*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 62574 *** A GUERRILHA DE FREI SIMÃO _LISBOA_ Typographia e Stereotypia Moderna _11—Apostolos—1.º_ 1895 ALBERTO PIMENTEL A GUERRILHA DE FREI SIMÃO ROMANCE HISTORICO [Illustration] LISBOA LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA—EDITOR 50, 52—Rua Augusta—52, 54 1895 DUAS PALAVRAS Passei o dia 9 de setembro de 1894, em Cezár, na casa onde nasceu frei Simão de Vasconcellos, o protagonista d’este romance. A amavel hospedagem com que alli me recebeu o sr. Alfredo Praça de Vasconcellos, bacharel em mathematica pela Universidade de Coimbra e sobrinho de frei Simão, largamente me compensou dos incommodos da jornada. Eu ia, mediante prévia auctorisação, colhêr informações directas sobre um assumpto que me indicára em Lisboa o meu illustre amigo o sr. visconde de Villa Mendo: o assumpto d’este livro, cujos pormenores estudei com desvelada exactidão. Á roda do meu primoroso hospedeiro estavam reunidos em grupo todos os velhos de Cezár que ainda tinham conhecido frei Simão de Vasconcellos. Trez apenas. Ouvi da sua bôca a narração de interessantes minucias biographicas. Por favor do sr. Vasconcellos compulsei varios documentos de familia, posteriores ao auto-de-fé em que as justiças miguelistas pulverisaram o archivo da sua casa. Creio que este romance deverá o «sens du réel», que porventura o vitalise, á profunda impressão que recebi, n’esse dia, em visita ao solar do Outeiro, sob os tectos que abrigaram parte da atormentada existencia de frei Simão; e em passeio pelos campos de Cezár, acompanhado pelos ultimos contemporaneos do frade guerrilheiro, que paravam reatando lembranças, mencionando logares e factos, e cujos cabellos brancos se doiravam a espaços com algum alado raio de sol que luciolava os frócos verdes do arvoredo. Procurando, no pouco que me era possivel, retribuir a patriarchal cordealidade da hospedagem, pedi licença ao sr. Alfredo de Vasconcellos para lhe offerecer este romance,—a historia da sua familia. Vi que as lagrimas lhe saltavam dos olhos n’esse momento. Olhando fito em mim com o olhar embaciado, o sr. Vasconcellos respondeu-me: —Comprehendo a sua intenção, e agradeço-lh’a. Mas se v. quer dedicar o seu livro a um parente do frade do Outeiro, peço-lhe que o offereça á memoria de meu pobre irmão, o major Augusto Cezár de Vasconcellos, morto na mallograda revolta de Braga em 1862, no cumprimento do seu dever. E as lagrimas abafavam-n’o n’uma commoção torturada. É pois á memoria d’esse infeliz sobrinho de frei Simão de Vasconcellos que eu dedico a chronica fiel da attribulada existencia e corajosa morte do tio. Outras jornadas emprehendi por amor da verdade historica. Duas vezes tive de ir á Villa da Feira para reconstruir o episodio da evasão de frei Simão de Vasconcellos, da cadeia d’aquella villa. Da primeira vez não pude colhêr as informações que desejava. A memoria dos velhos sobreviventes estava confusa e hesitante, quasi apagada. Da segunda vez, caminhei ao acaso, dirigindo-me, por palpite ou intuição, ao primeiro homem encanecido que encontrei. Felizmente, elle poude indicar-me a pessoa que reputava habilitada para esclarecer-me. Assim fiz; e assim foi. Desde essa hora, o romance estava completo. E, emquanto o escrevia, eu comprehendia a exacta affirmação, que aos indifferentes de hoje parecerá arrojada hyperbole, contida n’esta phrase de Alexandre Herculano: «A guerra da restauração de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e mais poetico d’este seculo.» Lisboa, 13 de junho de 1895. ALBERTO PIMENTEL. I Flor do Támega Amor quiz................. Unir vontades que separa a guerra. Braz Garcia de Mascarenhas—«Viriato tragico», canto XVIII. Os Vasconcellos, de Cezár, gente de boa raça, aparentados com muitas familias illustres, entre as quaes os Pintos de Parámos, os Tavares e Pereiras da Terra da Feira e os Côrte-Reaes de Gafanhão, tinham como representante, no fim do seculo passado, José Bernardo Pereira de Vasconcellos, marido de D. Anna Margarida de Almeida Cabral. D’este casamento nasceram cinco filhos e quatro filhas. Sobejavam a José Bernardo meios de farta subsistencia para tão numerosa próle, pois que as suas propriedades se estendiam desde Cezár, na comarca da Feira, até á villa de Arouca, onde possuia a quinta do Outeiral. José Bernardo fixára residencia, depois de casado, na casa do Outeiro, em Cezár, e, graças á sua abastança, podéra dar uma collocação decente aos cinco filhos varões, destinando uns á vida monastica, outros á carreira das armas, segundo a tradição grada d’aquelle tempo. Simão, que nascêra a 28 de setembro de 1789, entrou na ordem de S. Bernardo, e professou em Alcobaça. José vestiu o habito benedictino no mosteiro de Refoyos de Basto. Joaquim Maria e Frederico sentaram ambos praça no regimento de infanteria 6. Eram duas creanças, quando em 1808 foram reconhecidos cadetes. Fizeram a guerra peninsular, sendo Joaquim Maria gravemente ferido, em uma perna, na acção de 31 de julho de 1813. Antonio, o filho mais novo, ficou, em rasão de sua pouca idade, sob a tutella paterna, quando os irmãos, seguindo cada qual seu destino, se ausentáram da casa do Outeiro. No fim do anno de 1814, Joaquim Maria foi promovido a tenente para infanteria 13. Mas obteve depois transferencia de arma, passando a servir em cavallaria. Frederico era, em 1819, alferes ajudante de infanteria 18, aquartelada no Porto. Casando com D. Margarida Fontana, pediu a demissão, pura e simples. Mas o governo concedeu-lhe a reforma em attenção aos bons serviços, que tinha prestado durante a guerra peninsular. Devia ter sido o coronel commandante d’aquelle regimento, Bernardo Corrêa de Castro e Sepulveda, dedicado protector de Frederico Pinto, quem, junto do governo, interveio para que a demissão fosse substituida pela reforma. Em 1820 rebentava a revolução liberal do Porto, e Frederico, apesar de ter renunciado á vida militar, interessou-se, com enthusiasmo e convicção, pelo bom exito do movimento revolucionario, que os portuenses haviam preparado. É de presumir que as ligações de Frederico com o coronel Sepulveda o acirrassem nos ideaes do constitucionalismo. Joaquim Maria, promovido a capitão e collocado em cavallaria 6, _dragões de Chaves_, resistiu, obstinado, ás suggestões absolutistas dos Silveiras, recusou-se em 1823 a acompanhal-os no movimento que principiou em Villa Real no dia da procissão de Passos. Seriam apenas rasões de caracter politico as que crearam ao capitão de dragões essa dura situação de intransigencia em que teimosamente se conservou até á morte? Não. Quando um homem pertinazmente salta por cima de todas as conveniencias pessoaes, com os olhos fechados, esse homem obedece, por via de regra, mais ao impulso do coração que do espirito. N’aquella epocha de fluctuações e incertezas politicas, as opiniões transformavam-se com os acontecimentos do dia, ao sabor dos interesses de cada individuo ou de cada familia. O proprio monarcha dava o exemplo aos que o tinham visto jurar a constituição nas Necessidades e haviam de vêr depois ir a Villa Franca ao encontro do filho. Mas os que não abdicavam de suas crenças, e preferiam o martyrio á transigencia, esses tinham o coração dilacerado por algum golpe profundo, que resultára de vinganças partidarias exercidas contra elles mesmos ou contra as suas familias. As feridas do corpo podem esquecer-se, depois que cicratisáram; mas as da alma parece reverdecerem com o tempo. Joaquim Maria de Vasconcellos amára em Chaves uma menina, sobrinha de um abastado proprietario realista. Ahi por 1822 o idyllio derivava mansamente, meio velado pelo disfarce com que o capitão de dragões queria occultar um segredo, que punha em xeque as suas convicções politicas, aliás notorias. André Pinto, o tio da menina, era absolutista ferrenho, muito nas boas graças dos Silveiras; pessoa de tamanha confiança para elles, que não duvidavam encarregal-o de importantes commissões politicas. Não tendo filhos, a sua herdeira presumptiva era a sobrinha, uma rosada transmontana de vinte annos, vasada nos moldes das mulheres fortes d’aquella provincia alpestre, onde o ar, coado atravez das montanhas, é puro e salubérrimo. Não tinha que vêr com a vaporosa idealisação da Margarida de Gœthe aquella Margarida Candida, de Chaves, a quem Antonio da Silveira, futuro visconde de Canellas, pozera a alcunha de _Flor do Támega_ com uma galanteria alfacinha que tinha aprendido em Lisboa, durante os tormentosos dias em que, como presidente da junta do Porto, fez parte do governo constitucional, de arrependida memoria para elle. Realmente, floria nas faces de Margarida Candida, presumptiva herdeira do abastado André Pinto, o carmim vivo dos cravos e das papoulas. Não era a mulher que parece quebrar pela cintura, flexivel como a haste de um lirio. Tinha a belleza da saude e da mocidade, algo serrana, mas esculptural. Joaquim Maria era um guapo homem. Alguns velhos de Cezár affirmam ainda hoje que fôra «o homem mais bonito do seu tempo.» A farda de capitão de dragões e o garbo militar com que sabia uzal-a, davam realce aos dotes physicos que o distinguiam. Fica pois cabalmente explicada a fascinação que elle exerceu no espirito de Margarida Candida, apesar de ser alguns annos mais velho do que ella. Mas o amor, se não conhece idades, desconhece tambem as balisas partidarias, que extremam os campos politicos. Assim foi que Joaquim Maria, tão constitucional como todos os seus irmãos, á excepção de frei José, que era realista, se deixou captivar da graça desaffectada da sobrinha de André Pinto, silveirista da gemma. A mascara do disfarce cahiu, logo que as lavas do amor vulcanisáram o coração dos dois namorados. André Pinto percebeu a inclinação da sobrinha, contra a qual rompeu em desabridos improperios por amar um pedreiro-livre. Pretendeu desacreditar a familia de Joaquim Maria e, por isso, dizia em voz alta que José Bernardo de Vasconcellos era filho de uma camponeza de Santa Christina de Mansores, chamada Maria Josepha. Um flaviense de boa fé, muito intimo do fidalgo de Paiva, Martinho Pinto de Miranda Corrêa Montenegro, contestou que, por este seu amigo, sabia de sciencia certa que o avô de Joaquim Maria mandára educar o filho, e o deixára seu herdeiro; que, não obstante a creança ter sido baptisada como filho de paes incognitos, José Bernardo requerêra e obtivera a legitimação em 1819. André Pinto barafustou contra esta réplica, insistindo em depreciar a linhagem do capitão de dragões. Mas o flaviense escreveu ao fidalgo de Paiva, o qual lhe respondeu por escripto, dizendo: «Muitas vezes ouvi a meu pae, o sr. Bernardo José Pinto Montenegro, encarecer a genealogia do avô e pae de Joaquim Maria de Vasconcellos, nossos parentes. São legitima geração de Sebastião Lopes Godinho, da casa de Cezár, homem muito fidalgo e descendente de Gil Garcia, e de João Carvalho, fidalgo da casa d’el-rei D. João III, casado com D. Anna Mendes de Vasconcellos. A familia de Joaquim Maria está aparentada com a melhor nobreza da sua comarca e provincia, e eu honro-me de ser seu parente. «A legitimação de José Bernardo fez-se segundo o disposto nas leis canonicas e civis. Nada ha que se lhe oppôr, a não ser qualquer má vontade acintosa.» O flaviense mostrou esta carta em Chaves, e André Pinto, vendo-se contraditado, mudou de rumo, no empenho de combater o capitão de dragões por qualquer outro modo, mais efficaz e menos contestavel. Enfurecido com o mallogro da sua propaganda de descredito contra a familia de Joaquim Maria, correu as casas de muitos dos seus amigos politicos, desabafando a berros desentoados. Um d’elles, que gostava de recorrer a processos summarios quando liquidava contas com inimigos, disse-lhe peremptoriamente: —Homem! não ha nada como cortar as questões pela raiz! —Mas a difficuldade está em desaterrar a raiz... —Ora adeus! A raiz d’esta questão é o amor de tua sobrinha ao capitão Joaquim Maria. É ou não é? —Certamente que sim. —Já vês que ficam assim muito simplificadas as coisas... —Não percebo! Eu não as vejo nada simplificadas! —Oh! homem! O capitão é a causa da inquietação em que vives, porque sendo nosso adversario politico, dos mais intransigentes, fez andar á roda a cabeça de tua sobrinha. É ou não é? —Pois é mesmo! E d’ahi? —Ora se o capitão desapparecer, tua sobrinha não ha de ficar eternamente a amar um morto... Percebes? —Percebo. —O que dizes então? —Que para isso não precisava eu de vir pedir-te conselho. É conveniente proceder com certa diplomacia, chegar a uma solução sem assumir publicamente a responsabilidade d’ella. Este negocio, encabeçado em politica, corria melhor. —Bem entendo. Gostas de pannos quentes. Pois eu cá não sou d’esses. —É certo que o capitão me desinquieta a sobrinha, e este negocio é particular, apenas diz respeito á minha familia. Mas, por outro lado, o capitão é nosso adversario politico, e procede acintosamente para me desgostar. Entendo, pois, que o negocio deve ser resolvido sob o ponto de vista das conveniencias partidarias... —N’esse caso, vae consultar os Silveiras. Elles que te aconselhem, que teem obrigação de o fazer. André Pinto foi a Villa Real consultar o conde de Amarante, mas com tanta infelicidade que, quando entrou na casa da Calçada, estava Manoel da Silveira n’um dos seus dias de obumbramento intellectual. O conde ouviu-o, e não respondeu nada. André Pinto sahiu dizendo com os seus botões: —Está hoje tolo de todo! Fallei com uma pedra. Lembrou-se de ir á quinta de Canellas consultar Antonio da Silveira, que era mais atilado do que o sobrinho. Expoz lhe o negocio. O fidalgo respondeu com promptidão: —O que me diz, sr. André Pinto, envolve uma questão politica, que é preciso ter em vista. —Diz v. ex.