resplandecente
das suas próprias folhas.
Nisto dois rapazinhos entraram
no jardim. O mais velho trazia na mão uma faca comprida e afiada
como a da pequerrucha, que tinha cortado as tulipas. Encaminharam-se para
o malmequer, que não podia compreender o que desejavam.
«Podemos arrancar daqui um pedaço de relva para a cotovia,
disse um dos rapazes, e começou a fazer um quadrado profundo
à volta da florinha.
―«Arranca a flor, disse
o outro.»
A estas palavras o malmequer estremeceu de
terror. Arrancarem-no era morrer; e nunca tinha abençoado tanto a
existência, como no momento em que esperava entrar com a relva na
gaiola da cotovia.
«Não; deixemo-la, disse o mais
velho. Está aí muito bem.»
Foi por
conseguinte poupado, e entrou na gaiola da cotovia.
O pobre
passarinho, queixando-se amargamente do seu cativeiro, batia com as asas
nos arames da gaiola. O malmequer não podia, apesar dos seus
desejos, articular-lhe uma palavra de consolação.
Passou-se assim toda a manhã.
«Já não
tenho água, exclamou a prisioneira. Saiu toda a gente, sem me
deixarem ao menos uma gota de água. A garganta queima-me, tenho uma
febre terrível, sinto-me abafada! Ai! Não há remédio
senão morrer, longe do sol esplêndido, longe da fresca
verdura e de todas as magnificências da criação!»
[18]Depois enterrou o bico na relva húmida
para se refrescar um pouco. Viu então o malmequer; fez-lhe um sinal
de cabeça amigável, e disse-lhe, afagando-o: «Também
tu, pobre florinha, morrerás aqui! Em vez do mundo inteiro, que eu
tinha à minha disposição, deram-me um pedacito de
relva, e a ti só por única companhia. Cada pezinho de relva
substitui para mim uma árvore, e cada uma das tuas folhas brancas,
uma flor odorífera. Ah! como me fazes recordar de todas as coisas
que perdi!
―Se eu pudesse consolá-la! pensava o
malmequer, incapaz de fazer o mínimo movimento.
Contudo
o perfume que ele exalava, tornou-se mais forte que de costume; a cotovia
sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a obrigava a arrancar a erva,
teve todo o cuidado em não tocar nem sequer de leve na flor.
Caiu a noite; não estava ali ninguém, para trazer uma
gota de água à desditosa cotovia; Estendeu então as
suas belas asas, sacudindo-as convulsivamente, e pôs-se a cantar uma
cançãozinha melancólica; a sua cabecinha inclinou-se
para a flor, e o seu coração quebrado de desejos e de angústias
cessou de bater. Vendo este triste espectáculo, o malmequer não
pôde como na véspera fechar as suas folhas para dormir;
curvou-se para o chão, doente de tristeza.
Os rapazitos
só voltaram no dia seguinte, e, vendo o passarinho morto,
rebentaram-lhe as lágrimas e abriram uma cova. Meteram o cadáver
dentro de uma caixa vermelha, lindíssima, fizeram-lhe um enterro de
príncipe, e cobriram o túmulo com folhas de rosas.
[19]Pobre passarinho! Enquanto vivia e
cantava, esqueceram-se dele e deixaram-no morrer de fome na gaiola; depois
de morto é que o choraram e lhe fizeram honrarias pomposíssimas.
A relva e o malmequer lançaram-nas para a poeira da estrada;
daquele que com tanta ternura tinha amado a cotovia, ninguém se
lembrou.
[20]
Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que falavam
muito alto: «Não, dizia um com voz enérgica, não
quero.» Parei e perguntei-lhe:―O que é que tu não
queres, meu rapaz?―«Não quero dizer à mamã
que venho da escola, porque é mentira. Sei que me há-de
ralhar, mas antes quero que me ralhe do que mentir.»―E tens
razão, disse-lhe eu. És um rapaz como se quer.»
Apertei-lhe a mão, enquanto que o outro pequeno, que lhe
aconselhava que se desculpasse mentindo, ia-se embora todo envergonhado.
Daí a alguns meses, passando pela mesma aldeia e tendo de
falar com o professor, entrei na escola, onde reconheci imediatamente os
meus dois pequenos; o que não quis mentir, sorria-me, enquanto que
o outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre
sobre os dois alunos: Oh! disse-me ele, falando do primeiro, é um
magnífico estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre
pronto a confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a repará-las.
O outro pelo contrário, é mentiroso, covarde e incorrigível.»―Não
me espanto, disse eu, já tinha tirado o horóscopo destas
duas crianças; e contei-lhe o que tinha ouvido.
[21]
Piloto era o mais inteligente e o mais afectuoso dos cães,
e o infatigável companheiro dos brinquedos das crianças da
quinta.
Fazia gosto vê-lo atirar-se ao tanque a agarrar o
pau, que João lhe lançava o mais longe que podia; pegava
nele, metia-o na boca e trazia-o à margem, com grande alegria do
pequerrucho e da sua irmã Joaninha.
Esta brincadeira
recomeçava vinte vezes sem cansar nunca a paciência do
Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos, até que
o assobio do criado da quinta chamava o fiel animal às suas obrigações:
partia então como um raio, para escoltar as vacas, que levavam aos
pastos, e impedi-las de entrar no lameiro do vizinho.
Quando o
hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o Piloto o guarda da
carroça; e muito atrevido seria quem saltasse à noite a
parede da quinta.
Uma vez deu prova de uma extraordinária
sagacidade; um jornaleiro, que se empregava muitas vezes em levar sacos de
trigo da quinta para casa, tentou de noite roubar um saco.
Piloto, que o conhecia, não fez a menor demonstração
de hostilidade em quanto o homem seguiu o [22]caminho
da quinta, mas, desde que se afastou tomando por outra estrada, o guarda
vigilante agarrou-o pela blusa sem o largar.
Era como se
dissesse: «Onde vais tu com o trigo de meu dono?»
O
ladrão quis pôr então outra vez o saco donde o tinha
tirado; Piloto não consentiu, e teve-o em guarda, sem o morder nem
o ferir, até de manhã; o quinteiro foi dar com ele nesta difícil
posição, repreendeu-o vivamente, e despediu-o sem divulgar o
caso para o não desonrar.
Mas o homem ficou com ódio
ao cão, e muito tempo depois, aproveitando a ausência do
quinteiro e de seus filhos, chamou o Piloto, que correu para ele sem
desconfiança; atou-lhe uma corda ao pescoço e arrastou-o até
à margem do ribeiro.
Atou uma grande pedra à
outra extremidade da corda e levantando o animal atirou-o à
água; mas arrastado ele próprio com o peso e com o esforço,
caiu também.
Como não sabia nadar, teria sido
despedaçado pela roda do moinho, se o corajoso Piloto, obedecendo
ao seu instinto de salvador e desembaraçando-se da pedra mal atada,
não tivesse mergulhado duas vezes e trazido para terra o seu mortal
inimigo.
Este, que estava quase desmaiado, compreendeu quando
voltou a si, que o cão que ele tinha querido afogar, lhe salvara a
vida.
Teve vergonha de seu acto miserável; e desde esse
dia, violentou-se a si mesmo e combateu as suas más inclinações.
O exemplo do cão corrigiu o homem.
[23]
Martinho era um rapazito, que ganhava a sua vida a fazer
recados; um dia, voltando de uma aldeia muito distante da sua, achou-se
cansado e deitou-se debaixo de uma árvore, à porta de uma
estalagem, junto da estrada. Estava comendo um bocado de pão que
tinha trazido para jantar, quando chegou uma bela carruagem em que vinha
um fidalguinho, com o seu preceptor. O estalajadeiro correu imediatamente
e perguntou aos viajantes se queriam apear-se, mas responderam-lhe que não
tinham tempo, e pediram-lhe que lhes trouxesse um frango assado e uma
garrafa de vinho.
Martinho estava pasmado a olhar para eles;
olhou depois para a sua côdea de pão, para a sua velha
jaqueta, para o seu chapéu todo roto, e suspirando exclamou
baixinho: Oh! se eu fosse aquele menino tão rico, em vez do desgraçado
Martinho! Que fortuna se ele estivesse aqui, e eu dentro daquela
carruagem!» O preceptor ouviu casualmente o que dizia Martinho e
repetiu-o ao seu aluno, que, lançando a cabeça fora da
carruagem, chamou Martinho com a mão.
―Ficarias
muito contente, não é verdade, meu [24]rapaz,
podendo trocar a minha sorte pela tua?»―Peço que me
desculpe senhor, replicou Martinho corando, o que eu disse não foi
por mal.»―Não estou zangado contigo, replicou o
fidalguinho, pelo contrário, desejo fazer a troca.»
―Oh! está a divertir-se comigo! tornou Martinho, ninguém
quereria estar no meu lugar, quanto mais um belo e rico menino como o
senhor. Ando muitas léguas por dia, como pão seco e batatas,
enquanto que o senhor anda numa carruagem, pode comer frangos e beber
vinho.»―Pois bem, volveu o fidalguinho, se me queres dar tudo
aquilo que tens e que eu não tenho, dou-te em troca de boa vontade
tudo o que possuo.» Martinho ficou com os olhos espantados, sem
saber o que havia de dizer; mas o preceptor continuou: «Aceitas a
troca?»―Ora essa! exclamou Martinho, ainda mo pergunta! Oh!
como toda a gente da aldeia vai ficar assombrada de me ver entrar nesta
bela carruagem!» E Martinho desatou a rir com a ideia da entrada
triunfante na sua aldeia.
O fidalguinho chamou os criados, que
abriram a portinhola e o ajudaram a descer. Mas qual foi a surpresa de
Martinho, vendo que ele tinha uma perna de pau e que a outra era tão
fraca, que se via obrigado a andar em duas muletas: depois, olhando para
ele de mais perto, Martinho observou que era muito pálido e que
tinha cara de doente.
Sorriu para o rapazito com ar benévolo,
e disse-lhe:―Então sempre desejas trocar? Querias porventura,
se pudesses, deixar as tuas pernas valentes e as tuas faces coradas, pelo
prazer de ter [25]uma carruagem e andar bem
vestido?»―Oh! não, por coisa nenhuma! replicou
Martinho.―«Eu, disse o fidalguinho, de boa vontade seria
pobre, se tivesse saúde. Mas, como Deus quis que fosse aleijado e
doente, sofro os meus males com paciência e faço por ser
alegre, dando graças a Deus pelos bens que me concedeu na sua
infinita misericórdia.
«Faz o mesmo, meu
amiguinho, e lembra-te que, se és pobre e comes mal, tens força
e saúde, coisas que valem mais que uma carruagem, e que não
podem comprar-se com dinheiro.
[26]
Tinha o coração duro, e não dava esmolas.
Foi-se confessar uma vez, e o confessor deu-lhe por penitência rezar
sete vezes o Padre Nosso.
«Não o sei, e nunca o
pude aprender, respondeu o aldeão.»
«Pois nesse
caso, tornou o confessor, imponho-te por penitência dar a crédito
um alqueire de trigo a todas as pessoas que to forem pedir da minha parte.»
No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.
«Como te chamas? perguntou-lhe o camponês.
«Padre―Nosso―Que―Estais―No―Céu,
respondeu o pobre.»
«E o teu apelido?»
«Seja―Santificado―O―Vosso―Nome.»
E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.
Ao
outro dia chega segundo pobre.
«Como te chamas?
«Venha―A―Nós―O―Vosso―Reino.»
«E o teu apelido?»
«Seja―Feita―A―Vossa―Vontade.»
[27]E partiu com o seu alqueire de
trigo.
Veio terceiro pobre.
«Como te chamas?»
«Assim―Na―Terra―Como―No―Céu.»
«E o teu apelido?»
«Dai-nos―Hoje―O―Pão―Nosso―De―Cada―Dia.»
E levou o seu alqueire.
Vieram ainda dois pobres
sucessivamente, e passou-se tudo da mesma forma até chegar ao Amen.
Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.
«Então já sabes o Padre Nosso?»
«Não, sr. cura, sei só os nomes e apelidos dos pobres
a quem emprestei o meu trigo.»
«Quais são?
tornou o padre.»
E o aldeão enumerou-lhos a
seguir, e pela ordem porque cada um se tinha apresentado.
«Já vês, disse o confessor, que não era muito
difícil aprender o Padre Nosso, porque já o sabes
perfeitamente.»
[28]
Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria,
mas com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se,
o que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus negócios
com uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue
inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direcção
da sua casa.
«Explica-me, disse um dia este último
ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de um
modo tão diferente? Vendemos as mesmas mercadorias, a minha loja
está tão bem situada como a tua, e apesar disso, enquanto tu
ganhas, eu não faço senão perder. E não
é porque eu seja estroina; não bebo, nem jogo. Já
tenho pensado algumas vezes se não terás tu por acaso algum
precioso talismã.»
«Efectivamente, respondeu
o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável.
Trago-o ao pescoço, e ando assim com ele todo o dia por toda a
casa, do celeiro para a adega, e da adega para o celeiro. E o caso
é que tudo me corre perfeitamente.»
[29]«Olé meu querido colega,
empresta-me pelo amor de Deus essa relíquia preciosa de que tanto
necessito; podes ter a certeza de que ta restituo.»
«Pois vem buscá-la amanhã de manhã.»
Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente,
apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado
um fio de seda.
O nosso homem pô-la imediatamente ao
pescoço, e começou a correr toda a casa com o talismã.
Observou então a completa desordem que por toda a parte ali havia.
Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha o pão, a
carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na
estribaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu,
finalmente, como os seus livros e registros estavam mal escriturados; viu
tudo isto, e que era necessário dar-lhe remédio,
compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por
terceira pessoa na direcção dos seus negócios.
Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso talismã,
agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em
segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.
[30]
«Mamã, nem todas as crianças que morrem vão
para o Paraíso. O outro dia vi levar para o cemitério um
menino que tinha morrido; o seu papá e as suas duas irmãzinhas
acompanhavam o caixão, e choravam tanto que me fazia pena. Iam a
chorar porque aquele menino tinha sido mau, não é verdade?»
«Não; naturalmente foi sempre bom, e a sua alma,
enquanto choravam seus pais e suas irmãs, já estava vivendo
feliz no Paraíso.»
«A alma? mamã; não
sei o que é; não compreendo bem.»
«Maria,
acabas de me dizer que tiveste pena de ver chorar as duas pequerruchas.»
«Tive sim, mamã, tive muita pena.»
«Ora bem, o que é que no teu corpo estava desconsolado e
triste? eram os braços?»
«Não, mamã.»
«Eram as orelhas?»
«Oh! não mamã,
era cá dentro.»
«Esse lá
dentro, Maria, é a tua alma que se alegra ou se entristece, que
te repreende quando fazes o mal, e que está satisfeita quando
praticas o bem.
[31]
Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu
pai e seus irmãos, que eram activos e laboriosos, plantar árvores
e fazer sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um
único feijão produzir cem feijões e muitas vezes
mais, e de uma talhada de batata nascerem quarenta batatas magníficas;
sabia que a terra pagava com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um
dia achou uma libra no quarto do pai, e foi enterrá-la
imediatamente no seu jardinzinho. «Há-de nascer uma árvore,
dizia ele consigo, que dará libras como uma cerejeira dá
cerejas, e irei entregá-las ao papá, que ficará muito
contente.» Todas as manhãs ia ver se a libra tinha nascido,
mas não rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda
a parte. Por fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.
«Vi papá; achei-a e fui semeá-la.»
«Como, semeá-la? doido! julgas talvez que vai nascer como uma
couve?»
«Mas, papá, ouvi dizer que o oiro se
encontrava na terra.»