ª muito bem. Assim mesmo é que é. Devemos proceder todos de accôrdo. —Ora, attendendo ás rasões politicas, sou de parecer que o capitão Joaquim Maria não deve ser perseguido. —Como?! perguntou, fulminado, André Pinto. —O que a mulher não conseguir, ninguem o consegue! disse axiomaticamente o tio do conde de Amarante. Eu me explico. Talvez o amor consiga trazer insensivelmente o capitão ao nosso gremio. O amor costuma fazer milagres. —Nunca de bom christão bom mouro, nem de bom mouro bom christão! replicou, triumphantemente a seu vêr, André Pinto. Antonio da Silveira, que enxergou n’esta phrase uma grosseira allusão ao seu breve transito pelo constitucionalismo, replicou de sobrecenho carregado: —Todos os homens podem reconsiderar, quando não sejam tolos ou maus. Adeus, sr. André Pinto. O tio de Margarida Candida sahiu recuando, ás mesuras, sem ter percebido bem o motivo do subito agastamento do fidalgo de Canellas. O que é certo é que esta replica mal-humorada assegurou a vida de Joaquim Maria. André Pinto, em caminho de Chaves, matutou na rasão que teria Antonio da Silveira para esperar um possivel reviramento politico do capitão de dragões e, sem ousar oppôr-se formalmente á opinião do ex-presidente da junta do Porto sobre a reconsideração dos homens, não deixou de achar um pouco duro que se comprassem silveiristas á custa do dinheiro que era seu, e que a sobrinha devia herdar. Comtudo, tendo sahido de casa acceso em colera contra Margarida Candida e o capitão, voltou, depois do que se passára com Antonio da Silveira na quinta de Canellas, menos bravo, se bem que visivelmente concentrado. Logo que teve ensejo, chamou á puridade uma criada a quem confidencialmente havia encarregado de vigiar, na sua ausencia, todos os passos de Margarida Candida. —Ella viu-o? perguntou de afogadilho André Pinto. —Viu-o, sim senhor. Viu-o do muro do quintal. —E tu então que «fizestes»? —Eu fui logo a correr, e disse-lhe: «Menina, veja o que faz, não queira dar mais desgostos a seu tio». —E ella o que respondeu? —Ora o que respondeu?! Disse-me assim: «Eu cá não faço mal a ninguem. Meu tio tambem namorou.» —Mentira! replicou André Pinto. O meu casamento foi fallado. Não sabias responder-lhe? —Eu sabia cá, sr. André! Uma pessoa fica ás vezes embuchada com certas respostas. —És uma lesma! Tu e um pannal de palha valem o mesmo. André Pinto ficou a pensar no caso e de si para si julgava-se ainda mais tolo do que a criada. —Andei em correrias, reflexionava elle, e emquanto andei por lá, a rapariga fazia-me o ninho atraz da orelha. Se não tenho ido a Canellas, estava habilitado a tomar a resolução, que muito bem me parecesse. Assim, fiquei preso ao conselho de Antonio da Silveira, com os braços atados. Preciso encher-me de rasão para levar o fidalgo a mudar de parecer. O que me resta fazer é ficar de atalaya sem espantar a caça. Custa; mas não ha remedio, depois do que se passou em Canellas. Margarida Candida desconfiou da inesperada metamorphose de brandura, que se tinha operado no tio; teve medo de que occultasse alguma perfidia machiavelica. Apezar da vigilancia de André Pinto, ella encontrava sempre meios de a illudir. Ás noites, quando o tio ia concertar com os outros silveiristas o plano da contra-revolução restauradora que devia rebentar em Traz-os-Montes, Margarida Candida, subindo ao muro do quintal, trocava de fugida algumas palavras com o capitão. O assumpto d’esses rapidos dialogos continuava a ser a reserva, apparentemente bonançosa, em que André Pinto se mantinha. O capitão de dragões, apezar de querer tranquillisar o espirito de Margarida Candida, denunciava-se, involuntariamente, tambem apprehensivo e receioso, porque bem sabia elle que os odios politicos em Chaves, quando por momentos se acalmavam, resurgiam a breve trecho mais rancorosos. E acabando por confessar um ao outro as suas apprehensões, suspeitavam de desgraça imminente; mas separavam-se jurando inabalavel constancia, por maiores que fossem os tormentos por que ambos houvessem de passar. Mal podiam suppôr que a metamorphose de André Pinto fosse devida á entrevista com Antonio da Silveira, então adversario politico de todos os constitucionaes, porque se desaviera com elles em Lisboa, a ponto de ter sido mandado recolher, no meio de uma escolta, á quinta de Canellas. O capitão de dragões conheceu que estava sobre um vulcão, mas o seu coração não vacillou um momento. Acontecesse o que acontecesse, Margarida Candida continuaria a ser a unica mulher capaz de o fazer affrontar a morte, se tanto fosse preciso. Graças á lembrança de Antonio da Silveira, chamavam-lhe a ella a _Flôr do Támega_. Pois bem! esse valoroso capitão de cavallaria 6, que tinha vindo das campanhas da guerra peninsular, em que tantas vezes encarára a morte de perto, estava resolvido a tomar por divisa, no resto da sua vida, a bella _Margarida_ do jardim feminino de Traz-os-Montes, e a defendel-a até ao sacrificio com o heroismo dos cavalleiros da idade-media, tão romanescos como destemidos. II Adeus ao convento ...e lhe deram os vestidos seculares, que requereu ancioso de proseguir os actos da sua liberdade por que suspirava. Frei Antonio da Piedade—«Espelho de penitentes», tom. I. As quatro filhas de José Bernardo de Vasconcellos chamavam-se Maria Albina, Anna José, Antonia, e Maria Henriqueta. Todas ellas lindas mulheres, parecendo ser a belleza apanagio de familia, tanto nas senhoras como nos homens. Maria Albina era a mais velha. Anna José, branca como as irmãs, tinha como ellas uns olhos de purissimo azul, e cabellos castanho-claros. A côr dos olhos reproduzia-se em todos os filhos de José Bernardo. Se porém alguma das quatro irmãs se avantajava ás outras em belleza, era D. Anna a mais formosa, segundo o testemunho dos contemporaneos. Diziam-n’a encantadora. O pae, ao rebate dos primeiros achaques, encarregou Frederico da administração da casa, que consistia principalmente em prasos de livre nomeação. Entregou-lh’a, reservando o rendimento da quinta do Outeiral em Arouca para seus alimentos, de seu filho Antonio Pinto, o mais novo, de sua filha Maria Henriqueta, que se destinava á vida monastica, e de D. Theresa Bernarda de Vasconcellos, sua irmã d’elle. Os outros filhos, José, Simão e Joaquim Maria, estavam em posição de não carecer de auxilio paterno. Desde o casamento de José Bernardo o domicilio da familia Vasconcellos era, como dissémos, na casa de Cezár. Não primava pela grandeza da traça o solar do Outeiro, como ainda hoje se pode verificar, mas denunciava a nobreza de origem dos seus habitantes no brazão em madeira que corôava o tecto da sala de entrada e no qual se liam os appellidos de gloriosos ascendentes—_Leites e Amaraes, Moreiras e Vasconcellos_. Quem hoje fôr a Cezár com o intuito de visitar a casa do Outeiro, poderá reconhecel-a de longe pelos altos cedros, que a ensombram. Mas estas arvores são relativamente modernas. O mesmo se pode dizer de uma pequena sala de entrada, á qual se sobe por alguns degraus de pedra, e que está mobilada com cadeiras de couro, tauxiado nos espaldares e assentos. Tudo o mais conserva a feição que tinha o solar no tempo de José Bernardo e dos filhos. O edificio é de um só andar, a pequena altura do solo, com janellas de differente feitio, voltadas ao nascente. Entrava-se então no Outeiro por uma porta fronha, chamada a _Porta vermelha_, que abre sobre um pateo de pedra, separado do pomar, cujo nivel lhe é inferior. A sala de recepção era a de entrada, brazonada no tecto. Seguia-se, para o interior da casa, um corredor que dava ingresso aos quartos de cama. Fóra do edificio ficavam as dependencias do solar, as officinas agricolas, a habitação dos caseiros, e a capella de familia, hoje desmantelada. A esposa de José Bernardo havia fallecido, deixando na alma do viuvo um denso negrume de saudade, cada vez mais cerrado pela tristeza da inercia, a que a doença o ia reduzindo. Viviam muito solitarias as quatro meninas, orphãs de mãe, e privadas da tutella vigilante do pae, achacoso e triste. Frei José tinha comprado a Quinta de D. Maria, a dois passos do Outeiro, e doára-a a todas as quatro irmãs para sua habitação. Mas no Outeiro ou em D. Maria a solidão era igual para ellas. Quatro irmãos, ausentes: José e Simão cada um em seu mosteiro; Frederico no Porto, Joaquim Maria em Traz-os-Montes. Frei Simão, cujo caracter energico e destemido animo nunca poderam deixar-se domar pelo habito de S. Bernardo, a si proprio quiz justificar a ideia de que a sua presença se tornava necessaria em Cezár, para companhia e amparo das irmãs. Era até certo ponto um pretexto, por isso que as quatro meninas ainda tinham o irmão mais novo, Antonio, e a tia, irmã do pae, que podiam acompanhal-as. Mas frei Simão, a quem a vida religiosa só repugnava pela disciplina monastica e pela sujeição claustral, lançou mão d’esse pretexto para insistir no pensamento de obter a secularisação. A liberdade de acção e o regresso á terra natal, aos campos da sua infancia, sorriam-lhe como um sonho de felicidade. Elle havia adquirido propriedades em Alcobaça, comprára ahi a quinta chamada do Mogo, mas o seu espirito nunca se apegára tanto ao torrão florente e uberrimo da Extremadura como aos campos de Cezár, menos pittorescos certamente, mas mais suggestivos para elle, porque desde creança os conhecia e amava. Dispondo de um animo capaz de tentar empresas difficeis e de arrostar com obstaculos, frei Simão requereu em Roma a secularisação, allegando o pretexto que as circumstancias de familia lhe forneciam. Mas não confiou tanto na justiça da allegação, que não pensasse em reforçar o pedido com valiosas recommendações para o nuncio em Portugal, monsenhor Vicente Macchi, para o embaixador portuguez em Roma, conde do Funchal, e para o cardeal Pacca, prosecretario de estado na Santa Sé. Succedia que o cardeal Bartholomeu Pacca tinha estado como nuncio em Lisboa, para onde viera em maio de 1795, sendo então arcebispo de Damietta. Vinha já de representar o Papa na côrte de Luiz XVI, d’onde se retirára quando o scisma rebentou. Demorou-se em Lisboa até 1800. No principio do anno seguinte, Pio VII chamou-o a Roma, deu-lhe o chapeu cardinalicio, e investiu-o nas funcções de prosecretario d’estado. Bartholomeu Pacca soffreu, ao lado do Pontifice, as prepotencias de Napoleão I. Esteve preso em França, porque o imperador via n’elle o instigador da bulla d’excommunhão com que havia sido fulminado. Em 1814 voltou com Pio VII a Roma, e reassumiu as funcções que antes desempenhava. Durante a sua nunciatura em Portugal, o cardeal Pacca creára em Lisboa muitas relações com pessoas de alto valimento, _persónas gratas_, que lhe podiam recommendar, com efficacia, qualquer memorial. Não se vae porém a Roma n’um dia, diz o proloquio, tão verdadeiro em relação ás pessoas como aos negocios. De mais a mais, a politica napoleonica continuou a dar que fazer á Santa Sé: em 1815 Murat marchou sobre Roma, e o cardeal Pacca, depois de ter protestado contra a violação do territorio e nomeado uma junta provisoria para governar a cidade sagrada, fugiu. A pretensão de frei Simão de Vasconcellos foi retardada por todos estes acontecimentos politicos. Mas quando em junho d’esse anno o cardeal Pacca voltou a Roma, redobraram-se junto d’elle as instancias movidas por frei Simão e auctorisadas com a informação favoravel do geral da ordem de S. Bernardo e do bispo do Porto. Antes de sahir como enviado extraordinario para Vienna, em 1816, o cardeal Pacca referendou, a 17 de março, o breve de secularisação de frei Simão de Vasconcellos, com o fundamento de poder «prestar auxilio a quatro irmãs germanas, sómente emquanto d’elle carecessem», e com a reserva «de trazer sob o habito de presbytero secular algum signal do seu habito monastico, e de observar a parte substancial dos votos da sua profissão». Frei Simão era então um homem de vinte e sete annos. Louro, de olhos azues—esses bellos olhos que caracterisavam toda a sua familia—largo de hombros, peito amplo, cabeça desenvolvida, estatura regular. Com grande alegria recebeu elle o breve que o emancipava da vida conventual. Mas não despiu a cogulla branca, nem tirou o chapeu preto, nem desatou o cordão que enrolava á cinta. Sahiu assim de Alcobaça, e assim, indo alem da imposição que superiormente lhe fôra feita, o viam os seus parentes e visinhos desde que regressára a Cezár. Certos visinhos não o tornaram a ver com bons olhos, porque o temiam como homem e o aborreciam como frade secularisado, que não se pejava de mostrar-se inclinado á corrente de ideias revolucionarias que tinham vindo de França. Mas frei Simão, fazendo-se lavrador ou trabalhando n’uma improvisada officina de mecanica, que montára na casa do Outeiro, dava mediana importancia a visinhos de ao pé da porta. Alguns mendigos de Cezár, da Feira e de Oliveira de Azemeis iam esmolar ao pateo da casa do Outeiro. Frei Simão soccorria-os. Animados por este precedente, alguns trabalhadores recorreram ao frade para que lhes emprestasse qualquer quantia de que urgentemente precisavam. Frei Simão attendia-os, e perguntava-lhes: —Quando julgas tu poder pagar? —Saiba vossa reverencia que d’aqui a seis mezes. —Pois bem. Dou-te outros seis mezes de espera, mas toma sentido, que se d’aqui a um anno me faltares, comigo terás de haver-te. Se, passado um anno, o devedor ia pagar pontualmente, conquistava por esse facto a sympathia e confiança de frei Simão: podia contar, de futuro, com a sua algibeira. Se faltava á fé do contrato verbal, o frade, quando acontecia encontrar o devedor, crescia para elle, colerico, de bordão em punho, ameaçando punil-o corporalmente. Frei Simão tinha uma justiça propriamente sua, principalmente baseada nos dictames da consciencia: bom para os bons, severo para com os delinquentes. E em questões de dinheiro era de uma meticulosidade intransigente, tanto em relação a si mesmo como aos outros. Frequentemente percorria todas as propriedades da familia desde Oliveira de Azemeis até Arouca, auxiliando na direcção agricola dos bens o irmão Frederico, antes e depois de casado. Pela irmã mais velha, que lhe era especialmente dedicada, soube frei Simão que D. Anna José correspondia ao amor de um rapaz, natural do Fundão, de appellido Fonseca, e sobrinho de um visinho do Outeiro. O frade não conhecia o namorado da irmã, que só apparecia em Cezár no tempo das ferias, mas acertou de se encontrar com elle na occasião em que o general Gomes Freire e os seus companheiros de infortunio já estavam entre ferros como réos de alta traição. Gostou do rapaz, que era elegante, alto, moreno, cheia a physionomia de vivacidade peninsular: os olhos, muito pretos e luminosos, denunciavam-lhe o ardor da imaginação insoffrida. O estudante e o frade começaram por conversar de superficialidades cerimoniosas, vindo frei Simão a saber que José Maximo da Fonseca cursava ainda preparatorios no Collegio das Artes, porque o pae levára tempo a consentir em que trocasse a agricultura pela vida litteraria. Mas o estudante, com a confiança que lhe inspirava o facto de frei Simão ser irmão da mulher amada, e liberal convicto, não tardou a abrir-se em confidencias com elle. Contou-lhe que em Coimbra era caloiro do alumno de medicina José Maria de Lemos, parente proximo do bispo-conde, e unico estudante que admittiam ás suas conferencias os organisadores da loja maçonica _Sapiencia_, a qual no anno seguinte começou a funccionar perto do Collegio Novo. Pela convivencia com o Lemos, a quem era cegamente dedicado, ganhára José Maximo decidido enthusiasmo pelos principios liberaes, que sentia não poder defender ainda a peito descoberto em razão de ser estudante de somenos categoria. Contou-lhe mais que quem o recommendára ao academico Lemos fôra o major reformado José Maximo Pinto da Fonseca Rangel, seu padrinho e parente, que de uma quinta de Traz-os-Montes tivera de evadir-se para Hespanha, por estar implicado na mallograda revolta constitucional de Lisboa. Todo o seu desejo era vingar algum dia os trabalhos que o padrinho estava soffrendo por amor da liberdade. Revelou a frei Simão que escrevêra uma óde em honra de Gomes Freire, e que a mandára ao padrinho para Hespanha. Finalmente, segredou-lhe que occultava as suas ideias ao tio de Cezár, que não podia vêr liberaes, e que lh’as occultava porque gostava de vir passar com elle as férias. N’este lance, calou José Maximo, discretamente, a razão capital por que preferia Cezár ao Fundão para passar as férias, a qual razão vinha a ser estar namorado de D. Anna de Vasconcellos, a mais linda entre todas as irmãs de frei Simão. O frade comprehendeu José Maximo, e affeiçoou-se-lhe pela concomitancia de sentimentos liberaes, que os igualava em pontos de vista politicos, apesar do frade ser alguns annos mais velho que o estudante. Frei Simão gostou do rapaz, poeta da liberdade aos vinte annos. Mas Ignacio da Fonseca, o tio de José Maximo, surprehendendo-o uma vez a conversar com frei Simão, empoleirados ambos no muro de um atalho, berrou com o sobrinho, quando elle entrou em casa, e prohibiu-lhe expressamente que mantivesse relações com um sujeito de tão más ideias, disse Ignacio da Fonseca, e peiores sentimentos. José Maximo, tendo inquadrada na alma ardente a imagem de D. Anna de Vasconcellos, só a ella via emquanto Ignacio da Fonseca berrava. E para evitar a contrariedade de ser expulso de Cezár, metteu-se debaixo dos pés do tio, attribuindo a um encontro casual a conversação no atalho. —O que te disse elle? perguntava apopletico o lavrador. Havia de fallar-te d’esses marotos de Lisboa, raça infame de pedreiros-livres, corja maldita de maçons, que querem dar cabo da Santa Religião e d’El-Rei nosso senhor... —Não fallamos de politica, meu tio, respondia José Maximo mentindo com quantos dentes tinha na bocca. Que me importa a mim a politica? —Mas o que te esteve então elle dizendo? —Contou-me historias dos frades de Alcobaça. —Bonitas historias deviam ser essas! contadas por um frade impio, que abandonou a casa de Deus para vir ser vadio e espião na sua terra! —Espião! exclamou involuntariamente José Maximo. —Espião, sim, que se não pode dar um passo sem ser presentido por elle. Mas que tome cuidado, que assim como Gomes Freire e os outros estão com a vida por um fio, bem lhe pode acontecer o mesmo, e não se perde grande cousa. —Eu ignorava que o tio não queria que fallasse com frei Simão. Mas para o futuro cumprirei as suas ordens. —Eu sei lá! Tu foste levado á pia do baptismo por um maçon (referia-se ao major reformado Fonseca Rangel), tens o mesmo nome, podes ter tambem as mesmas manhas do teu padrinho. Mas põe os olhos n’elle, que lá anda a monte por Hespanha, por ser jacobino e cuspir na sagrada face de Jesus Christo. —Meu padrinho fazia isso? perguntou José Maximo com inadvertida incredulidade. —Pois o que fazem todos os pedreiros-livres, toda a cáfila dos maçons?! Se o não sabes, não o queiras saber, porque mettes a tua alma no inferno. Juizinho, sr. José Maximo, e não me ande por esses campos de Cezár a ler livros que não sei d’onde lhe vieram, nem a cochichar com o frade do Outeiro, que fez pacto com Satanaz. Que livros são esses que tu lês? —São os meus livros de Coimbra, tio. —Pensei que fossem de França ou de Hespanha... Estás em ferias, não estás? Pois descansa, e diverte-te. Pega n’uma espingarda e atira aos passaros. Isso é que é divertimento proprio de um rapaz, quando não tem que fazer. José Maximo, logo que o tio voltou costas, foi esconder entalada n’uma trave do sótão a Folhinha do Père Gérard, publicação revolucionaria, vinda de França, de que um francez, Jacques Borel, havia mandado imprimir em Pariz doze mil exemplares, que, traduzidos em portuguez, foram expressamente destinados a Portugal. Esse era o livro que elle, dias antes, andára lendo por disfarce nas circumvisinhanças do Outeiro, de modo a poder vêr de longe D. Anna de Vasconcellos, que de quando em quando chegava a uma das janellas empanadas por uma espêssa cortina de parietárias. Elle bem tinha visto passar o tio, de enxada ao hombro, em direcção á _presa_, cujas aguas ia soltar para a réga. Todo o cuidado de José Maximo, n’essa occasião, foi mostrar-se muito absorvido na leitura, para evitar que o tio podesse suspeitar que a cabeça de D. Anna José estava espreitando por sob as bambolinas da trepadeira. Mas, se se livrou de um perigo, cahiu n’outro, porque Ignacio da Fonseca, se não suspeitou do namoro, desconfiou do livro. Ainda bem que o lavrador lhe manifestou essa desconfiança, porque José Maximo preveniu-se escondendo a Folhinha do Père Gérard. Se Ignacio da Fonseca a tivesse podido haver á mão, decerto a teria ido mostrar ao abbade Moreira Maia ou ao padre Antonio Pinheiro, que lhe abririam os olhos sobre a inconveniencia de tal leitura,—uma peste revolucionaria. O abbade Moreira Maia era um conservador sincero, mas tolerante, talvez porque a indole sentimental lhe amaciasse as convicções politicas. Era um poeta, que amava os versos e as flores. Posto gostasse de exteriorisar um grande respeito pelas tradições fidalgas, de exhibir pomposamente cavallos e lacaios, dedicava-se a cultivar os canteiros no jardim do presbyterio, jardim embonecado de estatuas mythologicas, com disticos em verso compostos pelo abbade. Todos os dias Moreira Maia descia a escada de pedra do Passal para ir tratar das suas flores. Só depois de satisfeita essa predilecção artistica, vestia uma casaca de sêda verde, ultimava a sua _toilette_ elegante de cavalleiro. Quando sentia o tinir das ferraduras do cavallo impaciente no largo que se defronta com a egreja, e a meio do qual se levanta um cruzeiro, era que o abbade apparecia á varanda aberta, que então havia no Passal, calçando ainda as suas grandes luvas de anta. Depois, de chicote debaixo do braço, apertando por ventura algum botão das luvas, descia a escada, e examinava o cavallo, que um lacaio segurava pela rédea. Se não tinha qualquer observação a fazer, montava com firmeza, e lá ia, como se dizia então, fazer estremecer as pedras das ruas em Oliveira de Azemeis. Este typo de abbade, dado a proezas equestres e venatorias, padre enxertado em _sportman_, foi muito vulgar n’aquelle tempo. A sua _toilette_ mundana era a casaca. O famoso _bispo santo_ de Bragança e Miranda, D. Antonio Luiz, que por esse tempo era assumpto de contradictorias opiniões, queixou-se em carta ao abbade de Rebordães de que, ao tomar conta da sua diocese, o commum da clerezia trazia casaca, salvos alguns raros ecclesiasticos, mais pios, que usavam uma chamarra aberta; e accrescentava que só á força de advertencias conseguira impôr o habito talar cerrado na forma dos canones. Mas o _bispo santo_ não fizera escola nem entre os prelados seus collegas, nem entre o clero de Bragança e outras dioceses. O que em geral os ecclesiasticos vestiam fóra da egreja era a casaca de sêda. O abbade Moreira Maia não singularisava, pois, uma excepção. E, com a liberdade então permittida á sua classe, passava grandes temporadas longe da parochia, em festas de _sport_ e distracções artisticas, sempre com um certo cunho de elegantes mundanidades. Levava comsigo para as caçadas e demais excursões recreativas todos os seus lacaios, todos os criados de libré, em numero ostentoso. Na abbadia ficava apenas uma criada velha, Gertrudes Magna, tia do padre Antonio Pinheiro, que ella havia creado de pequenino, e que o abbade escolhera como coadjuctor, para curar a parochia durante as suas longas e frequentes ausencias. Este padre era um espirito concentrado, que fugia ao mundo. Vivia habitualmente no Passal de Cezár, mettido no seu quarto, entregue á leitura dos livros santos, e sempre prompto ao trabalho parochial, que o abbade tantas vezes declinava n’elle. Vivia uma vida simples, frugal, inteiramente opposta á do abbade. Era uma alma sincera, incapaz de odios, mas a quem causavam horror todos os inimigos da religião christã, suppostos ou verdadeiros. Frei Simão, para elle, estava n’este caso. Horrorisava-o, porque era pedreiro-livre, segundo se dizia, e os pedreiros-livres, sobre não ter religião, insultavam-n’a. Por sua parte, o abbade Moreira Maia não podia gostar, como realista que era, do frade constitucional do Outeiro. Mas não o detestava, porque o seu animo era avesso a perseguições facciosas e porque, respeitador da tradição das familias, reconhecia em frei Simão um homem de boa linhagem. José Maximo, depois das explicações que tivera com o tio, resolveu escrever a frei Simão, communicando-lhe que Ignacio da Fonseca via com maus olhos que publicamente conversassem um com o outro. Contava-lhe o caso da Folhinha do Père Gérard. E pedia-lhe que continuasse a ser seu amigo, e a manter relações com elle, embora precisassem, d’ali em deante, occultar discretamente as suas entrevistas. Para ser mais uma vez agradavel ao tio, José Maximo limpou uma espingarda velha que encontrou a um canto da casa, e foi caçar. Completando o disfarce, o estudante disparava muitos tiros sempre que avistava Ignacio da Fonseca trabalhando nos campos com os criados. O tio, ouvindo as detonações successivas, olhava para o ar e, como não visse passar caça, ria-se, e dizia para os criados: —O diabo do rapaz entende tanto d’aquillo como de lagares de azeite! III Loucura revolucionaria Que erradas contas faz a phantasia! Pois tudo pára em morte, tudo em vento, Triste o que espera! triste o que confia! Camões—«Sonetos». A 18 de outubro de 1817 ardiam nas fogueiras do Campo de Sant’Anna em Lisboa os cadaveres dos patriotas liberaes, que haviam sido condemnados pelo crime de lesa-magestade e alta traição. A respectiva sentença ordenava que os corpos de doze conspiradores, depois de terem passado pelo garrote, depois de lhes haverem sido decepadas as cabeças, fossem queimados, e as suas cinzas lançadas ao mar. Apenas abria excepção, pelo que tocava á infamia posthuma da fogueira, para quatro reus. Mas a todos envolvia na confiscação dos bens que possuissem. O tenente-general Gomes Freire de Andrade foi executado na torre de S. Julião da Barra, longe dos seus companheiros de desgraça, porque se receiou que o supplicio n’uma praça publica désse origem a manifestações populares. O crime d’esses doze patriotas, e de outros que foram condemnados a degredo, consistia na aspiração de libertarem o paiz da tutella do marechal Beresford, como primeiro passo para a conquista de um regimen de autonomia constitucional. A denuncia foi feita ao proprio marechal por tres individuos alliciados pelos conspiradores. Beresford tratou de coordenar as provas da conspiração. Depois entregou o processo ao conselho da regencia, para que o fizesse submetter a julgamento summario, sem admissão de recurso ao rei, que estava no Rio de Janeiro. Mal podemos imaginar hoje a profunda sensação que este lugubre acontecimento causou nos espiritos fanatisados pelo ideal da liberdade. O sangue das victimas clama vingança. As fogueiras de Lisboa aqueceram, ao longe, nas provincias, o desejo da desfórra. Só Lisboa ficou como que mergulhada n’um enervamento de pasmo e terror. Todas as esperanças dos liberaes se voltavam para o norte do paiz, especialmente para o Porto, terra classica das arremettidas corajosas. Suspeitava-se vagamente que não ficariam inertes alguns homens de grande valor, cujo espirito era reconhecido n’aquella cidade como affecto ao progresso das instituições politicas. Indicavam-se nomes: o do desembargador Fernandes