«É verdade, mas não
nasce como uma semente; o oiro não tem vida.»
[32]Desenterrou-se a libra, e Alberto foi
castigado por dispor do que lhe não pertencia.
Há
contudo, meus filhos, uma maneira de semear o oiro, fazendo-lhe produzir
os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como é?
É dando-o aos pobres. Faz-se no Paraíso a colheita dessa
sementeira.
[33]
Disse Deus na Primavera: «Ponham a mesa às
lagartas!» E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões
de folhas, fresquinhas e verdejantes.
A lagarta, que estava
dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca,
esfregou os olhos e pôs-se a comer tranquilamente as folhinhas
tenras, dizendo: «Não se pode a gente despegar delas. Quem
é que me arranjou este banquete?»
Então
Deus disse de novo: «Ponham a mesa às abelhas!» E a
cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores
delicadas e brancas.
E a abelha matinal aos primeiros raios da
aurora pousou sobre elas, dizendo: «Vamos tomar o nosso café;
e que chávenas tão bonitas em que o deitaram!»
Provou com a linguita, exclamando: «Que deliciosa bebida! Não
pouparam o açúcar!»
No Verão disse
Deus: «Ponham a mesa aos passarinhos!» E a cerejeira cobriu-se
de mil frutos apetitosos e vermelhos.
[34]«Ah!
ah! exclamaram os passarinhos, foi em boa ocasião; temos apetite, e
isto dar-nos-á novas forças para podermos cantar uma nova
canção.» No Outono disse Deus: «Levantai a mesa,
já estão satisfeitos.» E o vento frio das montanhas
começou a soprar, e fez estremecer a árvore.
As
folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o
vento que as lançou ao chão erguia-as novamente, fazendo-as
esvoaçar.
Chegou o Inverno e disse Deus: «Cobri o
resto!» E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja
mortalha tudo dorme e descansa.
[35]
Era uma vez uma família de gigantes, que viviam num
castelo na montanha: um dos gigantes tinha uma filha de seis anos, da
altura dum álamo. Era curiosa e andava com vontade de descer
à planície a ver o que faziam lá em baixo os homens,
que de cima do monte lhe pareciam anões. Um belo dia, em que seu
pai o gigante tinha ido à caça e sua mãe estava
dormindo, a jovem giganta desatou a correr para um campo, onde os
jornaleiros trabalhavam. Parou surpreendida a ver a charrua e os
lavradores, coisas inteiramente novas para ela. «Oh! que lindos
brinquedos!» exclamou. Abaixou-se e estendeu por terra o avental,
que quase que cobriu o campo. Lançou-lhe dentro os homens, os
cavalos, a charrua; de dois passos tornou a subir a montanha, e entrou no
castelo, onde seu pai estava a jantar.
―Que trazes aí,
minha filha?» perguntou ele.
―Olhe, disse ela,
abrindo o avental, que lindos brinquedos. São os mais bonitos que
tenho visto.»
E pô-los em cima da mesa, a um e um,―os
cavalos, a charrua e os trabalhadores, que estavam [36]todos
espantados, como formigas a quem tivessem transportado dum formigueiro
para um salão. A gigantinha pôs-se a bater as palmas e a rir
com uma alegria doida, mas o gigante fez-se sério e franziu o
sobrolho. «Fizeste mal, disse-lhe ele. Isso não são
brinquedos, mas coisas e pessoas que devem estimar-se e respeitar-se. Mete
tudo isso com cuidado no teu avental, e põe-no imediatamente onde o
achaste; porque fica sabendo que os gigantes da montanha, morreriam de
fome, se os anões da planície deixassem de lavrar a terra e
de semear o trigo.
[37]
Quando morre uma criança, desce um anjo do céu,
toma-a nos braços, e desdobrando as asas imaculadas, voa por cima
de todos os sítios que ela amara durante a sua pequenina existência;
o anjo abaixa-se de quando em quando para colher flores, que leva a Deus,
para que floresçam no paraíso ainda mais belas do que tinham
sido na terra. Deus recebe todas as flores, escolhe uma delas, toca-a com
os lábios, e a flor escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa
a cantar os coros maviosos dos bem-aventurados. Ora escutai o que disse o
anjo a uma criança morta, que o estava ouvindo como num sonho.
Pairaram primeiro sobre a casa em que a criança brincara, e depois
sobre jardins deliciosos, cobertos de flores.
«Qual
é a flor que desejas para plantar no paraíso?»
perguntou o anjo.
Havia nesse jardim uma roseira que tinha sido
direita, vigorosa, magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e
todos os seus ramos cheios de botõezinhos lindíssimos
pendiam estiolados para o chão.
«Pobre roseira!
disse a criança ao anjo; vamos buscá-la para que possa
reflorir no paraíso.»
[38]O
anjo foi buscá-la, e abraçou a criança. Colheram
muitas flores brilhantes, boninas humildes e violetas silvestres.
A colheita estava terminada, e contudo não voavam ainda para
Deus. Caiu a noite silenciosa, e a criança e o seu guia Divino
andavam ainda por cima da grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais
estreitas, cheia de cacos de louça, de vidros partidos, de
farrapos, de toda a casta de imundície. Entre estes destroços
distinguiu o anjo um vaso de flores com a terra pelo chão, onde
pendiam as longas raízes duma flor dos campos, já murcha, e
que parecia não poder reverdecer: tinham-na atirado para a rua como
inútil e morta.
«Vale a pena levantá-la
disse o anjo; levemo-la, e pelo caminho, voando, te contarei a história
da florinha. Lá ao fundo, lá ao fundo, naquela rua estreita
e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança miserável e
doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia conseguir era passear
com a ajuda das muletas ao longo de seu pequenino quarto. Em certos dias
de Verão os raios do sol visitavam-lhe a alcova, durante meia hora.
Então a criança sentada à janela, aquecida pelo sol,
sem o cansaço do andar, imaginava-se passeando; não conhecia
da floresta, da fresca verdura da primavera, senão o ramo de faia,
que uma vez o filho do vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima
da cabeça o ramo verdejante, e, supondo-se debaixo das árvores
abrigadas do sol, sonhava com o doce canto dos passarinhos. Um dia o filho
do vizinho trouxe-lhe flores do campo, e por acaso entre elas apareceu uma
que tinha ainda raízes; [39]o
pequerrucho plantou-a num vaso, e pô-lo à janela, junto da
cama. A flor plantada por mão abençoada, cresceu, tornou-se
grande, e todos os anos dava novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu
único tesouro neste mundo; regava-a, tratava-a, adorava-a;
fazia-lhe aproveitar os raios do sol até ao último. A flor
aparecia-lhe em sonhos, porque era para ele que floria, que espalhava o
seu aroma e ostentava as suas cores; quando se sentiu morrer foi para ela
que se voltou.
«Faz hoje um ano que esse pequerrucho
habita no paraíso; a sua querida flor, esquecida à janela
desde então, murchou, estiolou-se e atiraram-na à rua
finalmente. E contudo esta flor quase seca é o tesouro do nosso
ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os canteiros dum jardim
realengo.»
«Como sabes tu isso?» perguntou a
criança, que o anjo levava para o céu.
―Sei-o,
respondeu o anjo, porque era eu o pequenino doente que andava em muletas;
como não havia de eu reconhecer a minha flor bem amada!»
A criança abriu os olhos, e viu a radiosa figura do anjo
quando entravam no céu onde tudo era alegria e felicidade. Deus
pegou nas flores, levou-as ao coração, mas a que ele beijou
foi a florinha silvestre, desprezada e murcha: a flor adquiriu voz
imediatamente, pôs-se a cantar com as almas que rodeiam o Criador,
umas junto dele, outras ao longe, formando círculos que vão
aumentando sucessivamente, multiplicando-se até ao infinito,
povoados de [40]seres inteiramente felizes,
cantando todos harmoniosamente―desde a criança abençoada
até à humilde florinha do campo, levantada do lodo, dentre
os tristes despojos da rua sombria e tortuosa.
[41]
Um grande fidalgo, que se tinha perdido numa floresta, foi dar
de noite à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda não
tinha chegado, foi a mulher que recebeu o importante personagem. Acolheu-o
o melhor que pôde, desculpando-se da miserável hospitalidade
que lhe ia dar, porque eram batatas cozidas a única coisa que lhe
poderia oferecer; cama não a tinha, por conseguinte dormiria sobre
a palha. Mas o estrangeiro estava morto de fome e de fadiga; as batatas
souberam-lhe mais do que faisões, e dormiu melhor em cima da palha
do que num leito de príncipes. Ao outro dia pela manhã disse
isto mesmo à pobre mulher, gratificando-a ao despedir-se com uma
moeda de ouro. Mas, como o desconhecido lhe tinha dito que a guardasse
como uma pequena lembrança, a boa camponesa julgou que seria uma
medalha, e sentiu que não tivesse um buraquito para a trazer ao
pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa, contou-lhe logo o que
lhe tinha acontecido, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro examinou
os cunhos e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:
[42]«Esse forasteiro era nada mais nada
menos do que o nosso príncipe!
E o bom do homem não
podia conter-se de alegria, por sua alteza ter achado as suas batatas
melhores do que faisões.
«É necessário
confessar, disse ele com um ar triunfante, que não há talvez
no mundo um terreno mais favorável do que este para a cultura das
batatas; hei-de lhe levar um cesto delas, já que as acha tão
boas.
E partiu imediatamente para o palácio com uma
provisão de batatas escolhidas.
Os lacaios e as
sentinelas ao princípio não o queriam deixar entrar; mas
insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir nada, e que
pelo contrário vinha trazer alguma coisa.
Foi, pois,
introduzido na sala da audiência.
«Meu senhor,
disse ele ao príncipe: Vossa alteza dignou-se recentemente pedir
hospitalidade a minha mulher, e dar-lhe uma peça de ouro, em troca
duma enxerga miserável e de um prato de batatas cosidas. Era pagar
demasiadamente, apesar de serdes um príncipe muito rico e poderoso.
Eis o motivo porque eu venho trazer ainda a vossa alteza um cestito das
batatas, que vos souberam melhor do que os vossos faisões.
Dignai-vos aceitá-las, e, se nos fizerdes de novo a honra de ser
nosso hospede, lá as encontrareis sempre ao vosso dispor.»
A honrada simplicidade do camponês agradou ao príncipe,
e, como estava num momento de bom humor, fez-lhe doação de
uma quinta com trinta jeiras de terra.
[43]Ora
o carvoeiro tinha um irmão muito rico, mas invejoso e avarento,
que, sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo: «Porque
não me há de suceder a mim outro tanto? O príncipe
gosta do meu cavalo, pelo qual lhe pedi sessenta libras, que ele me
recusou. Vou-lhe fazer presente dele: se deu ao João uma quinta com
trinta jeiras de terra, simplesmente por um cesto de batatas, a mim com
certeza me há de recompensar ainda mais generosamente.»
Tirou o cavalo da estrebaria e levou-o para defronte das portas do
palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e, atravessando com
ar altivo as alas dos lacaios, penetrou na sala da audiência.
«Ouvi dizer, disse ele, que vossa alteza gosta do meu cavalo;
não tenho querido trocá-lo a dinheiro, mas dignai-vos
permitir-me que vo-lo ofereça.»
O príncipe
viu imediatamente onde o nosso homem queria chegar, e disse consigo:
«Deixa estar, tratante, que te vou dar a paga que mereces:
Depois dirigindo-se a ele:
«Aceito a tua dádiva,
mas não sei como agradecer-ta condignamente. Oh! espera um pouco:
Eis aqui um cesto de batatas mais saborosas do que faisões.
Custaram-me trinta jeiras de terra. Parece-me que é um bom preço
para um cavalo, que eu poderia ter comprado por sessenta libras.»
E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.
[44]
Era uma vez um pinheiro, que não estava contente com a
sua sorte. «Oh! dizia ele, como são horrorosas estas linhas
uniformes de agulhas verdes, que se estendem ao longo dos meus ramos! Sou
um pouco mais orgulhoso que os meus vizinhos, e sinto que fui feito para
andar vestido de outro modo. Ah! se as minhas folhas fossem de oiro!»
O Génio da montanha ouviu-o, e no dia seguinte pela manhã
acordou o pinheiro com folhas de oiro. Ficou radiante de alegria, e
admirou-se, pavoneou-se todo, olhando com altivez para os outros
pinheiros, que, mais sensatos do que ele, não invejavam a sua rápida
fortuna. À noite passou por ali um judeu, arrancou-lhe todas as
folhas, meteu-as num saco, e foi-se embora, deixando-o inteiramente nu dos
pés à cabeça.
«Oh! disse ele, que
doido que eu fui! não me tinha lembrado da cobiça dos
homens. Fiquei completamente despido. Não há agora em toda a
floresta uma planta tão pobre como eu. Fiz mal em pedir folhas de
oiro; o oiro atrai as ambições.
Ah! se eu
arranjasse um vestuário de vidro! Era [45]deslumbrante,
e o judeu avarento não me teria despido.»
No dia
seguinte acordou o pinheiro com folhas de vidro, que reluziam ao sol como
pequeninos espelhos. Ficou outra vez todo contente e orgulhoso, fitando
desdenhosamente os seus vizinhos. Mas nisto o céu cobriu-se de
nuvens, e o vento rugindo, estalando, quebrou com a sua asa negra as
folhas de cristal.
«Enganei-me ainda, disse o jovem
pinheiro, vendo por terra todo feito em pedaços o seu manto
cristalino. O oiro e o vidro não servem para vestir as florestas.
Se eu tivesse a folhagem acetinada das aveleiras, seria menos brilhante,
mas viveria descansado.»
Cumpriu-se o seu último
desejo, e, apesar de ter renunciado às vaidades primitivas,
julgava-se ainda assim mais bem vestido do que todos os outros pinheiros
seus irmãos. Mas passou por ali um rebanho de cabras, e vendo as
folhas acabadas de nascer, tenrinhas e frescas, comeram-lhas todas sem
deixar uma única.
O pobre pinheiro, envergonhado e
arrependido, já queria voltar à sua forma natural. Conseguiu
ainda este favor, e nunca mais se queixou da sua sorte.
[46]
A filha.―Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.
A mãe.―Vou-te dar outra.
A filha.―Como
se fazem as agulhas, mamã?
A mãe.―Vê
se adivinhas.
A filha.―Não sei, mamã.
A mãe.―Conheces os metais?
A
filha.―Conheço mamã; tenho lá dentro muitos
bocadinhos dentro de uma caixa.
A mãe.―Ora
muito bem, diz-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de mármore?
A filha.―Oh! não; são de metal; mas de
que metal?
A mãe.―Antes de perguntar
qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.
A
filha.―Ora espere!... uma agulha é de metal: não
é de prata, porque não é branca; não é
de oiro, porque não é de um lindo amarelo muito brilhante; não
é de cobre, porque não é de um amarelo muito feio,
que cheira mal... Então é de ferro, mamã?
A mãe.―Adivinhaste.
A filha.―Mas,
mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.
[47]A mãe.―É
que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já
se não chama ferro, é aço.
A filha.―Bem,
as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é
que as fazem.
A mãe.―É impossível,
não és capaz disso; mas hei de levar-te a uma fábrica
onde se fazem agulhas. Hás-de vê-las fazer, e hás-de
gostar muito.
A filha.―Tinha vontade de saber como
se fazem todas as coisas de que nos servimos.
A mãe.―Tens
razão; é uma vergonha ignorá-lo.
A
filha.―Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.
A
mãe.―Olha, aí tens o meu estojo.
A
filha.―Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São
tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há-de
ser necessária para fazer uma coisinha tão delicada!