Thomaz e o do advogado José Ferreira Borges, secretario da Companhia dos Vinhos. José Maximo já tinha voltado a Coimbra quando o garrote e o fogo fizeram abortar em Lisboa a primeira tentativa de revolução. A tal ponto se exaltou, que abandonou o Collegio das Artes e, deixando uma carta confidencial ao seu _veterano_ Lemos, sahiu de Coimbra. Chegou de noite a Cezár e foi bater á porta da casa do Outeiro, dizendo-se portador de uma mensagem secreta para frei Simão. Após breves momentos de espera, o ex-frade de Alcobaça appareceu a receber o mysterioso mensageiro. Ficou admirado de vêr ali, áquella hora, José Maximo da Fonseca. O estudante não justificou a visita senão pelas exaltadas palavras com que rapidamente denunciou o estado do seu espirito. Vibrava indignado pelos acontecimentos de Lisboa. Sentia-se incapaz de estudar, revoltava-o a ideia de receber a instrucção pela taça da tyrannia, segundo o seu proprio modo de dizer. Preferia ser soldado e conspirador onde quer que a causa da liberdade carecesse dos seus serviços. Se fosse precisa uma cabeça para o sacrificio, da melhor vontade offereceria o seu corpo ao garrote e á fogueira. Frei Simão teve um momento de bom conselho fazendo notar a José Maximo que elle arriscava o seu futuro, e incorreria não só no desagrado, mas até no odio do tio. O estudante respondeu com fogosa convicção: —Que me importa arriscar o futuro, se estou prompto a arriscar a vida?! Frei Simão, encantado com o animo valoroso d’aquelle rapaz, que pelo ardor do sangue parecia seu irmão, deixou cahir a mascara, e tambem por sua vez clamou por vingança contra os algozes de homens cujo unico crime era amarem a liberdade e a patria. Estabelecida uma intima communicação entre o frade e o estudante, como se uma corrente electrica os inflammasse simultaneamente, frei Simão contou a José Maximo que tinha recebido uma carta do Porto, de seu irmão Frederico, que em linguagem nublosa lhe dava a entender o que quer que fosse de possiveis combinações revolucionarias. Frei Simão suspeitava que Frederico o saberia por confidencia do coronel Sepulveda. —Pois vou ao Porto! disse com resolução o estudante. E parto já. —Já?! exclamou com surpresa frei Simão. Correu o frade a uma das janellas e abriu-a de repente. A madrugada clareava o ceu n’uma alvura nitente de leite crystalisado. —Não! disse elle. Os criados de seu tio, e talvez elle proprio, já devem estar a pé. Seria uma imprudencia inutil atravessar agora Cezár, podendo ser surprehendido. Vossa mercê fica n’esta casa até que escureça, e partirá de noite. Dar-lhe-hei uma carta para meu irmão Frederico, que mora a Santo Ovidio, perto do quartel. Só lhe peço, como retribuição, que, n’uma cifra que logo combinaremos, me vá informando do que se passar no Porto. Ficar n’aquella casa até á noite! Passar um dia inteiro sob o mesmo tecto que abrigava D. Anna de Vasconcellos! Só este programma de felicidade o poderia deter na sua louca aventura de ir ao Porto. Se fôra o amor que o trouxera a Cezár, a pretexto de desabafar com frei Simão, seria ainda o amor que o reteria ali durante umas felicissimas vinte e quatro horas, que passariam rapidas como um sonho. José Maximo, olhando para dentro de si, sentia-se heroe. No meio d’aquella familia liberal, Anna de Vasconcellos seria decerto a primeira pessoa que lhe engrandeceria a coragem e o arrojo, e era justamente a seus olhos que elle ambicionava ser heroe laureado ou victima celebre. Pouco lhe importava que acontecesse uma ou outra cousa, comtanto que D. Anna o considerasse como um homem da estatura moral de frei Simão, capaz de arrostar com odios acerbos e de manter até ao heroismo as suas fortes convicções politicas. Quiz frei Simão que José Maximo fosse descançar algum tempo da fadiga da jornada. O estudante obedeceu por delicadesa, porque não sentia cansaço nem somno. Deram-lhe o quarto _dos hospedes_, sempre preparado nas casas hospitaleiras da provincia. José Maximo deitou-se, mas não conseguiu adormecer. A sua fogosa imaginação ardia em sonhos de vaga felicidade. Cria-se já um heroe na atmosphera d’aquella casa, a que o coração o prendia. A imagem de Anna de Vasconcellos, que devia estar ali perto, sorria-lhe como o anjo da victoria, que lhe promettesse os louros de um duplo triumpho. Ás oito horas da manhã, frei Simão bateu á porta do quarto do hospede. Eram horas de almoço. José Maximo não se fez esperar muito tempo. O coração saltava-lhe do peito em palpitações desordenadas. Era que se aproximava o momento de, pela primeira vez, poder fitar rosto a rosto a mulher amada, que até ahi apenas tinha contemplado de longe. Durante o almoço e as breves horas que se lhe seguiram, o precoce revolucionario do Fundão sentiu-se cobarde deante de D. Anna de Vasconcellos, a si proprio se extranhou pelo acanhamento que o enleiava. Cerca do meio-dia, o acanhamento converteu-se em extasi quando, na sala nobre do Outeiro, a formosa menina dedilhou timidamente cythara franceza, em honra do seu hospede. Ao declinar da tarde, o estudante tinha ganhado coragem, a ponto de, já senhor de si, poder dizer de fugida a D. Anna de Vasconcellos uma coisa que ella sabia a preceito: «Amo-a como se pode adorar um anjo.» A esta incendida declaração de amor respondeu uma onda de sangue, que do coração subiu ás faces de Anna de Vasconcellos. Pelas oito horas da noite, frei Simão chamou á parte José Maximo, que se preparava para partir, e disse-lhe: —Vossa mercê certamente leva pouco dinheiro comsigo. Bolsa de estudante costuma ser magra. José Maximo respondeu, de prompto, que não precisava dinheiro. —Ha de precisar, replicou frei Simão, pelo menos para as primeiras despesas. Depois, meu irmão Frederico, como n’esta carta lhe recommendo, olhará por vossa mercê. José Maximo quiz ainda resistir á offerta, mas frei Simão entregou-lhe uma peça de ouro, dez crusados novos, e, como galanteria, a titulo de recordação d’aquella visita, um _napoleão_, moeda franceza que Junot havia introduzido em Portugal, e que tinha corrido com o mesmo valor das peças portuguezas: 6$400 réis. —Esta moeda, disse o frade referindo-se ao _napoleão_, ficou com algumas outras no pé de meia da minha familia como memoria historica de uma epocha nefanda. Quero eu que vossa mercê a possua como um vademeco que lhe ha de espiritar o amor á patria e á liberdade, quando se lembrar de que os tyrannos pretendem escravisar os povos não só pelo ferro, mas tambem pelo ouro. José Maximo agradeceu, confundido, a generosa dádiva de frei Simão, e sahiu da casa do Outeiro tão fascinado pela recordação deliciosa d’aquelle dia como pela ambição de poder ser, aos olhos de Anna de Vasconcellos e da patria, um libertador audaz, um redemptor immortal. Metteu por atalhos até encontrar, á distancia de uma legua, a estrada real de Coimbra ao Porto. Graças á generosidade de frei Simão, poderia fazer o resto da jornada mais commodamente, logo que encontrasse no caminho um almocreve ou um lavrador que lhe quizesse alugar um macho. Marchou desembaraçadamente toda a noite. Só quando já alvejavam os primeiros clarões da manhã, descançou recostado ao tronco de uma arvore, por alguns momentos. Então uma voz de camponesa, plangentemente cadenciada, começou a cantar a pequena distancia: Quem quer vêr um infeliz, Que nasceu ao pé da faya? Não ha desgraça nenhuma, Que n’este infeliz não caia! José Maximo, instinctivamente, levantou os olhos para a arvore a cujo tronco se tinha encostado: era uma faya. Esta coincidencia impressionou-o. Elle tinha bebido com o leite materno a credulidade nas superstições populares. Os agouros são a tea de aranha em que se enrédam muitas organisações audazes, que não costumam tremer deante de perigos reaes. Um vago presentimento intimida-as mais do que um franco adversario. E comprehende-se que seja assim, porque os fortes, por isso mesmo que não receiam os homens na lucta com elles, apenas podem acobardar-se deante do poder mysterioso que regula os acontecimentos humanos. Aquelle rapaz, que parecia haver nascido para luctar, tinha, como Achilles, um calcanhar vulneravel: era a indole supersticiosa. Por isso, ergueu-se rapidamente, seguindo jornada para fugir a esse logar de triste recordação,—como quem se dá pressa em cortar o inesperado encontro de um ruim agouro. IV A iniciação ...a elle aprouve que não per officio, mas per indiguação, não por premio, mas de graça, e mais offerecido que convidado... João de Barros—«Década primeira». José Maximo chegou ao Porto e correu a casa de Frederico Pinto para lhe entregar a carta de frei Simão. Eram as suas credenciaes de revolucionario: desejava apresental-as sem demora. Na casa de Santo Ovidio, o _camarada_ de Frederico Pinto disse-lhe que o sr. alferes ajudante devia estar no quartel. José Maximo atravessou rapidamente a rua, foi procurar o ajudante. Pelo Campo passeiavam alguns officiaes, mas o estudante, tão cego ia, que não fez reparo n’elles. Chegando á porta do quartel, perguntou á sentinella: —Pode dizer-me onde está o sr. alferes ajudante? —Acolá, conversando com o nosso coronel, respondeu a sentinella. Então José Maximo viu que effectivamente o coronel e o ajudante andavam passeiando junto ás arvores, que ao oriente marginam o Campo de Santo Ovidio. Dirigiu-se para os dois e, parando deante d’elles, disse tirando o chapeu: —Desejo entregar ao sr. alferes uma carta de frei Simão de Vasconcellos. Frederico Pinto mostrou-se algum tanto inquieto: receiou más noticias de Cezár. —Peço licença ao meu coronel... disse elle. —Á vontade, respondeu Sepulveda, affastando-se um pouco, e continuando a passeiar. O ajudante leu com visivel interesse, e a sua physionomia, durante a leitura, revelava surpreza. Quando chegou ao fim da carta, mediu com um olhar perscrutador a pessoa de José Maximo. Tudo o que se estava passando lhe devia parecer muito extraordinario, porque Frederico Pinto mostrava-se enleiado, sem atinar com o que havia de dizer. Felizmente encontrou uma formula dilatoria, que lhe permittiu tirar-se do embaraço. —Folgo muito de conhecer o sr. José Maximo, e, como deseja meu irmão, estou inteiramente ao seu dispôr. Louvo a sua patriotica resolução, e oxalá que ella possa ser util á salvação do reino. Mas vossa mercê comprehende que n’este momento não podêmos alongar-nos n’uma conversação, que lhe aproveite. O meu coronel está esperando por mim. Ámanhã fallaremos, se me der o prazer de procurar-me em minha casa. Acolá... E indicou-lhe o predio em que morava e que José Maximo já aliás conhecia. O estudante retirou-se um pouco contrariado. Imaginava elle que o mesmo seria chegar ao Porto e iniciar-se no segredo das combinações revolucionarias. Frederico Pinto contou ao coronel Sepulveda o que acabava de passar-se. Leu-lhe a carta de frei Simão, accentuando os periodos que diziam: «Este moço possue uma alma generosa e heroica. Adivinho n’elle um homem de acção. Aproveital-o será bem servir a patria. Entrego-t’o para que o protejas e dirijas.» Sepulveda riu d’esta inesperada apparição de um rapaz exaltado até á loucura do heroismo. —Feliz idade! disse o coronel. Mas desgraçada familia, a quem elle decerto prepara os grandes desgostos que resultam das contingencias politicas. —O que eu não sei é o que lhe hei de dizer! Que vá estudando, é talvez o melhor conselho que posso dar-lhe. E se elle quizer ficar no Porto, offerecer-lhe-hei o auxilio que precisar. —Sim, respondeu Sepulveda muito reflexivo. Mas não me parece conveniente que o hospéde em sua casa. O rapaz é exaltado, pode comprometter o hospedeiro. De mais a mais, ninguem tem o dom de adivinhar ao certo quanto tempo durará ainda a incubação de graves acontecimentos. E lembre-se o ajudante de que, se o seu casamento se antecipar, o que é possivel, a presença de um hospede permanente ser-lhe-ha incommoda. —Tudo isso me tinha lembrado, coronel, e foi essa a razão de lhe não offerecer a minha casa. —Mas, continuou Sepulveda sempre reflexivo, eu hei de fallar n’este caso ao Fernandes Thomaz. Veremos o que elle diz. Entretanto o ajudante vá-lhe dizendo que espere, sem lhe dar outras explicações, que nos possam comprometter. —De certo, meu coronel. Farei isso. Aquillo, no Porto, estava ainda muito atrazado. Refiro-me aos trabalhos preliminares da revolução. Fernandes Thomaz pensava n’ella; Ferreira Borges tambem. Sepulveda estava disposto a auxiliar o movimento. Mas não passava tudo ainda de vagos projectos, descosidos e nublosos. Comtudo, o coronel, logo que esteve com Fernandes Thomaz, contou-lhe a historia de José Maximo. Riram ambos com o caso, mas Fernandes Thomaz, com a sua intuição de revolucionario, acabou por dizer: —Quem sabe se o rapaz nos poderá prestar para alguma cousa, visto que frei Simão o afiança! Veremos. Trez dias depois, José Maximo escrevia para Cezár a frei Simão. A sua carta, em cifra, denunciava certo desalento. «Seu irmão, dizia-lhe elle, recebeu-me muito bem, mas, quanto ao que nós sabemos, apenas me disse: Espere. E eu estou esperando que o coração da patria accorde. Ardo na febre da impaciencia, e receio que ella chegue ao periodo agudo do desespero». Aproximando-se o natal de 1817, José Maximo consultou Frederico Pinto sobre se deveria ir, como costumava, passar as ferias em Cezár. Já o ralavam saudades de Anna de Vasconcellos. E, pelo que tocava á revolução, não estava menos atormentado, se bem que Frederico Pinto lhe tivesse dito uma ou outra vez com mais alguma decisão: «Isto vai indo.» Que fosse a ferias, aconselhou-lhe d’ahi a dias o alferes ajudante, para que o tio de Cezár não desconfiasse da sua estada no Porto. Mas concluiu por dizer-lhe em tom imperativo: «Vossa mercê deve voltar depois do Natal, porque parece que os seus serviços vão ser aproveitados.» Oh! que doida alegria a que estas laconicas e mysteriosas palavras deram a José Maximo! Ia vêr Anna de Vasconcellos e entrar, finalmente, nos segredos da conspiração. Sentia-se duas vezes ditoso. Sob esta agradavel impressão partiu para Cezár. Uma vez em ferias, tudo se passou como de costume. José Maximo, de arma ás costas, rodeiava, com disfarce, a casa do Outeiro, para avistar Anna de Vasconcellos, que perpassava no pateo de pedra voltado para os campos ou assomava de fugida a alguma das janellas viradas ao nascente ou passeiava com as irmãs no souto de Santa Luzia. N’aquelle tempo Cezár era uma terra morta, muito solitaria. Não a povoavam, como hoje, prédios garridos, de brazileiros dinheirosos. As duas torres da egreja, uma sem sinos, pareciam envergonhadas, em sua modestia, de defrontar-se com as estatuas pretenciosas do jardim do abbade,—unica pompa evidente em Cezár. O basto pinheiral da serra do Pinheiro, ao norte, occultava n’uma solidão melancolica alguns vestigios de construcções celticas, ruinas do passado. E ao sul, a capellinha alvejante da Senhora da Graça era a unica nota risonha, que quebrava a monotonia triste do pinheiral, prolongado e basto. José Maximo não aguentaria o aborrecimento de Cezár, se a imagem de Anna de Vasconcellos, vista de longe, não pairasse sobre toda aquella adormecida solidão de pinheiros e campos de milho, illuminando-a como uma aurora. Mas forçoso era contentar-se com isso, vêl-a de longe, a discreta distancia, e com alguma secreta entrevista que tinha com frei Simão na espessura da serra do Pinheiro e em que juntos scismavam no que viriam a dar as mysteriosas combinações revolucionarias do Porto. Chegado o dia de Reis, José Maximo, ardente de impaciencia, mandou um adeus escripto a D. Anna de Vasconcellos e partiu. Ao cabo de algumas semanas de espera no Porto, passado o dia 21 de janeiro de 1818, Frederico Pinto disse-lhe com grande reserva: —Amanhã, pelas oito horas da noite, vossa mercê irá á casa n.º 32 da rua das Taypas. Subirá cautelosamente até ao primeiro andar, e ahi baterá quatro pancadas na porta, com os nós dos dedos. Se de dentro lhe responderem com identico signal, vossa mercê poderá entrar com plena confiança, porque estará entre amigos, e fará o que lhe disserem. José Maximo não dormiu essa noite, nem teve vontade de comer no dia seguinte. Dirigindo-se, á hora convencionada, para a rua das Taypas, entrou na casa que Frederico Pinto lhe indicára, e bateu quatro pancadas na porta do primeiro andar, com os nós dos dedos. Houve um momento de silencio e de demora. Mas outras quatro pancadas responderam de dentro, e a porta abriu-se. José Maximo, entrando, viu trez homens sentados a uma mesa, sobre a qual ardia um candieiro de latão com trez bicos. Todos os trez homens tinham a cara coberta por uma mascara de panno preto, similhante á dos _Farricôcos_ das procissões de penitencia. Este apparato de mysterio, em vez de maguar José Maximo, agradou-lhe, porque lhe deu a impressão de estar n’um club revolucionario, em exercicio de funcções. Desde aquelle momento tambem elle era um conspirador. Convidado a expôr as suas convicções politicas, José Maximo fel-o com desembaraço, até com exaltação. Applaudiram-lhe a fé patriotica, propria de corações generosos, mas recommendaram-lhe discrição e prudencia. —Tanto mais, disse um dos mascarados, que a missão de que vossa mercê vae ser encarregado, requer um longo e sabio disfarce. O nosso unico receio é a pouca idade de vossa mercê, que o pode fazer cahir em surprezas e armadilhas. José Maximo replicou com grande energia de caracter que, qualquer que fosse a missão que lhe incumbissem, saberia desempenhal-a com tino e perseverança. Havia nas suas palavras uma rara dedicação partidaria em tão verdes annos. Sentia-se n’aquelle moço, quasi imberbe, a alma de um conspirador por vocação. Um dos mascarados, ouvindo a profissão de fé de José Maximo, passou a expôr a missão que lhe destinavam. Precisavam conhecer a maneira de pensar das principaes auctoridades civis e militares do Porto com relação ao projectado movimento revolucionario: sondar até que ponto poderiam contar com a sua tolerancia ou apoio; e sobretudo ser informados com solicitude do que se fosse passando em casa d’essas auctoridades, especialmente da qualidade e numero das pessoas que com ellas tivessem mais demoradas conferencias. —Para isto, disse um dos mascarados, precisa vossa mercê tomar um disfarce qualquer, e esse disfarce não poderá deixar de ser o de uma occupação humilde, que vossa mercê supportará com paciencia e habilidade. O mais conveniente seria o de serviçal, por se adaptar melhor ao nosso plano, visto ser pessoa de portas a dentro. —Obedecerei incondicionalmente, respondeu José Maximo. O inesperado d’este lance excedia todas as previsões, todos os seus sonhos de conspirador. A surpresa como que o aturdira por instantes. Mas um dos mascarados, julgando erradamente que José Maximo esfriára perante o sacrificio que lhe era exigido, procurou dissipar-lhe suppostos escrupulos, dizendo: —Os nossos adversarios auctorisaram pelo exemplo os meios de que lançamos mão. Pois não é verdade que, na mallograda tentativa do anno passado, um desembargador, ajudante do intendente geral de policia, não duvidou introduzir-se no carcere de um dos conspiradores, o architecto Sousa, para lhe arrancar revelações? Comtudo nós apenas procuramos o bem da patria; longe está do nosso animo o perseguir individuos e fazer victimas. —Todos os meios são bons, quando os fins os justificam, respondeu resolutamente José Maximo. —Muito bem! Vossa mercê terá que sahir de tempos a tempos da casa que o receber como serviçal, para com o maior disfarce ir relatar á pessoa, que móra no Campo de Santo Ovidio, tudo o que tiver visto e ouvido. Convem que adopte um nome supposto, e uma supposta naturalidade. Pode vossa mercê dizer-se nascido no Alemtejo. Quanto ao nome, poderá ser Manuel... Manuel... —Do Nascimento, atalhou um dos outros mascarados. Ficará vossa mercê uzando o sobrenome e o appellido de uma famosa victima da inquisição, o illustre _Filinto Elysio_. —Mas convém que nós assentemos no seu nome de guerra para, no caso de qualquer occorrencia desagradavel, sabermos que vossa mercê e Manuel do Nascimento, por exemplo, são uma e a mesma pessoa. —Serei pois Manuel do Nascimento, respondeu José Maximo, e natural do Alemtejo. O resto é comigo, e supponho que vossas senhorias não terão motivo para arrepender-se. —Assim o esperamos. Vossa mercê, segundo o nosso plano, terá que estacionar em varias casas, taes como a do governador das justiças, juiz de fôra do civel e presidente do senado, mas por agora importa que vá offerecer-se á do governador das armas, o tenente-general Filippe de Sousa Canavarro, que precisa de um serviçal, segundo noticia que temos. Como decerto lhe serão exigidas abonações, vossa mercê indicará João Pereira da Costa, seu antigo patrão, residente em Beja, negociante e proprietario, como pessoa competente para informar sobre seus costumes. O governador mandará decerto escrever para Beja, e de Beja lhe responderão satisfatoriamente. Isso é comnosco. Pouco tempo durou a audiencia. José Maximo, feliz por poder prestar um serviço á causa da liberdade, sahiu da casa da rua das Taypas e foi passeiar para o Campo da Cordoaria, muito ufano de si pela confiança que n’elle depositava o club revolucionario do Porto. Ora esse club não representava por então senão o pacto secreto de trez patriotas, que tantos eram os mascarados, a saber: Fernandes Thomaz, Ferreira Borges e Silva Carvalho. Eis o nucleo do famoso _Synhedrio_, que planeou a revolução liberal do Porto. V O Fresca Ribeira E por melhor passar a vida com dissimulação me mudei n’estes trajos; que o logar não soffria mais. Bernardim Ribeiro—«Menina e moça», cap. XXXV. Trez dias depois, José Maximo da Fonseca estava ao serviço do tenente-general Canavarro, na qualidade de segundo criado. Foi admittido sob condição, emquanto se esperavam as informações que o governador mandou pedir para Beja, e que o rapaz julgava lhe seriam honrosas. Effectivamente, assim aconteceu. O _Synhedrio_ tinha preparado bem as coisas. O informador bejense chegava a lastimar que um serviçal tão activo e obediente como Manoel do Nascimento tivesse tomado a resolução de ir para o Porto, talvez seduzido pela esperança de maiores interesses, pois que outro motivo não havia. Todos, em casa do governador das armas, gostavam de José Maximo, incluindo o Teixeira, criado grave ou _escudeiro_, como então se dizia, especie de mordomo, que era difficil de contentar pelo que respeitava ás qualidades dos seus subordinados. Teixeira era um homem de sessenta e cinco annos, que entrára ao serviço da familia Canavarro quando tinha apenas quinze. Consideravam-n’o mais um amigo da casa do que um criado. Alto, sêcco, de maneiras exemplarmente compostas, não deixava nunca a sua casaca preta muito escovada e a sua gravata branca muito clara. Havia sido educado em casa de uma familia nobre de Traz-da-Sé, onde o pai fôra tambem escudeiro. Essa familia extinguira-se, e elle tivera de procurar collocação em outra parte. Entrou na casa dos Canavarros, e nunca mais de lá saiu. Aprendera desde pequeno a respeitar Deus, o Rei, e os patrões. A consciencia da sua posição levava-o, porém, a jámais discutir qualquer assumpto, que fosse extranho ao cargo que desempenhava. Mas tinha convicções intransigentes, embora não ouzasse nunca formulal-as em voz alta. Detestava os _maçons_, porque tinham fama de ser inimigos da religião e do throno. Nas horas vagas, mettido no seu quarto, lia as publicações contrarias á maçonaria. Sobre a sua mesa de cabeceira estavam _A nova sentinella contra maçons_, a _Atalaya contra os pedreiros-livres_, a _Historia certa da seita dos fran-massões (sic)_. José Maximo percebeu rapidamente o feitio do Teixeira. Poucos dias passados, teve occasião de entrar furtivamente no quarto do escudeiro, e de lêr os titulos d’aquellas brochuras. Os factos confirmavam assim as suas previsões: tinha de tratar com um adversario politico, encapotado, mas inoffensivo. Procurou conquistar-lhe a amisade, dizendo uma vez, em voz alta, de modo que o Teixeira podesse ouvir: —Ha criados tão atrevidos, que até se mettem em politica! Eu cá não fallo n’aquillo a que não sou chamado. Respeito Deus Nosso Senhor, abaixo de Deus o Rei, e depois do Rei os meus patrões. Gosto de rir com todos, e não offender ninguem. Uma das feições que José Maximo adaptou artificiosamente ao seu espirito foi o humor alegre, a jovialidade expansiva. As criadas do general riam dos seus ditos facetos, da sua inalteravel bonhomia. —O Manuel, dizia uma serigaita, a Catharina, já muito amoriscada d’elle, está sempre na fresca ribeira! —Pois eu, sr.ª Catharina, até era conhecido na minha terra pelo _Fresca Ribeira_! E José Maximo desatava a rir, a rir, como se effectivamente fosse o homem mais feliz d’este mundo. Elle conheceu, desde o primeiro dia, a cabeça leve d’esta Catharina, mas achou que poderia tirar d’ahi argumento quando fosse preciso despedir-se do serviço do general para passar a outra casa. E não se enganou. Teixeira começou a achar raras e estimaveis qualidades no «Manuel», a tal ponto que ia tendo com elle menos reservas do que com todos os outros criados, passados e presentes. Um mez depois de estar ao serviço do general, José Maximo, tendo sahido pela primeira vez ao domingo, aproveitou a occasião para communicar a Frederico Pinto as suas observações. Metteu-se n’uma mercearia da Ribeira, e escreveu-lhe uma longa carta, da qual a revelação mais importante dizia que a pessoa que repetidas vezes procurava o governador, e se fechava com elle longo tempo, _era o sr. Mello, presidente do senado da camara_. Esta revelação, transmittida ao _Synhedrio_ por intermedio do coronel Sepulveda, foi tida como de bom agoiro. O presidente do senado passava por ser um homem a quem as ideias modernas não repugnavam. Seis mezes depois, José Maximo fazia uma revelação ainda mais importante: tendo sahido o Teixeira para visitar o Lausperenne, pudera escutar á porta de um gabinete em que o governador das armas e o presidente do senado estavam conversando, e ouviu, distinctamente, dizer o general: —Se isso vier, não tomarei a iniciativa, mas hei de respeitar a opinião da cidade. As ideias não se afogam impunemente em sangue. Quando se reprimem hoje pela violencia, resuscitam ámanhã mais exaltadas. _Isso_, na opinião de José Maximo, era a revolução constitucional. Não podia mesmo ser outra coisa, a julgar pelo tom de confidencia em que ambos estavam conversando á porta fechada. Quando José Maximo se via só, pensava, com intensa saudade, em Anna de Vasconcellos. Mas não podia abandonar o posto de honra que lhe fôra confiado, e resignava-se lisongeado pela ideia de que na casa de Cezár era conhecida, pelas suas cartas a frei Simão, a extranha aventura politica que elle, por amor da liberdade, estava correndo no Porto. Embora frei Simão lhe não respondesse, porque José Maximo assim lh’o recommendára, a fim de não receber cartas que, por frequentes, se podessem tornar suspeitas, a familia de Cezár conhecia a enormidade do sacrificio que lhe fôra exigido, e a coragem com que elle o acceitára. O _Synhedrio_, que a pouco e pouco ia augmentando em numero, teve casualmente a contra-prova de que as informações de José Maximo, a respeito do general Canavarro, eram seguras. A certeza d’esta importante adhesão fortaleceu muito o plano do movimento. Desde esse momento os fautores da revolução contaram com o apoio da guarnição do Porto. José Maximo recebeu ordem para, aproveitando o primeiro pretexto, se despedir da casa do governador das armas. Esse