A mãe.―Lembras-te de ver na feira um carrinho de
marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?
A
filha.―Lembro, mamã; era tão bonito!
A
mãe.―Li num jornal alemão que um operário
chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro
deste copo havia mais doze...
A filha.―Que
pequeninos deviam ser os doze copos para caberem num grão de
pimenta!
A mãe.―E ainda não é
tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no
pé.
A filha.―Que vontade eu tinha de ver
isso!
A mãe.―Tens razão de te
admirares da habilidade dos homens. É efectivamente espantoso, e
[48]deve saber-se, o modo porque se fabricam
certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de admiração.
A filha.―Quais, mamã?
A mãe.―Já
to digo. (Levanta-se.)
A filha.―Que quer,
mamã?
A mãe.―Quero que vejas o
microscópio de teu papá.
A filha.―Pois
sim; eu gosto de olhar pelo microscópio.
A mãe.―Este
é magnífico, e aumenta prodigiosamente os objectos. Vais ver
a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina,
lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?
A filha.―Meu Deus, que coisa tão feia! Que agulha tão
grosseira!
A mãe.―Vês-lhe buracos,
riscos, asperezas, não é verdade?
A filha.―Parece
um prego muito grande e muito mal feito.
A mãe.―Pois
todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na
agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá
por elas.
A filha.―O operário que fez esta
agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscópio.
A mãe.―Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.
A filha.―O quê, mamã?
A mãe.―O
aguilhãozinho de uma abelha.
A filha.―Oh!
que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é
brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio há
de acontecer o mesmo que com a agulha.
[49]A
mãe.―Pronto: olha.
A filha (olhando).―É
esquisito, mamã!
A mãe.―Então?
A filha.―Aumentou, aumentou como a agulha, mas não
é áspero, pelo contrario, é perfeitamente liso... A
agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãozinho da
abelha tem uma ponta tão fina como um cabelo. Porque será
isto, mamã?
A mãe.―É porque o
operário que fez este aguilhão é muito mais hábil
do que o que fez a agulha.
A filha.―Quem é
esse operário tão hábil?
A mãe.―É
o mesmo que fez o céu, os astros, a terra, as plantas e as
criaturas.
A filha.―É Deus.
A
mãe.―Exactamente. Pois não é Deus que fez
as abelhas e todos os animais?
A filha.―De certo.
A mãe.―Foi ele por conseguinte que fez o aguilhão
desta abelha; e aí tens porque o aguilhão é superior
à agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo
microscópio. Aqui está um pedacinho de musselina finíssima.
Olha pelo microscópio; o que é que vês?
A
filha.―Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal feita.
A mãe.―Aqui tens agora um pedacinho de renda
delicadíssima.
A filha.―Essa estou bem
certa que há de ser linda, mesmo vista pelo microscópio.
A mãe.―Então?
A filha.―É
horrorosa... Parece feita de pelos grosseiros com grandes buracos
desiguais.
A mãe.―As obras do homem são
todas assim.
[50]A filha.―Oh!
mamã, vejamos agora as obras de Deus.
A mãe.―Sabes
o que é isto?
A filha.―Sei, mamã,
é um casulo de bicho de seda.
A mãe.―Os
fiozinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha
pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.
A
filha (olhando pelo microscópio).―Não, mamã;
os fios são todos iguais, e o casulo é sempre muito liso,
muito brilhante.
A mãe.―É porque
é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há sobre
este papel?
A filha.―Pontinhos feitos com tinta e
manchazinhas redondas feitas também com tinta.
A mãe.―Estes
pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?
A
filha.―Sim, mamã, perfeitamente redondos.
A
mãe.―Vê-os agora ao microscópio.
A filha.―Oh! já não são redondos, são
todos desiguais.
A mãe.―Tira o papel;
vejamos a obra de Deus. É uma asa de borboleta; vês que está
mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscópio; o
que é que vês?
A filha.―Vejo a mesma
coisa que via sem o vidro, só com a diferença que agora
é maior. Que belas que são as obras de Deus!
A
mãe.―Merece bem a pena estudá-las.
A
filha.―De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as
obras dos homens.
A mãe.―E sempre e em tudo
hás-de encontrar defeitos nas obras do homem, enquanto que [51]as obras de Deus, quanto mais se observam, mais
perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira
é que Deus merece tanto a nossa admiração como o
nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são
insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente belo,
perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias
de imperfeições, se as compararmos com as obras do Criador.
[52]
Era uma vez uma viúva com um filho único. Ao
cabo dum Inverno rigoroso, possuía apenas um galo, e meio alqueire
de farinha. João resolveu-se a correr mundo, à busca de
fortuna. A mãe cozeu o resto da farinha, matou o galo, e disse-lhe:
«O que é que preferes: metade desta merenda com a minha
bênção, ou toda com a minha maldição?»
«Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros há
no mundo eu quereria a tua maldição.»
«Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e
Deus te abençoe.»
E partiu. Foi andando, andando,
até que encontrou um jumento, que tinha caído num atoleiro,
donde não podia sair.
«Oh! João, exclamou o
burro, tira-me daqui, que estou quase a afogar-me.»
«Espera, respondeu João.»
E, formando uma
ponte com pedras e ramos de árvores, conseguiu tirar o quadrúpede
do atoleiro.
[53]«Obrigado,
disse-lhe ele, aproximando-se de João. Se te posso ser útil,
aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?»
―«Vou
por esse mundo fora, a ver se ganho a minha vida.»
«Queres tu que eu te acompanhe?
«Anda daí.»
E puseram-se a caminho.
Ao passarem por uma aldeia, viram
um cão perseguido pelos rapazes da escola, que lhe tinham atado ao
rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para João que o
acariciou, e o jumento pôs-se a ornear de tal maneira, que os
rapazes com o medo deitaram todos a fugir.
«Obrigado,
disse o rafeiro a João. Se para alguma coisa te for prestável,
aqui me tens às tuas ordens. Aonde vais tu?»
«Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha vida.»
«Queres que te acompanhe?»
«Anda daí.»
Quando saíram da aldeia pararam junto duma fonte. O pequeno
tirou a merenda do alforge, e repartiu-a com o cão. O burro pastou
alguma erva que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato
esfaimado a miar lastimosamente.
Coitado, exclamou João!»
E deu-lhe uma asa do frango.
―«Obrigado disse o
gato. Oxalá que um dia eu te possa ser útil. Aonde vais tu?
―«Procurar trabalho. Se queres, anda connosco.»
―De boa vontade.
[54]Os
quatro viajantes puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um grito
dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um galo na
boca.
«Agarra! agarra!» bradou o pequeno ao cão.
E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da raposa,
que, vendo-se em perigo, largou o galo para correr melhor. O galo saltando
de contente disse a João:
―«Obrigado.
Salvas-te-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vais tu?»
―Arranjar trabalho. Queres vir connosco?
―«De
boa vontade.»
―Então anda. Se te cansares,
empoleira-te no jumento.»
Os viajantes continuaram a
jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não
avistavam à roda nem uma quinta, nem uma cabana.
―«Paciência,
disse João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a
dormir ao ar livre; além disso a noite está sossegada, e a
relva é macia.»
Dito isto estendeu-se no chão;
o jumento deitou-se ao lado dele, o cão e o gato aninharam-se entre
as pernas do burro complacente, e o galo empoleirou-se numa árvore.
Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o galo
começou a cantar.
―«Que demónio!
disse o jumento acordando todo zangado. Porque é que estás a
gritar?»
―«Porque já é dia,
respondeu o galo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que
vem rompendo?»
[55]―«Vejo
uma luz, disse João, mas não é do sol, é duma
lanterna. Provavelmente há ali alguma casa, onde nos poderíamos
recolher o resto da noite.»
Foi aceita a proposta. Partiu
a caravana; foi andando, andando, através dos campos, até
que parou junto da casa do guarda dum grande castelo, donde subiam
gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfémias horríveis.
―Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito
devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.»
Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se
banqueteavam alegremente, sentados a uma mesa principesca.
―«Que bom assalto acabámos de dar, disse um deles, ao
castelo do conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem
que é este porteiro. À sua saúde!»
―«À saúde do nosso amigo!» repetiram em
coro todos os ladrões.
E dum trago despejaram os copos.
João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz
baixa:
―«Uni-vos uns aos outros o melhor que
puderdes, e, assim que vos der sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa
gritaria diabólica.»
O burro, levantando-se nas
patas traseiras, lançou as mãos ao peitoril duma janela, o cão
trepou-lhe à cabeça, o gato à cabeça do cão
e o galo à cabeça do gato. João deu o sinal, e
estoirou à uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o
miar do gato e os gritos estridentes do galo.
[56]―«Agora,
bradou João, fingindo que comandava um destacamento, carregar
armas! Dai-me cabo dos ladrões; fogo!»
No mesmo
instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando cada vez mais;
os ladrões atemorizados refugiaram-se no bosque, saindo
precipitadamente por uma porta falsa.
João e os seus
companheiros penetraram na sala abandonada, comeram um excelente jantar, e
deitaram-se em seguida―João numa cama, o burro na cavalariça,
o cão numa esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão
e o galo num poleiro.
Ao principio os ladrões ficaram
muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas
depois, começaram a reflectir.
―«Era bem
melhor a minha cama, do que esta erva tão húmida, disse um
deles.»
―«Tenho pena do frango que eu começava
a saborear, disse um outro.»
―«E que rico
vinho aquele! acrescentou o terceiro.»
―«E o
que é mais lamentável, exclamou um quarto, é
ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde,
tínhamos tirado das gavetas.»
―Vou ver se
torno lá a entrar! disse o capitão.
―Bravo! exclamaram os ladrões.
E pôs-se
a caminho.
Já não havia luz na casa; o capitão
entrou às apalpadelas, e dirigiu-se para o fogão; o gato
saltou-lhe à cara e esfarrapou-lha com as garras. [57]Soltou um grito doloroso, correu para a porta,
mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande
dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta.
Mas quando ia a sair, o galo atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com
as unhas.
―Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão,
como poderei eu sair!»
Julgou encontrar refúgio na
estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deitou
quase morto ao meio do chão.
Passado algum tempo veio a
si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços
partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.
―Então?
então?―perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.
―Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma
cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste
corpo, que o trago num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na
cozinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e
arrumou-me na cara com o sedeiro, deixando-me neste miserável
estado. Quando ia a sair a porta, um demónio dum remendão
atravessou-me as pernas com a sovela. Logo depois Satanás em pessoa
atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria
deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não
acreditam, vão lá, e experimentem.»
―Acreditamos,
disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado: Não
seremos nós que lá tornaremos.»
Pela manhã,
João e os seus camaradas almoçaram [58]ainda excelentemente, e partiram em
seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe
tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos, com que
carregou o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram
à porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do
porteiro, com uma libré esplêndida, meias de seda, calções
escarlates e cabelo empoado.
Olhou com ar de desprezo para a
pequenina caravana, e disse a João:
―Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os
recolher, vão-se embora.»
―Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do
castelo far-nos-á um bom acolhimento.
―Fora daqui
vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar
imediatamente, quando não atiro-lhes já às pernas os
meus cães de fila.»
―Perdão, só
um instante, replicou o galo empoleirado na cabeça do jumento; não
me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite
passada a porta do castelo?»
O porteiro corou. O conde
que estava à janela, disse-lhe:
―Ó Bernabé,
responde ao que esse galo te acaba de perguntar.
―Senhor,
replicou Bernabé, este galo é um miserável. Não
fui eu que abri a porta aos seis ladrões.
―Como
é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram
seis?
Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o
[59]dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente
que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cansados
do caminho.
―Ficai certos que sereis bem tratados.
O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato
ficou na cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o
dos pés à cabeça com um vestuário magnífico,
deu-lhe um relógio de ouro, e disse-lhe:
―Queres ficar
comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.»
João aceitou a proposta, e mandou vir a sua velha mãe
para o pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu
sempre felicíssimo.
[60]
Em tempos muito remotos os habitantes duma grande cidade
levantaram uma igreja magnífica a Santa Cecília, padroeira
dos músicos.
As rosas mais vermelhas e os lírios
mais cândidos enfeitavam o altar. O vestido da santa era de
filigrana de prata e os sapatinhos eram de oiro, feitos pelo melhor
ourives que havia na cidade. A capela estava constantemente cheia de
peregrinos e devotos. Uma vez foi lá em romaria um pobre
rabequista, pálido, magro, escaveirado. Como a jornada tinha sido
muito longa, estava cansado, e já no seu alforge não havia pão
nem dinheiro no bolso para o comprar.
Assim que entrou na
capela, começou a tocar na sua rabeca com tal suavidade, com tanta
expressão, que a santa ficou enternecida ao vê-lo tão
pobre e ao escutar aquela música deliciosa. Quando terminou, Santa
Cecília abaixou-se, descalçou um dos seus ricos sapatos de
ouro, e deu-o ao pobre músico, que tonto de alegria, dançando,
cantando, chorando, correu à loja dum ourives para lho vender. O
ourives, reconhecendo o sapato da santa, prendeu o pobre rabequista e
levou-o à presença [61]do juiz.
Instauraram-lhe processo, julgaram-no, e foi condenado à morte.
Chegara o dia da execução. Os sinos dobravam
lastimosamente, e o cortejo pôs-se em marcha ao som dos cânticos
dos frades, que ainda assim não chegavam a dominar os sons da
rabeca do condenado, que pedira, como última graça, o
deixarem-lhe tocar na sua rabeca até ao último momento. O
cortejo chegou defronte da capela da santa, e quando pararam suplicou o
triste desgraçado, que o levassem lá dentro para tocar a sua
derradeira melodia.
Os padres e os chefes da escolta
consentiram, e o rabequista entrou, ajoelhou aos pés da santa, e
debulhado em lágrimas começou a tocar. Então o povo,
maravilhado e aterrado, viu Santa Cecília curvar-se de novo, descalçar
o outro sapato e metê-lo nas mãos do infeliz músico.
À vista deste milagre, todos os assistentes, levaram em triunfo o
rabequista, coroaram-no de flores, e os magistrados vieram solenemente
prestar-lhe as mais honrosas homenagens.
[62]
Um lavrador que tinha quatro filhos trouxe-lhes um dia cinco pêssegos
magníficos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes frutos,
extasiaram-se diante das suas cores e da fina penugem que os cobria.
À noite o pai perguntou-lhes:
―Então
comeram os pêssegos?
―Eu comi, disse o mais velho.
Que bom que era! Guardei o caroço, e hei-de plantá-lo para
nascer uma árvore.»
―Fizeste bem, respondeu
o pai, é bom ser económico e pensar no futuro.»
―Eu, disse o mais novo, o meu pêssego comi-o logo, e a
mamã ainda me deu metade do que lhe tocou a ela. Era doce como mel.»
―Ah! acudiu o pai, foste um pouco guloso, mas na tua idade não
admira; espero que quando fores maior te hás-de corrigir.»
―Pois eu cá, disse um terceiro, apanhei o caroço
que o meu irmão deitou fora, quebrei-o, e comi o que estava dentro,
que era como uma noz. Vendi o meu pêssego, e com o dinheiro hei de
comprar coisas quando for à cidade.»
O pai meneou
a cabeça:
[63]―Foi
uma ideia engenhosa, mas eu preferia menos cálculo.
―E tu, Eduardo, provaste o teu pêssego?
―Eu,
meu pai, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso vizinho, ao Jorge,
que está coitadinho com febre. Ele não o queria, mas
deixei-lho em cima da cama, e vim-me embora.
―Ora bem,
perguntou o pai, qual de vós é que empregou melhor o pêssego
que eu lhe dei?