pretexto tinha-o elle de remissa havia muito tempo: era, como sabemos, a perseguição amorosa que lhe fazia a leviana Catharina. José Maximo disse em confidencia ao Teixeira que, guardando respeito á casa do general, se ia despedir por aquelle motivo. Teixeira, muito pesaroso, respondeu logo que quem devia ser despedido era a Catharina. Mas José Maximo objectou-lhe que não queria prejudicar uma pobre mulher, a quem a sua má cabeça bastava para desgraça: ao passo que elle, como homem, encontraria sempre mais facil collocação. E despediu-se. Experimentado pela prova de dedicação que acabava de dar, José Maximo foi encarregado de outro serviço, ainda muito mais importante do que o primeiro. Certo o _Synhedrio_ do apoio do general das armas, achou que não valia a pena sondar o animo das outras auctoridades. Por isso, Fernandes Thomaz escolheu José Maximo para seu amanuense, especie de chanceller encarregado dos sêllos privados: era, alem de uma prova de consideração, tambem um premio merecido. Desde esse momento, José Maximo deixou de ser Manuel do Nascimento, o _Fresca-Ribeira_, natural do Alemtejo, para subir a mais elevada categoria, passando a conviver com os deuzes do constitucionalismo no olympo revolucionario do Porto. Foi então que elle poude conhecer Fernandes Thomaz, Ferreira Borges, José da Silva Carvalho, Duarte Lessa e outros, que lhe appareciam já sem disfarce,—com plena confiança. Entrado o anno de 1820, rebentou em Hespanha a revolução liberal, que restaurou a constituição de Cadiz. O povo, amotinado, obrigou Fernando VII a revogar todos os actos com que tinha combatido a liberdade. E como o rei catholico cedesse promptamente, os revolucionarios hespanhoes imaginaram que estava definitivamente restabelecida em Hespanha a idadede-oiro do constitucionalismo. Que fugaz illusão de politicos de boa fé, muito theoricos ou, como hoje diriamos, muito nephelibatas! N’isto se pareceram os de cá com os de lá. O que é certo é que a revolução de Hespanha alentou o animo dos conspiradores do Porto. O _Synhedrio_ ia augmentando em numero: eram treze os seus membros. Declararam-se adhesões até ahi latentes. Por exemplo, o coronel Sepulveda, aliás tão dedicado á causa da revolução, começou a frequentar as reuniões realisadas em casa de Fernandes Thomaz. Meiado julho, attento o estimulo que viera de Hespanha e a apathia de Lisboa, resolveu a junta revolucionaria do Porto não deixar esfriar esse estimulo e tentar ainda vencer o retraimento medroso da capital. Por este motivo resolveu-se que Fernandes Thomaz viesse a Lisboa. Veio, e trouxe comsigo José Maximo, que retomára o seu antigo disfarce de criado, para o acompanhar. A regencia do reino, avisada de que Fernandes Thomaz tinha partido para Lisboa, expediu contra elle apertadas ordens de prisão. Um dia, Fernandes Thomaz tinha sahido logo pela manhã para avistar-se com um amigo, que morava ao Arco da Graça. José Maximo ficou em casa a preparar-se para ir entregar umas cartas, que o desembargador havia escripto na vespera á noite. Descia elle a escada, no seu disfarce de criado, quando entraram dois beleguins. —Olá! ó rapaz! perguntou-lhe um dos esbirros, tu és criado cá da casa? —Sou, sim, senhor. —Dize-nos uma coisa: não está aqui hospedado um sujeito que veiu do Porto? José Maximo respondeu sem a menor hesitação: —Está, sim, senhor. Está lá em cima, no quarto. Chegou ante-hontem. Os beleguins subiram a escada contentissimos, e José Maximo, não menos contente, correu ao Arco da Graça a avisar Fernandes Thomaz do que se tinha passado. Foi tão feliz, que o encontrou no caminho, de volta para casa. Fernandes Thomaz retrocedeu, e n’essa mesma noite retirava com José Maximo para o Porto, demorando-se, de passagem, algumas horas em Coimbra, para conferenciar com o seu particular amigo José Maria da Encarnação. José Maximo tinha ganho, definitivamente, as suas esporas de ouro de conspirador. Se não fosse elle, Fernandes Thomaz haveria sido preso, e a revolução do Porto teria abortado. Fernandes Thomaz, bem como todo o _Synhedrio_, reconheceu, com palavras de muito louvor, esse importante serviço. Sepulveda felicitava-se de ter concorrido para a iniciação de um tão importante e dedicado auxiliar. A felizmente mallograda occorrencia de Lisboa determinou o _Synhedrio_ a precipitar os acontecimentos. No dia 24 de agosto rebentava no Porto a revolução. Todos os coroneis dos corpos da guarnição a apoiaram. O tenente-general Canavarro adheriu, como se esperava. O senado da camara tambem. No Campo de Santo Ovidio, á frente das massas populares, que davam vivas á tropa, distinguia-se José Maximo, cujo chapeu andava n’uma constante rodaviva, regendo os compassos do enthusiasmo revolucionario, como se fosse a _batuta_ de um _maestro_. Numerosos grupos percorriam as ruas da cidade, acclamando os vencedores. Na occasião em que um d’esses grupos passava pela porta do governador das armas, José Maximo avançou e, fazendo concha com ambas as mãos sobre a bocca, berrou para uma das janellas, em que a doidivanas Catharina parecia muito admirada de o vêr: —Ó sr.ª Catharina! agora é que eu estou na minha fresca ribeira! O Teixeira, muito contrariado com os acontecimentos d’aquelle dia, mas sempre muito discreto, abstinha-se de fallar, comquanto não pensasse n’outra coisa. —Parece impossivel, matutava elle, que o sr. general deixe em liberdade todo este desafôro! Até os criados de servir já se mettem a patriotas! Pois o Manuel era um bom rapaz, mas corromperam-n’o! Que pena e que desgraça! VI Uma nuvem em ceu azul Que buscas por aqui por esta serra Que segundo o que julgo vás errado? Frei Agostinho da Cruz—«Varias poesias». Quando a noticia da revolução do Porto chegou a Cezár, frei Simão de Vasconcellos, delirante de alegria, quiz commemoral-a festivamente. Embandeirou as janellas da casa do Outeiro, e mandou á Feira, por um proprio, comprar morteiros e bombas. Estas demonstrações de jubilo irritaram profundamente os visinhos que eram absolutistas. A cada morteiro que estrondeava de dia ou de noite, Ignacio da Fonseca, desesperado, lamentava que o sobrinho estivesse ausente, porque, dizia elle, havia de o mandar disparar muitos tiros, por troça, ao pé da casa do Outeiro. Na sua opinião não havia ninguem como José Maximo para dar tiros á tôa. O abbade Moreira Maia não gostou da «funcçanata» do Porto, como elle classificou ironicamente o inicio do movimento liberal, mas isso não o impediu de montar a cavallo como tinha por costume. Padre Antonio Pinheiro, porém, encerrado no seu quarto, rezava de joelhos, com os olhos fechados, e, ao estrondo de cada detonação festiva na casa do Outeiro, estremecia de terror como se o mundo desabasse em torno d’elle. José Maximo, no dia vinte e seis de agosto, ao fim da tarde, sahiu do Porto depois de ter ido perguntar a Frederico Pinto se queria alguma coisa para a sua familia. Este irmão de frei Simão tinha casado havia um anno, como já sabemos. Frederico Pinto, constitucional dedicado, disse a José Maximo que abraçasse por elle o irmão, ao qual, aproveitando o ensejo, escreveu uma carta. José Maximo recebeu a carta aberta, mas fechou-a na presença de Frederico Pinto. E partiu. Fez a jornada a cavallo, acompanhado por um arrieiro, que despediu a uma legua de distancia de Cezár, no ponto em que tinha de abandonar a estrada real do Porto a Coimbra. Não desejava ser visto por ninguem da casa de Ignacio da Fonseca, mas já o não assustava a hypothese de que o tio viesse a saber que elle estava em Cezár. A embriaguez capitosa da victoria duplicava-lhe a ousadia. Em caminho do Outeiro, viu por entre as plumas amarellas de um campo de milho, que pertencia ao tio, apparecer uma cabeça de homem. Cozeu-se com o muro do atalho, e passou. Na casa do Outeiro foi recebido como um vencedor. Frei Simão deu-lhe uma boa duzia de abraços muito expansivos. Anna de Vasconcellos felicitou-o com ternos olhares, mais gloriosos para José Maximo do que uma corôa de louros. E o estrondo dos morteiros, augmentando, reavivou o desespero de Ignacio da Fonseca e o sobresalto do padre Antonio Pinheiro. Largamente contou José Maximo os trabalhos por que tinha passado no Porto, a sua ida a Lisboa com o desembargador Fernandes Thomaz, factos de que em carta cifrada havia mandado summaria noticia a frei Simão. Estava encantado de ouvil-o, o frade. Sentia-se orgulhoso de _ter inventado_ aquelle revolucionario, por cuja intervenção collaborára tambem no movimento do Porto. Era como que uma vaidade de editor, que acabasse de dar ao prelo uma preciosa obra até ahi inédita e, portanto, desconhecida. —E, agora, o que tenciona vossa mercê fazer? perguntou frei Simão a José Maximo. —Eu sei lá! Estou ao serviço da junta provisional, e farei o que me mandarem. —Volta então para o Porto? —Tenciono voltar esta noite, porque apenas pedi licença por vinte e quatro horas. —Que pressa! Tem vossa mercê deante de si um bello futuro. Mas pena é que não adopte uma carreira definida: a das armas ou a das lettras. São as unicas que no nosso paiz dão presentemente accesso ás maiores honras. Por que não pensa vossa mercê em continuar os seus estudos? —Farei o que os meus amigos quizerem que eu faça. Lembrou-se José Maximo de entregar a carta de Frederico Pinto a frei Simão. O frade leu-a com interesse, e chamou em alta voz as irmãs para repetir a leitura. Frederico Pinto convidava Anninhas—como na familia lhe chamavam—a ir passar algum tempo no Porto, em companhia da cunhada. «Individualiso a Anninhas, dizia o ex-ajudante de infanteria 18, por ser a mais nova das manas, e por isso a que menos falta poderá fazer no Outeiro. Seria muito agradavel a minha mulher ter aqui uma menina da sua condição e do nosso sangue com quem repartisse as alegrias e os cuidados de mãe feliz e dedicadissima. O nosso Frederico promette ser um rapagão sádio e forte. Mas a Margarida queixa-se de que eu não tenho geito nenhum para ajudal-a a enfaixar e adormecer creanças.» Mal podia imaginar José Maximo que essa carta, de que fôra portador, havia de lhe dar tão agradavel surpresa. Ficou doido de alegria. Anna de Vasconcellos tambem não poude dissimular todo o contentamento que a alvoroçou. Consultada por frei Simão, respondeu de prompto que acceitava o convite. As outras irmãs sorriram, e frei Simão imitou-as involuntariamente. José Maximo, vendo sorrir as trez senhoras e o frade, tambem deixou entrevêr um sorriso, de que chegou a envergonhar-se. Só Anninhas, cahindo de repente em si, ficou n’um pudibundo enleio, que a tornou mais graciosa. Durante o dia, José Maximo, aproveitando um momento de estar a sós com frei Simão, disse-lhe improvisamente: —Tenho que fazer um pedido a vossa reverencia. —Um pedido! exclamou o frade. E receiou que José Maximo se lembrasse de pedir-lhe a mão de Anninhas. Frei Simão adorava esse rapaz, é certo, mas não poderia consentir n’um casamento, que desde logo não garantisse a independente subsistencia dos conjuges. A suspeita de ter que recusar, quando quereria conceder, sobresaltou-o dolorosamente. —Um pedido, repetiu serenamente José Maximo. Vai vossa reverencia fazer-me o favor de acceitar uma restituição, sem que se dê por affrontado. —Como?! perguntou frei Simão cada vez mais surprehendido. Uma restituição?! —A ultima vez que estive n’esta casa obsequiou-me vossa reverencia com uma peça de ouro, dez crusados novos e um _napoleão_. Restituo a moeda portugueza, e guardarei a de França, como recordação historica, a que a significação, que vossa reverencia lhe deu, duplica o valor. —Mas então, perguntou o frade, vossa mercê não precisou tocar n’esse dinheiro?! José Maximo sorriu e respondeu: —Esquece-se vossa reverencia de que fui durante algum tempo serviçal assalariado do governador das armas do Porto?! Depois d’isso subi de categoria e tenho recebido honorarios pelo meu trabalho de amanuense da junta. Quiz recusal-os, mas o sr. Fernandes Thomaz disse que, conhecendo os meus apuros, não podia dispensar-me de receber um modesto estipendio. A minha hesitação cessou completamente quando elle accrescentou que apenas queria remunerar os serviços materiaes, porque não havia ouro que pagasse uma dedicação sincera. Ora eu repito a mesma cousa a vossa reverencia: restituo aquillo de que não precisei, mas permanecerei devedor insoluvel pela gratidão eterna que devo a vossa reverencia. Frei Simão estava como absorto deante d’aquella hombridade de caracter, d’aquelle orgulho de fidalgo pobre n’um moço que, por servir a liberdade, se tinha sacrificado ao ponto de assoldadar-se como serviçal. E quasi sentiu remorsos de ter receiado que José Maximo lhe quizesse pedir a mão da irmã. «Não! pensava o frade, um homem d’estes fará minha irmã princesa ou não casará jamais. É muito altivo para lhe impôr o sacrificio da pobresa. Os caracteres que mais facilmente se sacrificam são os que mais obstinadamente procuram evitar o sacrificio alheio.» Frei Simão conhecêra a preceito a alma de José Maximo. Abraçou-o visivelmente commovido, e guardou o dinheiro sem oppôr maior resistencia. Foi já de noite que José Maximo sahiu do Outeiro para o Porto. Nunca elle havia trilhado aquelle caminho em tão alegre disposição de espirito. A causa da liberdade estava ganha. Com a excessiva credulidade que é propria da gente moça, imaginava José Maximo que a revolução liberal era um monumento inabalavel e duradouro como as pyramides do Egypto. Tão cego de enthusiasmo estava, que nem a lição do que se tinha passado em Hespanha lhe acudia á memoria; não se lembrava de que, depois da revolução de Cadiz, Fernando VII se repatriára em triumpho e fôra acclamado rei absoluto pelas tropas do general Elio, com applauso da nação. O que José Maximo apenas via ou queria vêr era a victoria da liberdade em procissão festiva pelas ruas do Porto, e a ventura que n’aquella cidade o esperava na hora em que Anna de Vasconcellos lá chegasse. O coração e o espirito estavam satisfeitos. Parecia a José Maximo que todos os ideiaes da sua vida tinham attingido uma realidade tão feliz como perduravel. Ao entrar no atalho que cortava os milharaes de Ignacio da Fonseca, viu, de repente, trez homens sentados no rebôrdo do muro, que era feito de pedras soltas. Conversavam fumando. José Maximo não gostou do encontro, mas não se acobardou. Levantou a gola da niza, derrubou o chapeu sobre a testa, e seguiu. Tinha já passado pelo grupo, quando um dos trez homens gritou: —Ó sr. José Maximo! Fez que não ouvia. Mas outra voz insistiu: —Então não quer o sr. José Maximo jogar o entrudo comnosco?! Ora quem elle é! O sobrinho do patrão! Vá com Deus, sr. José Maximo, e boa viagem. Nem uma nem duas. José Maximo, que distinguiu perfeitamente a voz de Manel Zarôlho, criado de seu tio, foi andando sem responder. Mas levou a certeza de ter sido reconhecido pelo grupo. Justamente esse criado era o que andava trabalhando no campo quando José Maximo passára para o Outeiro. Viu o sobrinho do patrão, e asseverou aos outros dois criados que era José Maximo em carne e osso. —Aqui anda marosca por força! accrescentou. De casa do frade não sahe cousa boa. Eram as ideias do patrão, a opinião dos absolutistas de Cezár com relação a frei Simão de Vasconcellos. —Homem! pode ser que te enganasses, objectaram-lhe os outros. —Qual historia! Não conheço eu outra cousa! Senão p’ra quê, havemos de desenganar-nos. De dia ou de noite, elle hade sahir do Outeiro, e como foi ás escondidas decerto se não demora muito. Havemos de vêr-lhe a figura. Esperaram-n’o, e reconheceram-n’o, apesar de José Maximo não ter respondido. O povo parece gostar de ser alviçareiro de ruins novas, sobretudo quando se lhe afigura que o revelal-as pode parecer dedicação pelo interessado em sabel-as. Correram pois os trez criados a dar conta a Ignacio da Fonseca do que se tinha passado. O lavrador, que andava aturdido com a revolução do Porto, ficou boqui-aberto. Deu-lhe um bate no coração. —Querem vocês ver, disse elle, que meu sobrinho vai feito com frei Simão e com toda essa maldita cambada de pedreiros-livres?! Pois se assim fôr, não quero que torne a pôr-me a vista em cima, nem tornar a vêl-o n’este mundo ou no outro. VII Angustias A vida, se a não desejára para vos servir, pouco me dêra perdel-a aqui... Francisco de Moraes—«Palmeirim de Inglaterra». —E a _Flor do Támega_? pergunta decerto a leitora, aborrecida de não ter tornado a receber noticias de Chaves. Tem razão, minha senhora. Mas antes v. ex.ª se interesse pelos personagens d’esta novella, que se enfade de os vêr e ouvir. Essa pergunta é uma prova de que v. ex.ª tem seguido a narrativa até ao momento em que estamos agora. Pois, muito respeitosamente, vou informar v. ex.ª do que continuou a passar-se em Chaves, depois que no Porto rebentou a revolução de 20. André Pinto, soffreado pelo conselho de Antonio da Silveira, já despeitado com os constitucionaes, não se atreveu a fazer novos destempêros contra a sobrinha nem contra o capitão de dragões. Amaciou, mas apenas apparentemente. O seu despeito não era menor por concentrado. Desde o momento em que Antonio da Silveira deixou de presidir á junta do governo por incompatibilidade com os seus collegas de Lisboa, que se desfizeram d’elle, toda a familia dos Silveiras ficou unificada no odio ás novas instituições politicas. Trataram logo de conspirar, atiçados de Queluz pela rainha D. Carlota Joaquina, que regressára do Brazil com a côrte, e que só podia contar com as provincias, visto que Lisboa acabara por adherir ao movimento do Porto. Em Chaves, o conciliabulo dos conspiradores reunia-se em casa do juiz de fóra, Antonio Bernardo de Figueiredo, e ahi concoriam todas as noites varios militares, alguns abbades, e outras pessoas em correspondencia com os Silveiras. André Pinto era certo. Tratando-se de procurar attrair ao conciliabulo outros militares, de quem ainda se duvidava ou de quem se receiava mais, alguem fallou no capitão Joaquim Maria de Vasconcellos. André Pinto abanou a cabeça, em signal negativo. Mas não obstante esta manifestação, que se tornou suspeita, porque toda a gente já sabia em Chaves que o capitão namorava a sobrinha de André Pinto, resolveu o conciliabulo que o coronel reformado Manoel Caetano Teixeira Pinto ficasse encarregado de vêr até que ponto se poderia contar com a adhesão d’aquelle official. O coronel desempenhou a sua missão o mais habilmente que poude, mas Joaquim Maria repelliu com energia todas as propostas que lhe foram feitas. Vendo-se rechaçado, o coronel procurou ferir a corda sensivel do amor no coração do capitão de dragões. Lembrou-lhe, sem rebuço, que, amando elle uma sobrinha de André Pinto, e sendo André Pinto um dos mais conspicuos membros do conciliabulo, decerto proviriam grandes desgostos de uma tão intransigente obstinação. E que pensasse serenamente, porque esses desgostos iriam reflectir-se, principalmente, n’uma pessoa que ou havia de submetter-se ou desgraçar-se. Referia-se a Margarida Candida, presumptiva herdeira de André Pinto. Respondeu Joaquim Maria que a sua honra o impedia de adherir á projectada contra-revolução, porque todo o homem que não respeita as suas proprias convicções, se deshonra a si mesmo. Que, visto que a sua inclinação pela sobrinha de André Pinto era conhecida em publico, só lhe restava, ainda que para o fazer tivesse de despedaçar o coração, mandar dizer a essa senhora que a desligava do destino de um homem por quem, se continuasse a amal-o, teria que soffrer grandes amarguras. O coronel transmittiu ao conciliabulo a resposta de Joaquim Maria. André Pinto sorriu ironicamente e commentou: —Então não dizia eu que aquillo é um pedreiro-livre dos quatro costados?! Ninguem se atreveu a responder-lhe. Joaquim Maria cumpriu o que dissera. Escreveu a Margarida Candida uma longa carta, regada por abundantes lagrimas, que pareciam envergonhar a farda de um dragão de Chaves. Dizia-lhe um eterno adeus, e pedia-lhe que se conformasse com a vontade do tio, para evitar desgostos e soffrimentos, dos quaes o menor seria a pobresa a que elle certamente a condemnaria. André Pinto, recolhendo do conciliabulo, correu a dar parte á sobrinha da resposta do capitão. —E agora, perguntou elle, ainda não terás vergonha de namorar um descaradissimo maçon, para quem vales menos do que a Constituição?! —Agora, meu tio, respondeu ella com firmesa, agora é que eu acho que elle é, mais do que nunca, um homem digno do meu amor. —Ah! sim! exclamou André Pinto muito apopletico. Ah! sim! pois eu te ensinarei, minha tonta! E fechou-se no quarto a pensar na melhor maneira de castigar a audacia da sobrinha. A sua primeira idéa foi expulsal-a de casa: que fosse comer o pão que o diabo amassou. Pedisse esmola de porta em porta, já que não tinha juizo nem vergonha. E deitou-se com esta idéa. Mas de manhã accordou com outro projecto, que pareceu ser conselho do travesseiro. Mandal-a-ia para um convento, e esse convento seria o de Arouca, onde havia uma freira sua parenta. Margarida Candida, por sua vez, respondeu ao capitão narrando-lhe o que se tinha passado com o tio. Não podia dar mais eloquente resposta á carta em que Joaquim Maria lhe dizia um «adeus eterno.» Fosse muito embora eterno esse adeus, ella não amaria jamais outro homem: a prepotencia de André Pinto não conseguiria vencer a sua constancia, que era inabalavel. O conciliabulo de Chaves jurou pela pelle de Joaquim Maria. Se vencessem, como esperavam, haviam de castigal-o severamente. E André Pinto, desenvolvendo uma actividade extraordinaria, como quem tem sêde de vingança, mostrava-se encanzinado em adeantar os trabalhos preparatorios da contra-revolução. O seu desejo seria mandar desde logo a sobrinha para o convento de Arouca, mas temia-se da influencia da familia do Outeiro junto do governo e das côrtes de Lisboa. Receiava que ou não admittissem Margarida Candida no convento ou que a fizessem sahir de lá pouco depois de ter entrado. Os dois namorados esperavam todos os dias a realisação das ameaças de André Pinto. O capitão de dragões sabia que os conspiradores tratavam de apressar o movimento em toda a provincia de Traz-os-Montes, e prevenira o general da provincia; fizera mais, escrevêra cartas anonymas aos ministros, avisando-os. No dia 1 de fevereiro de 1823 o governo chamara a attenção do congresso para a necessidade urgente de tomar medidas repressivas. Por sua parte, os Silveiras, vendo que o governo estava prevenido do que se passava em Traz-os-Montes, trataram de pôr quanto antes a revolução na rua. De feito, no dia 23, por occasião de sahir em Villa Real a procissão de Passos, Manuel da Silveira, segundo conde de Amarante, soltou o primeiro grito da restauração. A villa esteve em festa todo o dia e toda a noite. Os revoltosos partiram d’ali para Chaves, onde foram recebidos triumphalmente com repiques de sinos, foguetes e vivas. O conde de Amarante, saudado pelo povo flaviense, fôra hospedar-se em casa de Diogo Pereira de Lacerda, amigo de André Pinto. Duas horas depois de ter chegado a Chaves, Manuel da Silveira mandava chamar a casa de Diogo Pereira o capitão Joaquim Maria. —Capitão, disse-lhe o conde de Amarante, entregue-me a sua espada. —Nunca! respondeu com altivez Joaquim Maria. Reconheço a patente de v. ex.ª, mas reconheço tambem que v. ex.ª está em rebellião aberta contra o governo legalmente constituido. Recuso pois obedecer lhe, visto que v. ex.ª é o primeiro a dar o exemplo de desobediencia e indisciplina. O conde de Amarante não era homem para responder de prompto a um tal rasgo de audaz eloquencia. Ficou assaralhopado, mas André Pinto mandou-lhe soprar ao ouvido que mettesse na cadeia o capitão de dragões. E assim se fez. Manuel da Silveira, sem se importar com a destituição de todos os titulos, honras e mercês, decretada em Lisboa, continuava a intitular-se conde de Amarante, e a prégar a «guerra santa.» O general Luiz do Rego era encarregado pelo governo de organisar uma divisão contra os Silveiras. Isso dava mais algum cuidado ao conde de Amarante do que a exauctoração e o sequestro com que de Lisboa o fulminaram. Mas a sorte mostrou-se propicia ao conde na batalha de Santa Barbara, junto a Chaves, ferida no dia 13 de março, e os absolutistas ganharam alma nova com esse triumpho obtido sobre as tropas liberaes. Rego, desesperado pelo revés que soffrêra, tratou de concentrar forças em Amarante, para impedir que os rebeldes podessem passar ao Porto. Feriu se nova batalha, d’esta vez na ponte de Amarante. A sorte mudara. Os silveiristas, desalojados por uma valente carga de baioneta, metteram-se ao Marão, emigraram para Puebla de Senábria. André Pinto seguiu o destino dos seus correligionarios: fugiu tambem para Hespanha. Em Chaves, o corregedor da comarca, doutor Joaquim Bernardino Rodrigues Coimbra, ordenou ao juiz de fóra substituto, porque o effectivo tinha emigrado tambem, que instaurasse devassa contra os fugitivos pelo crime de rebellião armada. As portas da cadeia foram abertas a Joaquim Maria de Vasconcellos, e a outros presos politicos. Um momento de felicidade sorriu aos dois namorados, que, sem obstaculos, podiam ver-se, e fallar-se, e mutuar-se ternissimos protestos de eterno amor. Mas a devassa contra André Pinto e os seus co-réus fôra instaurada em Chaves no dia 28 de abril e um mez depois o infante D. Miguel fazia a _Villa-francada_, o poder absoluto era restabelecido em Portugal com o applauso da nação. Os emigrados repatriáram-se, victoriosos, e Joaquim Maria foi de novo prêso. Amarrado de pés e mãos, açoutaram-n’o no carcere, na presença de André Pinto, que estimulava os flagelladores, gritando-lhes: —Dai cabo d’esse diabo, que só se perdem as que cahirem no chão. Força, rapazes! Foi facil a André Pinto obter de D. João VI um aviso régio pelo qual o monarcha fazia saber ao respectivo prelado que—«era servido conceder licença para poder ser admittida ao noviciado e profissão da vida religiosa no real mosteiro de Arouca, da vossa obediencia, Dona Margarida Candida Pinto, sobrinha e pupilla de André Pinto, natural da Villa de Chaves, visto n’ella concorrerem as qualidades necessarias: pagará a prestação annual e vitalicia de sessenta mil réis, e não dará dote, propinas, nem outra alguma cousa a qualquer titulo que seja, nem ainda mesmo a titulo de esmola.» Era uma ordem categorica, que saltava por cima de certas formalidades estabelecidas para taes casos. O rei mandava admittir Margarida Candida não só ao noviciado, mas tambem á profissão. Tudo isto se conseguiu com uma simples pennada. André Pinto, para coroar a obra, imaginou fazer passar a sobrinha, quando a enviou a Arouca, pela prisão onde Joaquim Maria jazia entre ferros. Por entre as lagrimas que lhes turvavam a vista, poderam os dois namorados trocar um fugitivo olhar n’esse lance de suprema angustia. Saciada assim a vingança de André Pinto, quiz elle ver-se livre de Joaquim Maria, que foi desligado do regimento de cavallaria 6 e deportado para Aveiro. VIII Entre ferros Despotismo cruel! tua face vejo... Com Joye te mediste. Altivo levantando a voz sem pejo: Antropóphago crú, lavado em sangue, Monstro sem lei, que as leis todas despreza, E arrastra sem vergonha O código da sabia Natureza Marqueza d’Alorna—«Obras poeticas». Margarida Candida entrou no mosteiro de Arouca com a firmeza dos martyres, que não tremem deante do sacrificio. Depois que em Chaves trocou com Joaquim Maria aquelle saudoso olhar afogado em copiosas lagrimas, nunca mais tornou a chorar. A sua angustia