E os três pequenos disseram à uma:
―Foi o mano Eduardo.
Este no entanto não
dizia palavra, e a mãe abraçou-o com os olhos arrasados de lágrimas.
[64]
Era uma vez uma viúva, que tinha uma filhinha muito
linda, a quem adorava sobre todas as coisas. Não se separava dela
um só momento; mas um dia a pobre pequerrucha começou a
sofrer, adoeceu e morreu. A desditosa mãe, que tinha passado as
noites e os dias, sem repousar um momento, à cabeceira da filha,
julgou endoidecer de mágoa e de saudades. Não comia, não
fazia senão chorar e lamentar-se. Uma noite em que estava
acabrunhada, chorando no mesmo sítio em que a filha tinha morrido,
abriu-se de repente a porta do quarto e viu-a aparecer a ela, a sua
querida filha, sorrindo com uma expressão angélica e
trazendo nas mãos uma urna, que vinha cheia até às
bordas.
―«Oh! minha querida mãe, disse-lhe
ela, não chores mais. Olha, o anjo das lágrimas recolheu as
tuas nesta urna. Se chorares mais, transbordará, e as tuas lágrimas
correrão sobre mim, inquietando-me no túmulo e perturbando a
minha felicidade no paraíso.
A pequenina desapareceu, e
a mãe não tornou a chorar para a não afligir.
[65]
Os vossos filhos serão para vós como vós
tiverdes sido para vossos pais. E é natural. As crianças vêem
diariamente o que fazem seus pais, e imitam-nos. Justifica-se desta
maneira o provérbio que diz,―que a bênção
ou a maldição dum pai cai sobre a cabeça de seus
filhos, terminando sempre por se realizar. Citaremos dois exemplos, que
merecem ser meditados.
Um príncipe, passeando no campo,
viu um pobre homem, que andava muito satisfeito, a lavrar a terra. Pôs-se
a conversar com ele. Depois de algumas perguntas, soube que o campo não
pertencia ao homem, mas que trabalhava nele mediante um salário de
doze vinténs por dia. O príncipe, que para as suas despesas
de administração e representação necessitava
de quantias avultadas, custou-lhe ao principio a perceber, como se vivia
com doze vinténs diários, andando-se ainda por cima
satisfeito. Manifestou o seu espanto ao aldeão, que lhe respondeu:
«Gasto diariamente comigo a terça parte dessa quantia;
outro terço é para pagar as minhas dividas; [66]e o resto é para ir juntando algumas
economias.»
Era um novo enigma para o príncipe.
Mas o alegre camponês explicou-lho deste modo.
«Reparto
quanto ganho com os meus velhos pais, que já não podem
trabalhar, e com os meus filhos, que ainda não têm força
para isso. Aos primeiros pago-lhes o amor de que me deram tantas provas na
minha infância; e espero que os segundos não me abandonem,
quando os anos tiverem pesado sobre mim.»
O príncipe,
ouvindo isto, quis premiar o honrado camponês; encarregou-se da
educação de seus filhos; e a bênção que
lhe deram os seus velhos pais, os seus filhos merecerem-na depois pela sua
vez, rodeando igualmente a sua velhice de cuidados piedosos e da mais
terna dedicação.
Mas posso desgraçadamente
citar-vos outro filho, que procedeu duma maneira tão indigna com
seu velho pai doente e aleijado, que este teve de pedir que o levassem
para o hospital da misericórdia. O filho ingrato recebeu com
alegria o desejo do infeliz velho, que nessa mesma tarde foi conduzido ao
hospital. Como este estabelecimento de caridade fosse muito pobre,
decidiu-se o velho a mandar pedir a seu filho, como última esmola,
um par de lençóis, para cobrir a palha que lhe servia de
leito. O mau filho escolheu os lençóis mais usados, e disse
ao seu pequeno, de dez anos de idade, que os fosse levar a esse velho
rabujento. Mas notou que a criança ao partir tinha escondido um
dos lençóis a um canto, atrás da porta.
[67]Quando voltou perguntou-lhe o pai, porque
fizera aquilo.
«Foi, respondeu a criança
desabridamente, para me servir mais tarde deste lençol, quando pela
minha vez te mandar também para o hospital.
[68]
Era uma vez um sultão, que despendia em vestuário
todo o seu rendimento.
Quando passara revista ao exercito,
quando ia aos passeios ou ao teatro, não tinha outro fim senão
mostrar os seus fatos novos. Mudava de traje a todos os instantes, e como
se diz dum rei: Está no conselho; dizia-se dele: Está-se a
vestir. A capital do seu reino era uma cidade muito alegre, graças
à quantidade de estrangeiros que por ali passavam; mas chegaram lá
um dia dois larápios, que, dando-se por tecelões, disseram
que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo. Não só
eram extraordinariamente belos os desenhos e as cores, mas além
disso os vestuários feitos com esse estofo, possuíam uma
qualidade maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e
para todos aqueles que não exercessem bem o seu emprego.
―São vestuários impagáveis, disse consigo o
sultão; graças a eles, saberei distinguir os inteligentes
dos tolos, e reconhecer a capacidade dos ministros. Preciso desse estofo!»
E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães [69]uma quantia avultada, para que pudessem começar
os trabalhos imediatamente.
Os homens levantaram com efeito
dois teares, e fingiram que trabalhavam, apesar de não haver
absolutamente nada nas lançadeiras. Requisitavam seda e oiro fino a
todo o instante; mas guardavam tudo isso muito bem guardado, trabalhando
até à meia noite com os teares vazios.
―«Preciso
saber se a obra vai adiantada».
Mas tremia de medo ao
lembrar-se que o estofo não podia ser visto pelos idiotas. E,
apesar de ter confiança na sua inteligência, achou prudente
em todo o caso mandar alguém adiante.
Todos os
habitantes da cidade, conheciam a propriedade maravilhosa do estofo, e
ardiam em desejos de verificar se seria exacto.
―Vou
mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o sultão;
tem um grande talento, e por isso ninguém pode melhor do que ele
avaliar o estofo.
O honrado ministro entrou na sala em que os
dois impostores trabalhavam com os teares vazios.
―Meu
Deus! disse ele consigo arregalando os olhos, não vejo
absolutamente nada!» Mas no entanto calou-se. Os dois tecelões
convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a sua opinião sobre os
desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava,
olhava, mas não via nada, pela razão simplicíssima de
nada lá existir.
―Meu Deus! pensou ele, serei
realmente estúpido? É necessário que ninguém o
saiba!... Ora esta! Pois serei tolo realmente! Mas lá confessar que
não vejo nada, isso é que eu não confesso.»
[70]«Então que lhe parece?»
perguntou um dos tecelões:
―«Encantador,
admirável! respondeu o ministro, pondo os óculos. Este
desenho... estas cores... magnífico!... Direi ao sultão que
fiquei completamente satisfeito.»
―«Muito
agradecido, muito agradecido», disseram os tecelões; e
mostraram-lhe cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe deles uma
descrição minuciosa. O ministro ouviu atentamente, para ir
depois repetir tudo ao sultão.
Os impostores
requisitavam cada vez mais seda, mais prata e mais oiro; precisavam-se
quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no bolso, é
claro; o tear continuava vazio, e apesar disso trabalhavam sempre.
Passado algum tempo, mandou o sultão um novo funcionário,
homem honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu
a este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e não
via nada.
―Não acha um tecido admirável?»
perguntaram os tratantes, mostrando o magnífico desenho e as belas
cores, que tinham apenas o inconveniente de não existir.
―Mas que diabo! Eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois
não serei eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito!
mas deixá-lo, não o deixo eu.»
Em seguida
elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua admiração
pelo desenho e o bem combinado das cores.
―É duma
magnificência incomparável, disse [71]ele
ao sultão. E toda a cidade começou a falar desse tecido
extraordinário.
Enfim o próprio sultão
quis vê-lo enquanto estava no tear. Com um grande acompanhamento de
pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois honrados funcionários,
dirigiu-se para as oficinas, em que os dois velhacos teciam continuamente,
mas sem fios de seda, nem de oiro, nem de espécie alguma.
―Não acha magnífico? disseram os dois honrados
funcionários. O desenho e as cores são dignos de vossa
alteza.»
E apontaram para o tear vazio, como se as outras
pessoas que ali estavam pudessem ver alguma coisa.
―Que
é isto! disse consigo mesmo o sultão, não vejo nada!
É horrível! serei eu tolo, incapaz de governar os meus
estados? Que desgraça que me acontece!» Depois de repente
exclamou: «É magnífico! Testemunho-vos a minha satisfação.»
E meneou a cabeça com um ar satisfeito, e olhou para o tear,
sem se atrever a declarar a verdade. Todas as pessoas de seu séquito
olharam do mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem ver coisa
alguma, e no entanto repetiam como o sultão: «É magnífico!»
Até lhe aconselharam a que se apresentasse com o fato novo no dia
da grande procissão. «É magnífico! é
encantador! é admirável!» exclamavam todas as bocas, e
a satisfação era geral.
Os dois impostores foram
condecorados e receberam o titulo de fidalgos tecelões.
Na véspera do dia da procissão passaram a noite em claro,
trabalhando à luz de dezasseis velas. [72]Finalmente
fingiram tirar o estofo do tear, cortaram-no com umas grandes tesouras,
coseram-no com uma agulha sem fio, e declararam, depois disto, que estava
o vestuário concluído.
O sultão com os
seus ajudantes de campo foi examiná-lo, e os impostores levantando
um braço, como para sustentar alguma coisa, disseram:
«Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve como uma teia
de aranha; é a principal virtude deste tecido.»
―Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.
―Se vossa alteza se dignasse despir-se, disseram os larápios,
provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.»
O sultão
despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe as calças, depois
a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se defronte do
espelho.
―Como lhe fica bem! que talhe elegante!
exclamaram todos os cortesãos. Que desenho! que cores! que vestuário
incomparável!»
Nisto entrou o grão-mestre
de cerimónias.
―Está à porta o
dossel sobre que vossa alteza deve assistir à procissão,
disse ele.»
―Bom! estou pronto, respondeu o sultão.
Parece-me que não vou mal.»
E voltou-se ainda uma
vez diante do espelho, para ver bem o efeito do seu esplendor. Os
camaristas que deviam levar a cauda do manto, não querendo
confessar que não viam absolutamente nada, fingiam arregaçá-la.
E, enquanto o sultão caminhava altivo sob um [73]dossel deslumbrante, toda a gente na rua e
às janelas exclamava: «Que vestuário magnífico!
Que cauda tão graciosa! Que talhe elegante!» Ninguém
queria dar a perceber, que não via nada, porque isso equivalia a
confessar que se era tolo. Nunca os fatos do sultão tinham sido tão
admirados.
―Mas parece que vai em cuecas», observou
um pequerrucho, ao colo do pai.
―É a voz da inocência,
disse o pai.
―Há ali uma criança que diz
que o sultão vai em cuecas.
«Vai em cuecas! vai em
cuecas!» exclamou o povo finalmente.
O sultão
ficou muito aflito porque lhe pareceu que realmente era verdade.
Entretanto tomou a enérgica resolução de ir até
ao fim, e os camaristas submissos continuaram a levar com respeito a cauda
imaginária.
[74]
Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro dum alforge
uma quantia em oiro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil réis
de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em casa um
honrado camponês levando o alforge. O nosso homem contou o dinheiro,
e disse:
―Deviam ser oitocentos mil réis, que foi
a quantia que eu perdi; no alforge encontro apenas setecentos; vejo, meu
amigo, que recebeste adiantados os cem mil réis de alvíssaras:
estamos pagos por conseguinte.»
O bom camponês, que
nem por sombras tocara no dinheiro, não podia nem devia
contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o juiz, que,
vendo a má fé do avarento, deu a seguinte sentença:
―Um de vós perdeu oitocentos mil réis; o outro
encontrou um alforge apenas com setecentos: Resulta daí claramente
que o dinheiro que o último encontrou não pode ser o mesmo a
que o primeiro se julga com direito. Por consequência tu, meu bom
homem, leva o dinheiro que encontraste, [75]e
guarda-o até que apareça o indivíduo que perdeu
somente setecentos mil réis. E tu, o único conselho que
passo a dar-te, é que tenhas paciência até que apareça
alguém que tenha achado os teus oitocentos mil réis.
[76]
Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou uma vez um
homem a quem perguntou como se chamava, de donde era, e que oficio tinha.
Este respondeu:
―«Senhor: eu sou um desgraçado,
um miserável; nasci no vosso reino, e chamo-me Ingratidão.»
―«Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei,
tomava-te ao meu serviço.»
O nosso homem prometeu
ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o seguisse. Desde que chegaram a palácio,
deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão
solícito, que o rei afeiçoou-se-lhe de tal modo, que o
nomeou seu intendente, confiando-lhe a administração da sua
casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho
desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores,
e não tinha compaixão dos desventurados.
Ora, na
vizinhança do palácio havia uma floresta cheia de animais
selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por
toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras,
caindo dentro, pudessem ser agarradas. [77]Um
dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos
seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro duma das
covas.
Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo
poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de
aspecto horroroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária
companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os
cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia
inteiramente perdida, porque por mais que gritasse, ninguém o vinha
socorrer.
Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem
extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar
lenha à floresta, para ganhar o pão necessário
à sua mulher e aos seus filhos. António também lá
foi nesse dia, como de costume, e pôs-se a trabalhar não
longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição
não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se e perguntou, quem
era que estava ali.
―«Sou o governador do palácio
do rei, e, se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em
companhia dum leão, dum lobo e duma enorme serpente.»
―«Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável
jornaleiro, não tendo para sustentar a minha família, mais
que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um
grande desarranjo; vê lá pois, se cumpres a tua promessa?
O intendente continuou:
―«Pela fé que
devo a Deus e a el-rei nosso senhor, [78]juro-te
que cumprirei a minha palavra.»
Confiado nisto o rachador
de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que
deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e
suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o
intendente.
Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu
salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de
jantar, porque tinha fome.
António deitou outra vez a
corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se,
porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; foi necessário
fazer uma quarta tentativa, para sair o governador. Este não perdeu
tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O
jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha
passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes
promessas do intendente. No dia seguinte logo pela manhã, foi o
pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro
perguntou-lhe o que queria.
―«Faça-me o
favor, respondeu o rachador de dizer a s.ex.ª o intendente que o
homem com quem ele esteve ontem na floresta lhe deseja falar.»
O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se, e
exclamou:
―«Vai dizer a esse homem, que eu não
vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não
conheço.»
O porteiro voltou, e repetiu o que o
governador lhe tinha dito.
O pobre homem tornou para casa mui
descorçoado, [79]e contou à
mulher a odiosa perfídia de que tinha sido vitima.
A
mulher disse-lhe:
―«Tem paciência; o sr.
intendente estava hoje decerto muito ocupado, e foi talvez por isso que te
não pôde receber.»
Estas palavras sossegaram
o rachador que outra vez nutriu esperanças.
Na manhã
seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio.
Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não
tornasse ali a aparecer, quando não ver-se-ia obrigado a empregar
meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:
―«Experimenta terceira e última vez, disse-lhe
ela, talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te
custe, não penses mais nisso.»
No dia seguinte o
bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à
força de suplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este
encolerizado atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem
duma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão.
A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe
em cima o marido, e levou-o para casa: As feridas levaram-lhe seis meses a
curar, estando sempre de cama, vendo-se obrigado a contrair dividas para
pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças,
voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá
chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço.
O leão conduzia um burro diante de si, e [80]este
burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão,
vendo António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de
respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho,
fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António doido de
alegria levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.
No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o
lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o
quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e
tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente,
que ele tinha tirado do fôjo, e que trazia na ponta da língua
uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores,―o branco, o
preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de
lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois dando um salto desapareceu
no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os
lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter
com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os
astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande
quantia. António respondeu-lhe que a não queria vender, mas
simplesmente saber se seria boa.
O velho respondeu:
―«São três as virtudes desta pedra: abundância
contínua, alegria imperturbável e luz sem trevas. Se alguém
ta comprar por menos dinheiro do que vale, tornará imediatamente
para a tua mão.»
António ficou muito
contente com esta resposta, [81]agradeceu ao
velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a
sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa
pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras nem
riquezas.
Tendo chegado aos ouvidos do rei a noticia destas
prosperidades, mandou chamar António, e mostrou-lhe desejos de
adquirir o precioso talismã.
António, vendo que
semelhante desejo era uma ordem, respondeu:
―«Devo
prevenir a vossa majestade de que, se esta pedra me não for paga
pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.»
―«Hei de pagar-ta bem, disse o rei.»
E
mandou-lhe dar trinta mil libras em oiro. No dia seguinte de manhã,
António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo
isto disse-lhe:
―«Torna a levá-la ao rei
imediatamente; não vá ele persuadir-se que lha furtaste.»
O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença
de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse aonde tinha guardado a pedra
preciosa.
―«Mandei-a meter com todo o cuidado
dentro dum cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.»
António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o
rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha
adquirido semelhante tesouro.
António contou-lhe tudo
que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos
animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e
disse-lhe:
[82]―«Homem
perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão,
porque és mais falso e mais pérfido que os animais ferozes,
e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será
feita. Dou a António as tuas honras e os teus bens, e a ti, hoje
mesmo, o castigo de seres enforcado.»
Admiraram todos a
sentença do rei, e António desempenhou as suas altas funções
com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido
para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.
[83]
Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa,
deliberou retirar-se a uma gruta solitária para se consagrar
inteiramente ao trabalho da sua salvação. Jejuando sempre,
orando, ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca
da ideia de Deus. Depois de ter assim vivido durante muitos anos, uma
noite lembrou-se de que já tinha merecido um lugar glorioso no paraíso,
e podia ser contado entre os santos mais notáveis.
Na
noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:
―Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em
porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as
recompensas eternas.
O ermitão, atónito, ao ouvir
estas palavras, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do
músico e mal o encontrou disse-lhe:
―Irmão,
diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e
penitências te tornaste agradável a Deus.
―Ora,
respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça, santo padre, não
zombes de mim. Nunca fiz [84]boas obras, e
quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um
pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os
outros.»
O austero ermitão continuou a insistir:
―Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda,
praticaste algum acto de virtude.»
―Em verdade não
poderia citar nem um só.»
―Mas então
como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que
exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu património
e o produto do teu ofício?»
―Não; mas
um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham
sido condenados à escravidão para pagar uma dívida.
Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa,
protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía para
resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia
encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria
feito outro tanto?»
A estas palavras o ermitão pôs-se
a chorar, e exclamou:
―Nos meus setenta anos de solidão
nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso
chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas dum pobre músico.»
[85]
Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de
S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta
da abadia, fresco, rosado, bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos
e activos, e o abade era indolente. Além disso o imperador tinha
mais dum motivo de queixa contra ele.
―Bons dias, senhor
abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida
razão três perguntas, às quais terá a bondade
de me responder daqui a três meses, contados dia a dia, em sessão
solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu
valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao
mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que v.
rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve
ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás
deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num
burro com a cara voltada para o rabo.»
O abade não
sabia a que santo se apegar. Mandou a todas as escolas, mas os doutores
mais [86]famosos pela sua ciência, não
lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época
fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês,
já não faltavam senão semanas, e afinal só
dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um
esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques
lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.
―Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro!
Está doente?»
―Estou, meu caro Félix,
estou muito doente.»
―Oh! meu rico amigo, eu lhe
darei alguma erva que o possa curar.»
―Infelizmente
não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas
três perguntas.»
―É então
latim?»
―Não, não é latim, senão
os doutores tinham-me arranjado tudo.»
―Visto que não
é latim, queira v. rev.ma dizer-me o que é: minha
mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.»
Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou
com o barrete ao ar, e disse-lhe:
―Se é apenas
isso, eu me encarrego de responder por si, e v. rev.ma pode
continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu
vista o seu hábito.»
Quando chegou o dia, o pastor
disfarçado com o hábito do abade de S. Gall, foi introduzido
na sala onde o imperador presidia o conselho imperial.
―Então,
senhor abade, parece que está mais magro, deu-lhe muito que pensar
a chave do [87]enigma? Vamos lá a ver
a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?»
―Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por
trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só
um dinheiro menos.»
―Bravo, senhor abade, a
resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de
me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há
de ser tão fácil dar a resposta. Vamos lá a ver:
quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?»
―Senhor,
se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir
constantemente passo a passo o sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro
horas.»
―Decididamente, v. rev.ma
é um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a
terceira, não dessas à que se responde com suposições.
Quem lhe há de dizer o que eu estou pensando, e como me há
de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra senhor
abade.»
―Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou
o abade de S. Gall; está enganado, porque eu sou o seu pastor.»
―Mas então tu é que deves ser o abade de S.
Gall, e desde já o ficas sendo.»
―Não
sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe
outra coisa.»
―Não tens mais que falar.»
―Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.»
Carlos Magno não era homem que faltasse à sua palavra.
[88]
Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma história―a
história duma boneca!
Não há muitos anos,
mas ainda não era a Cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infância
folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que
lhe enegreça o espírito a vista dos dois monumentos, que a
meu ver simbolisam as duas mais horríveis calamidades, que podem
aniquilar um homem―o hospital e a cadeia!―ainda não há
muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da
feira, divertindo-me a meu modo.
Cansado das inúmeras
figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica,
dispunha-me a dar por findo o espectáculo, quando novos personagens
me chamaram a atenção.
Eram os meus vizinhos ricos.
Aqui é preciso uma rápida explicação.
Das famílias da minha vizinhança, só conheço
três.
Qual destas três famílias será
mais feliz?...
Pelo que tenho notado, não têm que
invejar umas às outras.
[89]São
todas felizes; cada qual a seu modo.
Vi, pois, chegar os meus
vizinhos ricos.
Parou o carro, o criado saltou da almofada e
veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a
portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depô-la
no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa,
para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca
onde eu estava.
Não havia ali segredo a surpreender.
Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que
parecia agradecer àquela formosa criança a manifestação
de qualquer desejo.
No fim de meia hora possuía a minha
pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos
abastadas.
Tinha o necessário para montar completamente
a casa duma boneca... rica.
Faltava apenas a dona da
casa―a boneca.
Todo risos e atenções, o
lojista apresentou o que tinha de melhor.
Depois de muita
hesitação e de, já com os olhos, já com a voz,
consultar a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma
magnífica boneca de dois palmos de altura, com cabelo em bandeaux
e olhos azuis.
Uma boneca como as outras: cabeça e colo
de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.
Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribo de crianças,
que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por
chefe um honrado sapateiro.
[90]Alguns
deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caídos
do céu sobre um monte de lama.
São os meus
vizinhos pobres.
A segunda compõe-se de marido,
mulher e filha, e ocupa a casa imediata.
É como se
costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.
A
filha que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e
carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que
resistem à pressão.
São os meus vizinhos
remediados.
A terceira é a dos meus vizinhos ricos.
Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito
nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do
estado―nada falta àquela ditosa gente!
Compõe-se
igualmente de marido, mulher e filha.
Que formosa criança!...
Terá oito anos.
Franzina e pálida, com os cabelos
negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos
de dedos compridos e esguios, terminados por unhas duma cor de rosa
transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado―provavelmente
ainda a crescer―que há-de um dia ter o direito de lhas cobrir
de beijos.
Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este
mudou todas aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para
dentro do carro.
A boneca teve a honra de ser transportada pela
aristocrática criança.
[91]Saí
dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas
considerações, sugeridas pela quase indiferença, com
que aquela menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.
Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras
raparigas da mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de
pano, horrível artefacto português, em que os olhos são
representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de
retrós cor de rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos
por flocos de lã preta!
Quando cheguei a casa, já
na dos meus vizinhos remediados não havia luz.
Na dos
meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três
assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar,
provocavam os ralhos da mãe.
Quando, no dia seguinte,
cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.
Na
rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na
casa imediata não se via ninguém―estava a pequena na
mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla
pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo
rodar, com auxílio duma linha, uma magnífica caleche
descoberta, puxada por cavalos brancos.
Dentro da caleche
pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.
―«Aí
está a tua caricatura, minha feiticeira!...»―disse eu
de mim para mim. «Ensaias [92]nas
bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a
aprender a copiar... Sempre este mundo!...»
Retirei-me da
janela.
Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma
cena.
A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia
em que se vestia três e quatro vezes!
Ao que eu, porém,
achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!
Chamava-lhe sr.a D. Luísa; dava-lhe excelência;
sustentava finalmente com a boneca um destes diálogos de senhoras
da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.
Um dia,―estava eu de costas voltadas para a janela dos meus
vizinhos ricos―ouvi um grito de susto.
Era devido
a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.
Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da
janela.
O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a
vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente
de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer,
para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la
com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida
e suplicante:
«Não atire!... Dê-ma.»
Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não
dera fé até então.
Assim invocada, a
menina rica franziu levemente [93]as
sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde
vinha a súplica.
Vendo uma criança, pouco mais ou
menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:
―«Já não presta!... Está esmurrada!...»
―É o mesmo!... Dá-ma?...―bradou a outra,
cujos olhos brilhavam de cobiça.
―«Dou...»―volveu
a rica, encolhendo novamente os ombros.
E, caminhando para o
canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que
tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes
da rua.
Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para
exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe a que ela
ainda não podia acreditar, que fosse sua!
Por espaço
de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.
A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em ela se vestia quatro
vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência!
Chamavam-lhe sr.a D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos,
do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas finalmente,
completamente estranhas para ela!
E a desgraçada perdia
as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a
desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura:
parecia uma nódoa, um estigma!
Nos primeiros tempos,
enquanto durou o vestido, [94]que trouxera no
corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.
Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto, fitas
velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem
contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado
ao acaso, na loja duma adeleira.
Mas o vestido foi-se tornando
velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações do moiré,
até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa―-no
Inverno!―xaile e manta na cabeça.
Muito mal lhe
ficava aquilo!... Àquela boneca custava-lhe de certo o ver-se tão
mal arranjada.
Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e
balbuciei:
―É justo!... Cada qual segundo as suas
posses.»
Por esse tempo, entrei em relações
com o meu vizinho sapateiro.
O honrado homem soubera, que eu me
queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a
primeira ocasião, para me pedir desculpa.
Vendo-me
conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de
nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave
risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.
Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita
de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.
Chama-se Maria.
Por um destes acasos da Providência, que
parece [95]às vezes comprazer-se em
criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.
Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do
sapateiro, fiquei deveras pasmado quando o pai ma apresentou.
E
bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia
verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta
é a minha Maria!»
E tinha razão!
Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo era.
―É quem vale à mãe!...―acrescentou
o velho.»―Ali, onde a vê, faz o serviço duma
mulher!... Há seis meses, quando a minha santa esteve doente―bem
pensei que não arribasse!―a pequena era quem cozinhava e
olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem!?... Olhe que
aquela pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao pé
da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a
queria deixar!...»
E o desvanecido pai enxugou, com a
manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se
sim ou não se devia despenhar.
Fazia gosto ver aquela
pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por
um lenço branco.
Desde que o pai me deu tão boas
informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da
porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias à pequena.
Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma
boneca deitada nos joelhos.
[96]―Eu
conheço aquela boneca!...―disse eu de mim para mim.
E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:
―Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...
Foi
ali a menina da vizinha!―respondeu a pequenita, corando de prazer.
Era escusado dizer-mo.
Maria pegara na boneca e voltara-a
de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a
mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.
De
tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se com ela.
―Quem te viu e quem te vê!...―pensava eu.
Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lha
podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!
Roçada
por aquelas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada
como péla, submetida a torturas, era, ainda assim, singularíssimo
o aspecto da triste!
Dava ares duma duquesa que, por
necessidade, houve sido levada a fraternizar com o povo.
A mísera
mudara mais uma vez de nome!...
De sr.a D. Ana
passara a ser sr.a Rosinha e tratavam-na por vossemecê.
Trajava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço
na cabeça.
Era um prazer para mim o escutar as
conversas, que Maria sustentava com a boneca.
Esta, umas vezes,
representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de
perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por
estar tudo tão caro, por haver [97]falta
de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que
mais familiares eram à pequena.
Outra vezes passava a
boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água
à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a
despedir.
Já o leitor vê que, apesar da bondade
Maria, deixara de ser feliz.
Iam longe os bons tempos em que
ela, rica, morava no palácio vizinho!
Desmaiada de
cores, quase perdido o cabelo, semi-apagados os olhos, desfeito o carmim
dos lábios, a boneca não prometia longa duração.
Foi este pelo menos, o prognóstico que fiz a última
vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona
que o seu destino lhe dera.
Coitada!... Bem longe estava de lhe
imaginar o fim!
Um dia chovia a cântaros!―o
enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para
cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.
Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e
olhava melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto ouvi
um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto...
Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço
voando, e foi cair no leito do enxurro...
Olhei... Era a
boneca!...
A mísera, arrastada pela água, vogou
rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a,
[98]e, depois de a fazer girar três ou
quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a
pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir
sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na
passagem!
Será pieguice, será o que o leitor
quiser; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.
Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à
vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:
―Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?
―Não
fui eu...―balbuciou a pequena, chorando.―Foi ali o Joaquim!...
―E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...
―Ora!...―respondeu
o garoto com enfado.―Ora!... Estava velha... e feia!...
Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.
Pobre boneca!
[99]
Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia,
foi surpreendido pela noite à entrada duma aldeia. Procurou dum
lado para outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas
estavam já todas fechadas, não se via nem um raio de luz
através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim dum beco
se ouvia o barulho do mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio
havia uma pequena luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou ao pé
do muro duma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha
veio abrir.
―Fazia favor, disse-lhe o bom Jesus, de me
dar agasalho por esta noite? Não se havia de arrepender.»
E acrescentou:
―Visto que já todos estão
deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?»
―Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite
que ia ser perseguido por um credor desapiedado, se lhe não pagasse
amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o
pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida.
Depois disto não nos fica nada, [100]e
não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus
quiser!»
Ao dizer isto o camponês limpava o suor da
testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O
Senhor teve dó dele, e disse-lhe:
―«Não
desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias
de arrepender de ma ter dado. Vou provar-to.»
Pegou na
candeia, que estava suspensa numa das traves do celeiro, e aproximou-a do
trigo.
―Que vai fazer? disseram assustados os
trabalhadores, vai deitar fogo a tudo!»
Mas no mesmo
instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga,
desceu uma chuva de grãos prodigiosa. À vista dum tal
milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.
―Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua
pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás
recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te
enriquece.»
Dito isto desapareceu.
E a chuva
dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão
alto como a igreja.
O camponês pagou as suas dividas,
comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se orgulhoso
e altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários,
tanto e tanto fizeram, que se arruinaram, e, como tinham sido maus nos
tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria.
Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou [101]no celeiro, e, recordando-se do milagre que o
enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na
candeia, aproximou-a dum feixe de palha, comunicou-se o fogo, ardeu a casa
e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais
absoluta.
[102]
―Quem procura sempre encontra, diz um velho provérbio;
quero ver por experiência, disse um dia um rapaz, se esta máxima
é verdadeira.
Pôs-se a caminho, e foi
apresentar-se ao governador duma grande cidade.
―Senhor,
disse-lhe ele, há muitos anos que vivo tranquilo e solitariamente,
e a monotonia fatigou-me. Meu amo disse-me muitas vezes―Quem
procura sempre encontra, e quem porfia mata caça. Tomei
uma grande resolução. Quero casar com a filha do rei.
O governador mandou-o embora, imaginando que era um doido.
O rapaz voltou no dia seguinte, no outro e no outro, e assim durante
uma semana, sempre com a mesma vontade inabalável, até que o
rei ouviu falar o rapaz da sua louca pretensão. Surpreendido com
uma ideia tão extravagante, e, querendo divertir-se, disse-lhe o
rei:
―Que um homem distinto pela hierarquia, pela
coragem, pela ciência, pensasse em casar com uma princesa, nada mais
natural. Mas tu, quais são os teus títulos? Para seres o
marido [103]de minha filha é necessário
que te distingas por alguma qualidade especial ou por um acto de valor
extraordinário. Ouve. Perdi há muito tempo no rio um
diamante dum valor incalculável. Aquele que o encontrar obterá
a mão de minha filha.
O rapaz, contente com esta
promessa, foi estabelecer-se nas margens do rio; logo de manhã começava
a tirar água com um balde pequeno, e deitava-a na areia, e, depois
de ter assim trabalhado durante horas e horas, punha-se a rezar.
Os peixes inquietos ao verem tão grande tenacidade, e
receando que chegasse a esgotar o rio, reuniram-se em conselho.
―Que quer este homem? perguntou o rei dos peixes.»
―Encontrar um diamante que caiu ao rio.»
―Então,
respondeu o velho rei, sou de opinião que lho entreguem, porque
vejo qual é a têmpera da vontade deste rapaz; mais fácil
seria esgotar as últimas gotas do rio, do que desistir da sua
empresa.»
Os peixes deitaram o diamante no balde do
rapaz, que casou com a filha do rei.
[104]
Morreu uma vez um rei, deixando quatro filhos, e sem ter
designado o sucessor. Reuniu-se a corte, e decidiu-se que a coroa devia
pertencer, não ao mais velho dos quatro filhos, mas sim ao mais
digno.
Resolveram além disso que o cadáver do rei
fosse posto de pé contra um muro, e que o príncipe que
acertasse melhor com uma flecha naquele alvo, seria o escolhido para
sucessor.
Começou o mais velho. Esticou a corda do arco,
apontou durante muito tempo, e a flecha foi atravessar a mão
esquerda do defunto. O príncipe soltou grito de alegria, cuidando
que seus irmãos atirariam pior, e que por conseguinte seria ele
quem viria a reinar.
O segundo acertou em cheio na cara do rei,
soltando um grito ainda mais alegre do que o outro príncipe.
O terceiro varou o coração de seu pai, e os seus
gritos de triunfo quase que chegavam ao céu, porque lhe parecia
impossível acertar melhor.
Quando chegou a vez do quarto
filho, tiveram de lhe meter nas mãos as flechas e o arco: mas,
[105]desde que olhou para o alvo, arrojou as
armas longe de si, e desatou a chorar:
―«Oh! meu
pai! meu querido pai! exclamou ele, como poderei eu jamais consolar-me de
ver o teu corpo crivado de flechas pela mão de teus próprios
filhos!»
Os grandes da corte ouvindo isto proclamaram-no
rei, como sendo o mais digno.
[106]
O primeiro véu de Maria era dum linho mais alvo do que
a neve. Bordara-o com as suas mãos, e ornara-o com uma grinalda de
flores de seda tão bem imitadas, que as abelhas, iludidas, vinham
pousar-lhe em cima.
Este véu branco só o trouxe
uma vez, no dia da sua primeira comunhão.
O segundo véu
de Maria era de lã negra. Principiou-o no mesmo dia em que sua mãe
lhe morrera, deixando-a sozinha, sem amparo, na casa triste e abandonada.
Era bordado de perpétuas roxas, como as dos sepulcros de mármore,
e os olhos de Maria tinham-no orvalhado com todas as suas lágrimas.
O véu negro só o trouxe uma vez,―no dia em que
se tornou esposa de Jesus no convento da Avé-Maria.
O
terceiro véu era feito dum retalho do azul celeste, bordado de
estrelas, e perfumado com aromas suavíssimos.
Foi o seu
anjo da guarda, que lho deu no mesmo dia em que ela entrou no paraíso.
[107]
Um dia três pequenos iam juntos para a escola, e
disseram uns aos outros, que não havia nada no mundo mais
aborrecido que estudar: «Vamos para o bosque que encontraremos
lá toda a espécie de lindos bichinhos, que não fazem
outra coisa senão brincar, e nós brincaremos com eles.»
Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da activa formiga
e da abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar,
disse-lhes:
―Brincar? Preciso construir com estas ervas
uma ponte nova, porque a outra já não está sólida.»
―Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões
para o Inverno.»
―Eu, disse dali a pomba, tenho
muitas coisas que levar para o meu ninho.»
―Eu,
disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês, mas ainda
hoje não lavei o meu focinho. Antes de mais nada, tenho que fazer a
minha toilette.»
E tu, lindo regato, disseram os
pequenos desertores, [108]que passas o tempo
a saltar e a tagarelar, também não queres brincar connosco?»
―Estes pequenos são tolos, disse o regato. Como? Vocês
então imaginam que eu não tenho que fazer? De noite ou de
dia, não descanso nem um momento. Tenho que dar de beber aos homens
e aos animais, às colinas, aos vales, aos campos e aos jardins.
Tenho que apagar os incêndios, tenho que fazer mover as forjas, os
moinhos, as serralharias. Nem hoje acabara, se lhes quisesse contar o que
tenho que fazer. Não posso perder um instante. Adeus, adeus. Estou
com muita pressa.»
Os pequenos, desconcertados,
puseram-se a olhar para o ar, e viram um pintassilgo, em cima dum ramo.
―Olha! tu, que não tens nada que fazer, queres brincar
connosco?»
―Nada que fazer? vocês estão
a mangar comigo, disse o pintassilgo. Todo o dia tenho que apanhar moscas
para comer. Tenho além disso que tomar parte no concerto dos
passarinhos, tenho que alegrar o operário com o meu chilrear, e
tenho que adormecer as crianças com uma outra cantiga, que à
noite e de madrugada celebre a bondade do Criador. Ide-vos embora, preguiçosos,
ide cumprir o vosso dever, e não tornem a vir incomodar os
habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a desempenhar.»
Os pequenos aproveitaram a lição, e compreenderam que
o prazer só é legítimo, quando é a recompensa
do trabalho.
[109]
Era uma vez uma rapariguinha muito bonita e cheia de bondade,
a quem sua mãe e sua avó adoravam extremosamente. A boa da
avozinha, que passava o tempo a imaginar o que poderia agradar à
neta, deu-lhe um dia um chapéu de veludo vermelho. A pequenita
andava tão contente com o seu chapéu novo, que já não
queria pôr outro, e começaram a chamar-lhe a menina do
chapelinho encarnado.
A mãe e a avó moravam em
duas casas separadas por uma floresta de meia légua de comprido.
Uma manhã a mãe disse à pequenita:
―Tua
avó está doente, e não pôde vir ver-nos. Eu fiz
estes doces, vai levar-lhos tu com esta garrafa de vinho. Toma cuidado não
quebres a garrafa, não andes a correr, vai devagarinho e volta
logo.»
―Sim, mamã, respondeu ela, hei-de
fazer tudo como deseja.»
Atou o seu avental, meteu num
cestinho a garrafa e os doces, e pôs-se a caminho. No meio da
floresta um lobo aproximou-se dela. A pequenita, que nunca vira lobos,
olhou para ele sem medo algum.
[110]―Bons
dias, chapelinho encarnado.»
―Bons dias, meu
senhor, respondeu delicadamente a pequena.»
―Onde
vais tão cedo?»
―A casa da minha avó
que está doente.»
―E levas-lhe alguma coisa?»
―Levo, sim senhor; levo-lhe uns bolos e uma garrafa de vinho
para lhe dar forças.»
Diz-me onde mora a tua, avó,
que também a quero ir ver.»
―É perto,
aqui no fim da floresta. Há ao pé uns carvalhos muito
grandes, e no jardim há muitas nozes.»
―Ah!
tu é que és uma bela noz, disse consigo o lobo. Como eu
gostava de te comer.» Depois continuou em voz alta:―Olha, que
bonitas árvores e que lindos passarinhos. Como é bom passear
nas florestas, e então que quantidade de plantas medicinais que se
encontram!»
―O senhor, é com certeza um médico,
respondeu a inocente pequenita, visto que conhece as ervas medicinais.
Talvez me pudesse indicar alguma que fizesse bem a minha avó.»
―Com certeza, minha filha, olha, aqui está uma, e esta
também, e aquela.» Mas todas as plantas que o lobo indicava,
eram plantas venenosas. A pobre criança, queria-as apanhar para as
levar a sua avó.
―Adeus, meu lindo chapelinho
encarnado, estimei muito conhecer-te. Com grande pena minha, tenho de te
deixar para ir ver um doente.»
E pôs-se a correr em
direcção da casa da avó, enquanto que a pequerrucha
se entretinha em apanhar as plantas que ele tinha indicado.
[111]Quando o lobo chegou à porta da
velha, achou-a fechada e bateu, mas a avó não se podia
levantar da cama, e perguntou: Quem está aí?»
―É o chapelinho encarnado, respondeu o lobo imitando a
voz da pequerrucha. A mamã manda-te bolos e uma garrafa de vinho.»
―Procura debaixo da porta disse a avó, que encontrarás
a chave.»
Encontrou-a, abriu a porta, engoliu duma bocada
a pobre velha inteira, e depois, vestindo o fato que ela costumava usar,
deitou-se na cama.
Pouco depois entrou a pequenita, assustada e
admirada de encontrar a porta aberta, porque sabia o cuidado com que a avó
a costumava ter fechada.
O lobo tinha posto uma touca na cabeça,
que lhe escondia uma parte do focinho, mas o que lhe ficava descoberto era
horrível.
―Ai! avozinha, disse a criança,
porque tens tu as orelhas tão grandes?»
―É
para te ouvir melhor, minha filha.»
―E porque estás
com uns olhos tão grandes?»
―É para
te ver melhor.»
―E para que estás com os braços
tão grandes?»
―É para te poder abraçar
melhor.»
―E Jesus! para que tens hoje uma boca tão
grande e uns dentes tão agudos?»
―É
para te comer melhor.» A estas palavras o lobo arremessou-se
à pobre pequena, e engoliu-a. Como estava repleto, adormeceu, e
começou a ressonar muito alto. Um caçador que passava por
acaso, perto da casa, e que ouviu aquele barulho, disse consigo: A pobre
velha está com um pesadelo, [112]está
pior talvez, vou ver se precisa dalguma coisa.» Entra, e vê o
lobo estendido na cama.
―Olá, meu menino, diz ele:
há muito tempo que te procuro.»
Armou a sua
espingarda, mas parando logo: Não, disse ele, não vejo a
dona da casa. Talvez o lobo a engolisse viva. E em lugar de matar o animal
com uma bala, pegou na sua faca de mato, e abriu-lhe cuidadosamente a
barriga. Apareceu logo o chapelinho encarnado e saltou para o chão,
gritando:
―Ai! que sítio medonho onde eu estive
fechada!
A avó saiu também contentíssima
por ver outra vez a luz do dia.
O lobo continuava a dormir
profundamente, e o caçador meteu-lhe então duas grandes
pedras na barriga, coseu tudo, e escondeu-se com a avó e a neta
para verem o que se ia passar.
Decorrido um instante o lobo
acordou, e como tinha sede, levantou-se para ir beber ao lago. Ao andar
ouvia as pedras baterem uma na outra, e não podia compreender o que
aquilo era; com o peso, caiu no lago, e afogou-se.
O caçador
tirou-lhe a pele, comeu os bolos e bebeu o vinho com a velha e a sua neta.
A velha sentia-se remoçar, e o chapelinho encarnado prometeu não
tornar a passar na floresta, quando sua mãe lho proibisse.
[113]
Andando um dia Carlos Magno à caça com uma
comitiva numerosa, perseguiu um veado, que dava tais saltos, e corria por
tal forma, que, apesar da ligeireza do seu cavalo, o rei perdeu-lhe
completamente a pista. Foi só então que viu que estava só,
tendo a sua corte ficado muito para traz; sentindo-se fatigado, entrou ao
cair da noite numa choupana solitária no meio da floresta. Em roda
da lareira estavam deitados quatro ladrões. Os salteadores
levantaram-se logo, como despertados pelo barulho da entrada do viajante;
cada um deles tinha tido um sonho, que lhe quiseram logo contar.
O primeiro que tomou a palavra exprimiu-se desta maneira:
―No meu sonho, tirava eu o capacete de ouro à pessoa que
acaba de entrar aqui, e punha-o na minha cabeça.»
―Eu, disse o outro, sonhei que vestia a sua couraça.»
―E eu que estava pondo o seu manto.»
―E
eu, disse o quarto ladrão, para lhe fazer favor, passava em roda do
meu pescoço aquela [114]pesada cadeia
de ouro, da qual está pendurada a sua trompa de caça.»
―Vejo bem, disse o imperador, que têm tenção
de me roubar tudo, e mesmo a vida. Reconheço que estou em poder de
vocês, e que toda e qualquer resistência seria inútil.
Não lhes peço senão uma coisa, é que me deixem
tocar pela última vez na minha trompa de caça.»
Os salteadores responderam que consentiam, visto que o último
pedido dum moribundo deve ser respeitado.
Carlos Magno levou
à boca a sua magnífica trompa de marfim, e tirou dela sons tão
fortes e sonoros, que em menos dalguns minutos todos os seus companheiros
de caça e a sua comitiva estavam ao pé dele.
―Agora, disse o imperador, dirigindo-se aos salteadores, agora também
eu devo contar o sonho que tive. Sonhei que vocês todos iam ser
enforcados diante deste casebre.»
E o sonho realizou-se
imediatamente.
[115]
Era uma vez um rei, que quis levantar uma igreja magnífica
em honra da Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse
contribuir para a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o
edifício se concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei
gravar numa pedra do mármore uma inscrição em letras
de ouro, que dizia que só ele, e mais ninguém, tinha levado
a cabo aquela obra monumental. Mas na noite seguinte o nome do rei foi
apagado da inscrição, e substituído por o duma pobre
mulherzinha do povo. O rei no dia seguinte tornou a mandar pôr o seu
nome na inscrição, e de novo foi substituído pelo da
pobre mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de cólera,
ordenou então que lhe trouxessem a mulher à sua presença:
―Proibi a todos os meus vassalos, disse-lhe ele, que contribuíssem
fosse com o que fosse para a edificação desta igreja; vejo
que não cumpriste as minhas ordens.»
―«Senhor,
respondeu a velhinha toda trémula, eu respeitei as vossas ordens,
apesar da mágoa [116]que sentia por não
poder oferecer o meu pequenino óbolo em honra da Virgem; mas
julguei não desobedecer a vossa majestade, deixando por vezes de
jantar para comprar um pouco de feno, que eu levava às escondidas
aos bois que conduziam as pedras destinadas à construção
da igreja.»
―«O teu nome é mais digno
do que o meu de figurar em letras de ouro na inscrição do
monumento, disse-lhe o rei.»
Mas na noite seguinte uma mão
invisível restabeleceu na lápide da igreja o nome do rei,
que desde então lá se conserva ainda.
[117]
Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos,
por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude
marcial, de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e
vermelhos! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a
tampa da caixa em que eles estavam, foi este grito: «Olha soldados
de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria.
Tinham-lhos dado de presente no dia dos anos, e o seu divertimento era
formá-los sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se
pareciam maravilhosamente uns com os outros, excepto um, que tinha uma
perna de menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar, e
já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os
outros não estavam mais firmes nas duas pernas do que ele na sua
única, e é este o que precisamente nos interessa.
Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros
brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo castelo
de papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe [118]o
interior dos salões. À volta era circundado duma floresta em
miniatura, que se reflectia poeticamente num pedaço de espelho que
fingia um lago, onde nadavam pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era
encantador, mas não tanto como uma menina que estava à
porta, e que era também de papel, vestida com um lindo vestido de
cassa, apertado com um cinto de fivela azul. A menina tinha os braços
arqueados, porque era dançarina, e tinha uma perninha levantada a
tal altura, que o soldado de chumbo não a podia ver, e imaginou
que, como ele, não tinha senão uma perna.
―Ali
está a mulher que me convém, pensou ele, mas é uma
grande fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de
vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar para ela.
No entanto preciso conhecê-la.»
Deitou-se atrás
duma caixa de tabaco, e dali podia ver à sua vontade a elegante dançarina,
que estava sempre num pé só, sem perder o equilíbrio.
À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e as
pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto,
começaram a divertir-se, fizeram guerras, e a final deram um baile.
Os soldados de chumbo mexiam-se, e remexiam-se na sua caixa, porque
queriam lá ir; mas como haviam eles tirar a tampa? O quebra-nozes
começou a dar cabriolas e saltos mortais, o lápis traçou
mil arabescos fantásticos numa lousa, enfim o barulho tornou-se tal
que o canário acordou, e pôs-se a cantar. Os únicos
que [119]estavam quietos eram o soldado de
chumbo e a dançarinazinha. Ela no bico do pé, e ele numa
perna só, a espreitá-la.
Deu meia noite, e zás,
a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé,
saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de surpresa.
―Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sítio.»
Mas o soldado fez que não ouvia.
―Espera até
amanhã, e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.»
No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado
de chumbo à janela, mas de repente ou por influência do
feiticeiro ou por causa do vento caiu à rua de cabeça para
baixo. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a
barretina, e com a baioneta enterrada entre duas lajes.
A
criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo, mas
estiveram quase a esmagá-lo, sem darem por ele. Se o soldado
tivesse gritado: «Cautela!» te-lo-íam achado, mas ele
julgou que seria desonrar a farda. A chuva começou a cair em
torrentes, e tornou-se num verdadeiro dilúvio. Depois do aguaceiro
passaram dois garotos.
―Olá! disse um deles, um
soldado de chumbo por aqui! Vamos fazê-lo navegar.»
Construíram um barco dum bocado de jornal velho, meteram o soldado
de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois
garotos corriam ao lado, e davam grito de prazer. Que ondas! Santo Deus!
Que força de corrente! Mas também tinha chovido tanto! O
barco jogava [120]duma maneira horrorosa, mas
o soldado de chumbo conservava-se impassível, com os olhos fixos e
a espingarda ao ombro.
De repente o barco foi levado para um
cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos
soldados.
―Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante
do feiticeiro que me meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela
linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão
fosse duas vezes maior.»
Dali a pouco apresentou-se um
enorme rato de água; era um habitante do cano.
―Venha
o teu passaporte.»
Mas o soldado de chumbo não
disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco
continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes, e
gritando às palhas, e aos cavacos:―Façam-no parar, façam-no
parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.»
Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do
dia, e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o homem mais
valente. Havia na extremidade do cano uma queda de água tão
perigosa para ele, como é para nós uma catarata.
Aproximava-se dela cada vez mais, sem poder parar, com uma rapidez
vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda de água, e o
pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se
atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com o susto.
O barco, depois de ter andado à roda durante muito tempo,
encheu-se de água, e estava a ponto [121]de
naufragar. A água já chegava ao pescoço do soldado, e
o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a água
passou por cima da cabeça do nosso herói. Nesse momento
supremo, pensou na gentil dançarinazinha, e pareceu-lhe ouvir uma
voz que dizia:
―Soldado: o perigo é enorme, a
morte espera-te.»
O papel rasgou-se, e o soldado passou
através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.
Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E
além disso, que talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido,
o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.
O
peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo, até que
enfim parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a
luz do dia, e alguém exclamou:
―Olha um soldado de
chumbo!»
O peixe tinha sido pescado, exposto na praça,
vendido, e levado para a cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma
enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a
sala, onde toda a gente quis admirar esse homem extraordinário, que
tinha viajado na barriga dum peixe. No entretanto o soldado não se
sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali―tanto é
verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo―achou-se
na mesma sala, de cuja janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e
os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio, e a
adorável dançarina sempre [122]de
perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa
vontade teria derramado lágrimas de chumbo, mas não era
conveniente. Olhou para ela, ela olhou para ele, mas não disseram
uma palavra um ao outro.
De repente um dos pequenos pegou nele,
e sem motivo algum deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da
caixa do rapé.
O soldado de chumbo lá estava
perfilado, alumiado por um clarão sinistro, e sofrendo um calor
terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se
pudesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus
desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também
olhava para ele. Sentia-se derreter, mas, sempre intrépido,
conservava a espingarda ao ombro. De repente abriu-se uma porta, o vento
arremessou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que
desapareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já não
era mais que uma pequena massa informe.
No dia seguinte, quando
a criada veio tirar a cinza, encontrou um objecto que tinha o feitio dum
pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina
era a fivela do cinto azul que o lume tinha enegrecido.
[123]
João era filho duma pobre viúva, bom rapaz, mas
um pouco simplório. A gente da aldeia chamava-lhe por brincadeira
João Pateta. Um dia sua mãe mandou-o à feira comprar
uma foice. À volta, começou a andar com a foice à
roda, de maneira que a foice caiu em cima duma ovelha, e matou-a.
―Pateta, disse-lhe sua mãe, o que deverias ter feito
era pôr a foice em um dos carros de palha ou de feno dalgum dos
vizinhos.»
―Perdão, mãe, respondeu
humildemente João, para a outra vez serei mais esperto.»
Na semana seguinte mandaram-no comprar agulhas, recomendando-lhe que
as não perdesse.
―Fique descansada. E voltou todo
orgulhoso.»
―Então, João, onde estão
as agulhas?»
―Ah! estão em lugar seguro.
Quando saí da loja em que as comprei, ia a passar o carro do
vizinho carregado de palha; meti lá as agulhas, não podem
estar em sítio melhor.»
―De certo, estão
em lugar de tal modo seguro, que não há meio de as tornar a
ver. Devias tê-las espetado no chapéu.»
[124]―Perdão, respondeu João,
para a outra vez, hei-de ser mais esperto.»
Na outra
semana, por um dia de calor, João foi dali uma légua comprar
uma pouca de manteiga. Lembrando-se do último conselho de sua mãe,
pôs a manteiga dentro do chapéu e o chapéu na cabeça.
Imagine-se o estado em que voltou para casa, com a cara a escorrer
manteiga derretida.
A mãe já tinha medo de o
mandar fazer qualquer recado. No entanto um dia resolveu-se a mandá-lo
à feira vender duas galinhas.
―Ouve bem, não
vendas pelo primeiro preço. Espera que te ofereçam outro.»
―Está entendido, respondeu João.»
Foi para a feira. Um freguês chegou-se a ele.
―Queres seis tostões por essas galinhas?»
―Ora adeus! minha mãe recomendou-me, que não aceitasse
o primeiro preço, mas que esperasse o segundo.»
―E tens muita razão. Dou-te um cruzado.»
―Está bem. Parece-me que tinha feito melhor em aceitar o
primeiro, mas, como cumpro as ordens de minha mãe, ela não
tem que me ralhar.»
Depois disto, João foi
condenado a ficar em casa. Sua mãe sabia que mangavam com ele, e se
riam dela. Uma manhã quis fazer uma experiência, e disse-lhe:
―Vai vender este carneiro à feira. Mas não te
deixes enganar. Não o entregues senão a quem te der o preço
mais elevado.»
―Está bem, agora entendo, e
sei o que hei de fazer.»
[125]―Quanto
queres por esse carneiro?
―Minha mãe disse-me que
o não vendesse senão pelo preço mais elevado.
―Quatro mil réis?»
―É o
preço mais elevado?»
―Pouco mais ou menos.»
―É minha a lã e o carneiro, disse um rapaz que
trepara a uma escada.
―Quanto?»
―Dez
tostões:»
―É menos, respondeu
timidamente o João.»
―Sim, mas vês até
onde chega esta escada. Em toda a feira não há um preço
mais elevado.»
―Tem razão. É seu o
carneiro.»
Desde esse dia o João Pateta não
tornou a ser encarregado de vender ou comprar coisa alguma.
[126]
Era uma vez uma rainha, que se lastimava por não ter
filhos. Um dia de Inverno, enquanto bordava num bastidor de ébano
olhando de vez em quando pela janela, para ver cair os flocos de neve no
chão, distraída, picou-se num dedo e saiu uma gota de
sangue.
―Como eu desejaria ter uma filha, que tivesse uns
beiços tão vermelhos como este sangue, uma pele branca como
esta neve, e uns cabelos negros como este ébano.»
Algum tempo depois os seus desejos realizaram-se, e deu à luz uma
filha, que tinha uma linda boca vermelha, cabelos negros e o corpo tão
branco, que lhe chamavam Branca de Neve. Porém esta feliz mãe
não gozou muito tempo da sua felicidade. Morreu, e o rei tornou a
casar com uma mulher duma grande beleza, e dum orgulho não menos
extraordinário. Era tão formosa que se considerava a mulher
mais perfeita do universo. Algumas vezes fechava-se no seu quarto, e
colocando-se diante dum espelho mágico dizia-lhe:
―Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda
que há no mundo?»
―És tu, respondia o
espelho.»
[127]No entanto
Branca de Neve crescia, e de dia para dia se tornava mais formosa. Tinha
apenas sete anos, e já ninguém a podia ver sem ficar
maravilhado. Um dia a orgulhosa rainha, sentando-se diante do seu espelho,
disse-lhe:
―Meu fiel espelho, responde-me: qual é
a mulher mais linda que há no mundo?»
―Não
és tu, não és tu. Branca de Neve é mais linda.»
A estas palavras a orgulhosa rainha sentiu no coração
uma dor aguda, como uma punhalada, e ao mesmo tempo sentiu um ódio
mortal pela inocente Branca. Não podia sossegar nem de dia, nem de
noite. Para satisfazer o seu ódio, chamou um criado, e disse-lhe:
―Quero que Branca desapareça. Conduze-a à
floresta, mata-a, e, para me provar que as minhas ordens foram executadas
pontualmente, traz-me o coração.»
O criado
levou Branca para o fundo da floresta, pegou numa faca, e dispunha-se a
executar a ordem que recebera. A pobre criança chorava e
lamentava-se, e pedia-lhe que a não matasse, porque ela não
tinha feito mal a ninguém, e queria viver. O criado, comovido com
aquelas lágrimas, não teve coragem, e abandonou-a na
floresta, pensando que se as feras a devorassem a culpa não era
dele, mas sim da rainha. Assim fez, e para mostrar o coração
de Branca à rainha, matou um cabrito, e tirou-lhe o coração.
A rainha ao ver aqueles despojos sangrentos ficou contentíssima, e
disse consigo: Enfim, morreu a minha rival, e nenhuma mulher no mundo
é tão bela como eu.
[128]A
pobre Branca, abandonada na floresta, não tinha morrido, mas estava
cheia de medo. Pela primeira vez na sua vida punha os pés nas
pedras, e andava pelo meio do mato que lhe rasgava o vestido, e pela
primeira vez também via animais ferozes. Mas as feras não
lhe faziam mal algum, o deixavam-na andar. No fim do dia tinha atravessado
sete montanhas.
À noite chegou ao pé duma casinha
muito pequenina. Estava morta de fome e de sede. Entrou na casa, onde tudo
estava muito arranjado e muito limpo. Havia uma mesa pequena, e sobre a
mesa, coberta com uma toalha de brancura irrepreensível, sete
pratos pequenos, sete garrafas pequenas, e ao longo da parede sete camas
muito pequeninas. Branca comeu um pouco do que estava nos pratos, bebeu
uma gota de vinho de cada copo, deitou-se na cama, rezou, e adormeceu
profundamente.
Momentos depois os donos da casa entraram. Eram
sete mineiros pequeninos, cada um com uma lanterna dependurada na cintura.
Viram logo que tinham gente em casa. Um deles disse:
―Quem
comeu o meu pão?»
E os outros sucessivamente:
―Quem pegou no meu garfo?»
―Quem comeu
o meu caldo?»
―Quem bebeu o meu vinho?»
E enfim um deles:
―Quem está aí
deitado na minha cama?»
Reuniram-se todos à roda
do pequeno leito em que dormia Branca. À luz das lanternas viram o
doce rosto da criança, que dormia tranquilamente, [129]e afastaram-se sem fazer bulha, para a não
acordar. Branca no dia seguinte de manhã ficou um pouco assustada,
quando viu perto de si aqueles sete anões das montanhas. Mas eles
disseram-lhe com brandura, que não tivesse medo, e perguntaram-lhe
donde vinha, e como se chamava. Branca contou a sua triste história,
e os anões disseram-lhe:
―Queres tu ficar
connosco, para tomar conta da nossa casa?»
―Da
melhor vontade, respondeu Branca, completamente sossegada.»
Começou logo o seu serviço, e continuou-o regularmente
todos os dias. Limpava os móveis, e fazia o jantar. Os anões
iam trabalhar para as minas de ouro e de diamantes, e quando voltavam
achavam tudo em ordem.
Durante esse tempo a rainha andava
satisfeita, quando pensava que já não tinha que recear uma
rival. Sentou-se outra vez diante do seu espelho, e disse-lhe:
―Meu fiel espelho, não é verdade que eu sou agora a
mulher mais linda que há no mundo?»
E o espelho
respondeu:
―Sim, nos teus palácios e nos teus
castelos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é
mais linda do que tu.»
Ouvindo esta resposta a orgulhosa
rainha, sentiu de novo um golpe cruel, e determinou tornar a fazer
desaparecer a inocente Branca. Mas de que modo? Uma manhã partiu
disfarçada em vendedeira ambulante, com um cesto cheio de objectos
de fantasia. Foi direita às sete montanhas, e bateu à [130]porta da casinha, gritando: «Quem quer
comprar bonitas jóias?»
Os anões tinham
recomendado a Branca que desconfiasse das caras estranhas, receando os
emissários da rainha, e ela tinha prometido ser prudente. Mas,
quando viu as lindas coisas que a vendedeira tinha no cesto, esqueceu-se
das suas promessas.
―Veja este rico colar, minha menina,
eu mesmo lho vou pôr ao pescoço.»
Branca
consentiu, e a rainha estrangulou-a, e foi-se embora. Quando os anões
voltaram, viram a infeliz Branca estendida no chão e completamente
inanimada. Arrancaram-lhe o colar, e deitaram-lhe nos lábios
algumas gotas dum licor amarelo. Branca começou a respirar, voltou
a si pouco a pouco, e contou aos seus bons amigos o que lhe tinha
acontecido.
―Podes estar certa, disseram-lhe eles, que
essa vendedeira não era outra pessoa, senão a tua inimiga, a
rainha. Toma cautela, não deixes entrar aqui ninguém, quando
não estivermos em casa.»
Ao entrar no seu palácio
toda contente, colocou-se a rainha diante do espelho, e disse-lhe:
―Meu fiel espelho: Qual é agora a mulher mais linda que
há no mundo? Responde.
E o espelho respondeu:
―És tu nos teus grandes palácios e nos teus castelos,
mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do
que tu.»
A rainha enfureceu-se, e resolveu mais uma vez
tentar aniquilar a infeliz Branca. Tornou-se a disfarçar [131]em vendedeira. Chegou às sete
montanhas, e bateu à porta da cabana.
―Quem quer
comprar lindas jóias? Branca veio à janela, e respondeu:
―Vá-se embora, aqui não entra ninguém.»
―Tanto pior para si, respondeu a malvada, olhe este pente de
ouro. Já viu outro tão bonito?»
Branca não
pôde resistir ao desejo de possuir aquela jóia. Abriu a
porta.
―Oh! minha linda menina, deixe-me pôr-lho na
cabeça.»
Ao dizer isto enterrou-lhe na cabeça
o pente, que estava envenenado, e Branca caiu morta.
À
noite quando regressaram os anões, acharam-na pálida e fria.
Tiraram-lhe o pente envenenado, reanimaram-na com a sua bebida, e tornaram
a recomendar-lhe que fosse prudente.
No entanto a cruel rainha
voltava contentíssima para o seu palácio. Apenas chegou, foi
direita ao espelho, e fez-lhe a mesma pergunta, a que o espelho respondeu
como antecedentemente.
―Ah! é preciso que ela
morra, ainda que para isso eu tenha de me sacrificar.
Vestiu-se
de camponesa com um cesto de maçãs. Entre elas havia uma que
estava envenenada dum lado. Foi, e bateu à porta da cabana.»
―Quem quer comprar fruta, quem quer comprar?»
―Retire-se, disse Branca vendo-a pela janela, não deixo
entrar ninguém, nem compro coisa alguma.»
―Está
bem, não faltará quem compre estas ricas maçãs.
Mas por ser tão bonita, quero dar-lhe uma.»
[132]―Obrigada, não posso aceitar.»
―Imagina que está envenenada. Olhe, eu vou comer um
pedaço. Ah! que boa que é! Nunca provei nada assim. Ao
pronunciar estas palavras, a traidora mordia no lado da maçã,
que não estava envenenado. Branca deixou-se tentar, levou à
boca o outro pedaço, e caiu fulminada.
―Aí
tens, para castigo da tua formosura.»
Quando chegou ao
palácio a rainha foi direita ao espelho, e perguntou-lhe:
―Meu fiel espelho, quem é agora a mulher mais linda?»
E o espelho respondeu:
―És tu, és tu.»
―Até que enfim!»
Os anões
estavam inconsoláveis. Debalde tinham tentado reanimá-la com
o licor de ouro, e com outras bebidas ainda mais fortes. Branca continuava
fria e inanimada. Choraram por ela durante três dias, e os
passarinhos da floresta choraram também. No entanto as boas
avezinhas não podiam acreditar que ela estivesse morta, e vendo o
seu rosto tão tranquilo, as suas faces tão frescas, parecia
que estava a dormir. Não quiseram enterrá-la. Meteram-na num
caixão de cristal, e escreveram em cima. «Aqui jaz a filha
dum rei;» puseram o caixão numa das sete montanhas, e um
deles devia estar de guarda constantemente. Branca conservou-se assim
durante muitos anos, sem que se notasse no seu rosto a mais pequena alteração.
Um dia um formoso rapaz, filho dum rei, tendo-se perdido ao andar
à caça, viu o caixão, e pediu aos anões que
lho cedessem, fosse por preço que fosse.
[133]―Somos muito ricos, e por nada deste
mundo venderemos este caixão, que é o nosso tesouro.»
―Então dêem-mo, já não posso viver
sem contemplar este rosto de mulher. Guardá-lo-ei na melhor sala do
meu palácio. Peço-lhes que me façam isto.»
Os anões, comovidos, consentiram. Quatro homens pegaram no
caixão para o levarem. Um deles tropeçou numa raiz, e o caixão
sofreu um balanço, que fez cair o bocado da maçã
envenenada, que Branca não tinha engolido, e que lhe ficara na
boca. Abriu logo os olhos, e ressuscitou. O jovem príncipe levou-a
para o seu castelo, e casou com ela. O casamento fez-se com grande pompa.
O príncipe convidou todos os reis e rainhas dos diferentes países,
e entre elas a rainha inimiga de Branca. Apenas acabou de vestir um rico
vestido, que devia atrair todos os olhares, pôs-se diante do
espelho, e disse a rainha:
―Meu fiel espelho, qual a
mulher mais linda que há do mundo?»
E o espelho
respondeu:
―Branca é mais formosa que tu.
A estas palavras a rainha estremeceu, e teve tal medo que os seus
crimes fossem descobertos, que morreu de repente.
Branca viveu
muitos anos, adorada de todos, e no seu palácio de princesa não
se esqueceu dos anões que tinham sido os seus benfeitores.
[134]
Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o
último de Dezembro, véspera de Ano Bom. No meio deste frio e
desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha,
com a cabeça descoberta e os pés descalços. É
verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco
tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe já tinha usado,
tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a
correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; quanto
ao outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de
fazer dele um berço para o seu primeiro filho.
A
pequenita caminhava com os pezinhos nus, arroxeados pelo frio; tinha no
seu velho avental uma grande quantidade de fósforos, e levava na mão
um maço deles. O dia correra-lhe mal; não tinha havido
compradores, e por isso não apurara cinco réis.
Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caiam-lhe nos
longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do pescoço;
[135]mas pensava ela porventura nos seus
cabelos anelados?
As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se
na rua o cheiro dos manjares; era a véspera de dia de Ano Bom: eis
no que ela pensava.
Deixou-se cair a um canto, entre dois
muros. O frio enregelava-a cada vez mais, mas não se atrevia a
voltar para casa: o pai bater-lhe-ia, porque não tinha vendido os
seus fósforos. Além disso em sua casa fazia tanto frio como
na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de
o terem calafetado com palha e farrapos. As suas mãozinhas já
quase que as não sentia. Ai! como um fosforozinho aceso lhe faria
bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e ascendendo-o
aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: ritche! como estoirou!
como ardeu! Era uma chama tépida e clara, como uma pequena
lamparina. Que luz esquisita! Parecia-lhe estar sentada defronte de um
enorme braseiro de ferro, cujo lume magnífico aquecia tão
suavemente, que era um regalo.
A pequerrucha ia já a
estender os pezitos para os aquecer também, quando a chama se
apagou repentinamente: achou-se sentada, tendo na mão uma pontita
de fósforo consumido.
Acendeu segundo fósforo,
que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se
transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha
viu uma sala com uma mesa coberta de uma toalha alvíssima,
deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada com
recheio de ameixas e de batatas [136]fumegava
exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a
galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da
pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo,
e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.
Acendeu
terceiro fósforo, e achou-se imediatamente sentada debaixo de uma
magnífica árvore do Natal; era ainda mais rica e maior do
que a que tinha visto no ano passado através dos vidros de um armazém
sumptuoso.
Nos ramos verdes brilhavam centenares de balões
acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas
das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos,
apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do
Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se tinha
enganado, porque eram estrelas. Caiu uma delas, deixando no céu um
longo rasto de fogo.
―É alguém que está
a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria
tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: «Quando
cai uma estrela, sobe para Deus uma alma.»
Acendeu ainda
outro fósforo: deu uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu sua
avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.
―Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu
sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás
como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.
Acendeu o rosto do maço, porque não queria [137]que sua avó lhe fugisse, e os fósforos
espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó
tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas
alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão
alto, que já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias:
haviam chegado ao Paraíso.
Mas quando rompeu a fria
madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com
as faces incendiadas, o sorriso nos lábios... morta, morta de frio
na última noite do ano. O dia de Ano Bom veio alumiar o pequenino
cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um
maço, que tinha ardido quase inteiramente.―Quis aquecer-se,
disse um homem que passou.» E ninguém soube nunca as lindas
coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a
sua velha avó no dia do Ano Novo.
[138]
Chamava-se Margarida, e estavam à espera dela no céu,
porque Deus tinha dito:―É uma boa alma, e, como lá em
baixo no mundo lhe pode acontecer alguma desgraça, vou trazê-la
um destes dias para o paraíso.»
Margarida era uma
virgem cândida, matinal como a aurora, fresca como ela; todos os
dias ao acordar rezava as orações, que sua mãe lhe
tinha ensinado, e vestia-se depois na sua pequenina alcova. E, como não
tinha jóias preciosas nem ricos adornos, dispensava o espelho.
Depois disto, para viver honradamente, punha-se a trabalhar.
E, ao mesmo tempo cigarra e abelha, trabalhava cantando uma bela canção
de amor e de glória, que já embalara muitos berços, e
que podia sensibilizar uma alma inocente, sem lhe perturbar a limpidez.
Numa tarde de Verão, estava ela sentada à porta de
casa fiando linho, à hora em que as estrelas começam a
aparecer, uma a uma no firmamento.
Estava Margarida cantando a
sua canção, quando [139]passou
por ali uma das suas vizinhas, que ia a uma romaria, muito asseada, com um
vestido novo. Parou diante de Margarida, para que lhe admirasse os seus
brincos e o colar de ouro que levava ao pescoço; apertou-lhe a mão
para que visse bem o anel que brilhava no seu dedo, e foi-se embora a rir,
toda contente. E Margarida foi-a seguindo com um olhar de inveja, o que
inquietou no paraíso o seu anjo da guarda.
O fio de
linho já não passava tão rapidamente entre os dedos
de Margarida, a roda cessara o seu barulho monótono, e o fuso caíra-lhe
das mãos.
Ao cair o fuso despertou do êxtase,
abriu os olhos, e viu diante de si um cavaleiro magnificamente vestido,
tendo na mão um gorro de veludo preto, com uma pluma vermelha, da
cor do fogo. O cavaleiro saudou-a respeitosamente, e, com uma voz
harmoniosa e galanteadora, perguntou-lhe:
―Qual é
o caminho da cidade?»
Margarida estendeu a mão
para lho indicar, e o forasteiro inclinando-se tirou do dedo um anel de
ouro com um diamante, que brilhava como uma estrela, e meteu-o no dedo de
Margarida, que o achou mais belo do que o anel da sua companheira. O rosto
do cavaleiro alumiou-se então com um sorriso estranho e diabólico.
Nisto passou por ali um mendigo coberto de farrapos, parou diante de
Margarida, e pediu-lhe uma esmola.
Margarida tirou do dedo o
anel, e ofereceu-o ao pobre desgraçado.
O cavaleiro então,
soltando um grito de cólera, ia lançar-se sobre Margarida,
mas o mendigo―[140]que era o seu anjo
da guarda disfarçado―cobriu-a com as asas. E o cavaleiro,
isto é Satanás, que tinha vindo para a tentar, recuou
aniquilado diante do espírito celeste.
[141]
Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta duma
humilde cabana a pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não
vendo, nem ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no
casebre; viu então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:
―«Ai! não te posso dar nada, porque nada tenho.»
E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater
à mesma porta.
―Pelo amor de Deus! gritou a
velhinha, já te disse que não tenho nada que te dar.»
―Foi por isso que eu voltei―disse em voz baixa o
mendigo.
E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do
bolso, pondo-os em cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas
moedas de dez réis, que lhe tinham dado depois de ter estado com a
velha a primeira vez.
―Aqui te fica isto, santinha―disse-lhe
ele afectuosamente, indo-se embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de
lhe agradecer.»
Não sabemos qual era o nome do
mendigo; mas os anjos escrevê-lo-ão no Paraíso, e mais
tarde nós o viremos a saber.
[142]
O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais
delicadas e transparentes do que asas de moscas. O sol espalhava os seus
raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer,
como o dum filho quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.
―Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito
crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz.
Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou.
Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva
encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder
ser!»
―Como és ingénuo! disseram as
silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras
temos uma larga experiência.»
E rangendo
lastimosamente, cantaram:
―Não tão cedo como vocês imaginam,
respondeu o linho; está uma bela manhã, o sol resplandece,
[143]e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e
florir. Sou muitíssimo feliz.»
Mas um belo dia
vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com
raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro
mergulharam-no em água, como se o quisessem afogá-lo, e
depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!
―Não
se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si; é necessário
sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.»
Mas as coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no,
cardaram-no, e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no
numa roca, e então perdeu a cabeça inteiramente.
―Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio
daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades
perdidas.»
E ainda estava dizendo―perdidas, e já
o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de
pano.
―Isto é extraordinário, nunca o
imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas aquelas silvas quando
cantavam:
Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é
verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca.
Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto
é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata
da gente, e [144]não bebemos outra
água a não ser a da chuva. Agora é o contrário:
que cuidados! As raparigas estendem-me todas as manhãs, e à
noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um
discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça
da paróquia. Não posso ser mais feliz.»
Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no
e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável,
mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas
magníficas.
―Agora decididamente começo a
valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou
útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e
ser-se feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas
formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável
felicidade!
O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.
―Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda,
mas não se fazem impossíveis.»
E as camisas
foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a
sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o
que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.
―Oh que agradável surpresa! exclamou o papel, agora sou
muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras. O que não
escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!»
E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas
diante de inúmeros ouvintes, e os tornaram mais sábios e
melhores.
[145]―Ora aqui está
uma coisa muito superior a tudo que eu tinha imaginado, quando vivia na
terra, coberto de flores. Como poderia eu imaginar que ainda havia de
servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me
está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que
nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte; foi Ele que
gradualmente me elevou, até chegar à maior glória.
Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: «Acabou-se, acabou-se»
tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais
risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam
ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis;
agora as minhas flores são os mais elevados pensamentos. Sinto-me
feliz, imensamente feliz!»
Mas o papel não foi
viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo que lá estava
escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que
recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de
papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a
volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.
―É justo, disse o papel, não tinha pensado
nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu
que recebi as letras, as palavras caíram directamente da pena sobre
mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua
missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me
feliz.
O papel foi empacotado, e lançado para uma
estante.
―Depois do trabalho é agradável o
descanso, [146]pensou ele. É neste
isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante
é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmo
é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda
acontecer? Progredir, está claro.»
Passados
tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o que
o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar.
E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo
arder, e ver também, depois da labareda, as milhares de faíscas
vermelhas, que parecem fugir, e se apagam instantaneamente uma após
outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele
ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão
alto como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de
pano nunca tinha tido um brilho semelhante.
Todas as letras,
durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as
ideias desapareceram em línguas de fogo.
―«Vou
subir até ao sol;» dizia uma voz no meio da labareda, que
pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé,
e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos
do homem. Eram tantos quantos tinham sido as flores que o linho tinha
dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se
extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra,
ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a,
pequeninas centelhas encarnadas.
As crianças cantavam
à roda da cinza inanimada:
[147]
Mas cada um dos pequeninos seres dizia: «Não, não
se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e
julgo-me feliz.»
As crianças não puderam
ouvir, nem compreender estas palavras; mas também não era
necessário, porque as crianças não devem saber tudo.
Original | Correcção | ||
#pág. 56 | entrar? | ... | entrar! |
#pág. 58 | João. | ... | João: |
#pág. 58 | embora? | ... | embora. |
#pág. 107 | encontremos | ... | encontraremos |
A propriedade deste livro pertence no Brasil ao
sr. Luís de Andrade, residente no Rio de Janeiro.
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