concentrára-se n’um silencio doloroso, estrangulado. Liam-se-lhe no semblante os signaes de um grande soffrimento, mas os olhos conservavam-se enxutos e o olhar sereno contrastava com as frequentes contracções nervosas do rosto excessivamente pallido. Toda a communidade de Arouca, com excepção d’uma unica pessoa, era absolutista. Margarida Candida foi, portanto, recebida com uma irritante seccura, quasi hostilidade. Percebe-se. Era um adversario que chegava; mais um, porque no mosteiro já havia outro, D. Ernestina de Carvalho, ainda aparentada com o coronel de milicias reformado, Manuel Monteiro de Carvalho, um dos justiçados do Campo de Sant’Anna, em 1817. Esta senhora era orphã de um guarda-livros do Porto, que nenhuns bens tinha deixado. Foi soccorrida, bem como a mãe, por um tio viuvo que vivia em Lisboa e tinha apenas um filho, que se destinava ao curso de leis. Mas como este tio morresse, tendo gasto com a propria familia e com a do irmão todos os seus honorarios de funccionario publico, Ernestina teve de solicitar a entrada n’um convento, até que o primo se formasse e podesse ganhar dinheiro pela advocacia. A viuva do guarda-livros ficára residindo no Porto, e vivia pobremente de dar lições de primeiras lettras por casas particulares. Ernestina de Carvalho, constitucional por tradição de familia, foi a unica pessoa que no mosteiro de Arouca disse a Margarida Candida uma phrase amoravel. E só muito de fugida lh’a poude dizer, porque toda a communidade vigiava attentamente os passos das duas recolhidas, que entraram precedidas da reputação de constitucionaes. Ernestina, no momento de abraçar Margarida Candida, segredára-lhe com solerte disfarce: «Pode contar comigo.» Esta simples phrase foi para a sobrinha de André Pinto como que uma promessa de amisade e auxilio, que lhe deu maior coragem para o sacrificio. Ernestina sentiu-se desde logo attraída para aquella pobre menina de Chaves, que tinha a seus olhos o duplo prestigio de ser constitucional e de o ser por amor de um homem. Bastaria a primeira circumstancia para a recommendar á condolencia de quem estava ligada por laços de parentesco á memoria de um dos justiçados de Lisboa; mas o facto de se inscrever voluntariamente no martyrologio dos constitucionaes por dedicação ao capitão de dragões Joaquim Maria de Vasconcellos, era um tão galante heroismo, que sobredourava, aos olhos de Ernestina, aquelle predicado. No mosteiro de Arouca sabia-se, de antemão, toda a biographia de Margarida Candida. Fôra André Pinto que informára a freira sua parenta sobre o delicto amoroso da sobrinha, historiando-o miudamente. É certo que pedira segredo, e sóror Maria das Cinco Chagas, ao receber a extensa carta do primo de Chaves, talvez quizesse guardal-o. Mas, a meio da leitura, ou os óculos se lhe começaram a embaciar ou ella achou tão monstruosamente interessante a narrativa, que reconheceu a necessidade de desabafar com alguem. Ambas as coisas seriam talvez. Sóror Maria das Cinco Chagas mandou chamar sóror Genoveva do Espirito Santo para que se encarregasse de continuar a leitura da carta de André Pinto. Ora sempre que uma freira mandava chamar outra á puridade, havia caso grave no mosteiro, fosse de politica domestica, algum assumpto de portas a dentro, ou de politica externa, alguma noticia importante que tivesse vindo de fóra. Sóror Genoveva correu trigosamente ao chamamento. Estava rezando aos santos predilectos da communidade, S. Bernardo, S. Pedro, S. Paulo e Santa Mafalda, quando a criada de sóror Maria das Cinco Chagas lhe bateu á porta da cella. Ouvido o recado, sóror Genoveva deixou em meio o Padre-nosso que todos os dias rezava a Santa Mafalda, certa de que esta Santa corôada, por ser pessoa de casa, não se offenderia com a interrupção. Chegada, sem demora, á cella de sóror Maria, e sabendo do que se tratava, não se limitou apenas a continuar a leitura da carta; quiz recomeçal-a, glosando-a periodo a periodo com muito piedosas exclamações, taes como esta: —Que rica peça nos mandam para cá! (referia-se a Margarida Candida). É lé com cré! Ha de fazer uma boa parelha com a outra! (a outra era Ernestina de Carvalho). Sóror Maria das Cinco Chagas recommendou o maior segredo a sóror Genoveva do Espirito Santo, e ambas estavam convencidas de que, para não dar maus exemplos á communidade, era de toda a conveniencia que fossem ignorados os factos escandalosos narrados na carta de André Pinto. Fizeram pois o pacto de guardar sobre o caso absoluta reserva. E, sempre com a discreta intenção de manter o sigillo ajustado, sóror Maria das Cinco Chagas contou muito confidencialmente a historia de Margarida Candida á madre escrivã, que era um poço sem fundo para guardar segredos, e sóror Genoveva do Espirito Santo, não menos confidencialmente, revelou o contheúdo da carta a outras madres, que, posto escrevessem menos do que a escrivã, fallavam mais do que ella, por serem muitas. Dentro de duas horas, toda a communidade de Arouca conhecia a biographia amorosa da menina flaviense, que lhe iam mandar, por ordem de el-rei, para que a tivessem bem guardada e bem vigiada no mosteiro. A noticia, com todos os seus pormenores, incluindo o de Joaquim Maria ser irmão do frade apóstata de Cezár, até chegou ao conhecimento de Ernestina de Carvalho, que, pelo labéo de constitucional, não «bebia do fino» em bisbilhotices de convento. Mas outra sóror qualquer achou que seria conveniente avisal-a do que se passava, com o fim altamente moral de a admoestar dizendo: —Veja agora a menina, que tem a cabeça cheia de minhocas constitucionaes, se mostra mais juizo do que a tal Margarida Candida, de Chaves. Não se offendeu Ernestina de Carvalho, ao contrario do que se poderia esperar, com a picaresca phrase: «minhocas constitucionaes». Perdoou-a, contente com a boa nova de lhe annunciarem uma companheira, que pensava politicamente como ella, e que tinha uma historia amorosa muito suggestiva de sentimentalidade romantica. Sóror Maria das Cinco Chagas, quando soube que já corria em todo o mosteiro a noticia da proxima chegada da sua parenta de Chaves, e das secretas razões que a motivavam, agastou-se com sóror Genoveva do Espirito Santo, que costumando aliás ser tambem um poço sem fundo, d’aquella vez alcatruzára indiscretamente um segredo baldeando-o de cella em cella. Mas sóror Genoveva do Espirito Santo repelliu energicamente a accusação de que se dizia victima innocente, accusando por sua parte sóror Maria das Cinco Chagas de lhe ter recommendado silencio, indo, pouco depois, metter tudo no bico á madre escrivã, que, na opinião de sóror Genoveva, era mais falladora do que uma gralha. A phrase que Ernestina de Carvalho poude segredar disfarçadamente ao ouvido de Margarida Candida, logo no dia da chegada, deu alento á pobre menina de Chaves, porque lhe deixou entrevêr a esperança de ter uma confidente sempre que o seu attribulado espirito carecesse de expansão, e muitas vezes seria. Quanto se enganava, porém, Margarida Candida! Fraco auxilio lhe poderia prestar Ernestina de Carvalho, sempre espionada pela communidade. A phrase «Pode contar comigo» revelava apenas um impulso de espontanea sympathia, de instinctiva condolencia, mas difficilmente poderia traduzir-se em factos, e a prova não se fez esperar muito. Como a biographia de Margarida Candida já era conhecida no mosteiro quando a abbadeça recebeu a ordem do prelado, acompanhada de uma copia do respectivo aviso regio, para ser admittida a sobrinha de André Pinto _não só ao noviciado, mas tambem á profissão_, a communidade redobrou de vigilancia com o fim de não deixar aproximarem-se uma da outra as duas meninas constitucionaes. De modo que decorreram muitos dias sem que Ernestina de Carvalho e Margarida Candida podessem trocar entre si outra qualquer phrase, tantos e tão desconfiados eram os muitos olhos e ouvidos que constantemente as espiavam. A sobrinha de André Pinto poude reconhecer que a sua solidão n’aquelle mosteiro teria de ser maior do que no primeiro dia se lhe afigurára. E seria realmente assim, se, passados uns quinze dias, Ernestina de Carvalho, sahindo do côro hombro a hombro com Margarida Candida, sem lhe dizer palavra, lhe não tivesse intromettido rapidamente nos dedos da mão direita um papelinho vincado em muitas dobras. Logo que entrou na sua cella, a sobrinha de André Pinto fechou-se por dentro, e leu sôfregamente o bilhete de Ernestina de Carvalho, que lhe dizia: «Escrevo com o meu proprio sangue e com o bico de um alfinete para lhe repetir o que lhe disse no primeiro dia: Pode contar comigo. Sou a sua unica amiga n’esta casa. Mas por isso mesmo que estamos rodeadas de inimigas, não podemos fallar, como tem visto. Resta-nos apenas o meio de trocarmos os nossos pensamentos por escripto. Mas como nos não dão papel, nem pennas, nem tinta, aconselho-lhe que se não quizer ferir-se para escrever com o seu proprio sangue, como eu agora faço, procure colhêr na cêrca algumas amoras sem ser vista, para escrever com o summo d’ellas, que produz uma tinta soffrivel. Eu pude encontrar este bocadinho de papel em que lhe escrevo; mas a menina vá arrancando algumas folhas ou margens dos livros de orações, que já lhe deram decerto, e aproveite-as para escrever-me. As suas cartas e as minhas devemos escondel-as debaixo da pedra curva no tanque da _Cozinha velha_. Mas é preciso todo o cuidado para não sermos vistas. Mais uma vez lhe repito, minha boa amiga: «No pouco que eu puder, conte sempre comigo.» Este bilhete deu algum lenitivo ao coração amargurado de Margarida Candida. Não lhe promettia, como ella desejava, uma franca convivencia, sem péas e sem obstaculos, com a boa Ernestina de Carvalho, que a Providencia lhe deparára ali, no carcere conventual de Arouca. Mas dava-lhe ao menos a certeza de que sob as abobadas do mosteiro havia um coração, que comprehendia o seu sacrificio, e que o lastimava espontaneamente. Os grandes desgraçados parecem-se com os pequeninos passaros que pousam sobre um fragil ramusculo: qualquer ponto de apoio os aguenta. A vida humana conserva-se ás vezes suspensa sobre um abysmo por um tenue fio de retroz. Margarida Candida respondeu agradecendo reconhecida a commiseração de Ernestina de Carvalho, e acceitando-a. Como era natural que acontecesse, pedia-lhe que descobrisse um meio qualquer de se corresponder com Joaquim Maria. Mas para onde? Para a cadea de Chaves, julgava Margarida, porque nada mais sabia do que se tinha passado depois da sua entrada no mosteiro. Receiava, porém, que Joaquim Maria, na qualidade de preso politico, não recebesse a correspondencia, que lhe era destinada. Lembrou-se então de que o melhor seria dirigir as cartas para a casa do Outeiro, freguezia de Cezár, pelo correio de Oliveira de Azemeis. Pobre menina! as cartas! Se nem papel teria para escrevel-as! Ernestina de Carvalho respondeu por sua vez que era completamente impossivel achar um meio de correspondencia com quem quer que fosse. «Poucos dias depois de eu ter entrado no convento—dizia ella—quando ainda governava a Constituição e as Côrtes funccionavam em Lisboa, facto que cá dentro do mosteiro ninguem queria reconhecer, escrevi a minha mãe um bilhete em que lhe pedia que empenhasse o conde de Rio Maior em tirar-me d’aqui, porque as freiras me offendiam a cada momento, só porque eu pertencia a uma familia liberal e sou a noiva promettida de meu primo Jayme, estudante de Coimbra, liberal tambem. Um dia, estando á janella, vi passar um almocreve e atirei-lhe, da grade abaixo, o bilhete, embrulhado n’um crusado novo. Não sei se esse papel chegou ao seu destino; mas ou minha mãe o não recebeu ou não conseguiu arrancar-me d’este inferno. Esperei que o almocreve tornasse a passar e me trouxesse alguma resposta. Nunca mais, porem, o tornei a vêr! Foi-se arrastando o tempo com um vagar, que chega a causar desespero, até que a menina, entrando aqui, veio ser minha companheira de infortunio. Poucos dias depois da sua entrada vi passar um pastorsito. Fiz-lhe signal para que esperasse. Atirei-lhe da janella outro bilhete para minha mãe e o ultimo dinheiro que possuia, e era pouco. N’esse bilhete alludia eu ao primeiro, prevenindo o caso de não ter sido recebido, instava com minha mãe para que conseguisse a minha sahida, antes mesmo da formatura de meu primo Jayme, e contava-lhe que estava aqui outra victima como eu, mas recentemente chegada, e essa victima, escusado será dizer-lh’o, era a menina. O pastor certamente entregou o bilhete, porque tornou a apparecer d’ahi a dias, olhando muito para a minha janella. Perguntei-lhe por gestos se trazia alguma resposta. Entendeu-me, e mostrou-me um papel. Fiz-lhe signal para que esperasse, emquanto eu ia vêr se conseguia encontrar uma fita, um cordel, qualquer cousa com que podesse guindar o bilhete. Quando voltei á janella, já não vi o pastor. Sabe o que aconteceu? Da portaria tinham visto o que se passára, arrancaram ao pastor a resposta de minha mãe, porque a propria abbadeça m’a mostrou, sem m’a deixar lêr, e eu conheci a lettra. E, berrando como uma possessa, a abbadeça disse-me que nem eu tornaria a receber bilhetes de minha mãe, nem minha mãe receberia de Arouca outras noticias alem d’aquellas que a meu respeito ella abbadeça lhe quizesse mandar. Que desafôro! que descaramento! e que tyrannia! Pois isto tudo passou-se assim mesmo. O que será agora, que a façanha do Infante em Villa Franca subiu á cabeça das freiras! façanha que ellas apregoáram ao mundo, durante trez dias e trez noites, com ensurdecedores repiques de sinos. Minha pobre mãe foi atrozmente enganada quando consentiu que escolhessem para mim este convento, peior que a inquisição. Mas, quem sabe? talvez que todos os outros sejam o mesmo! Pela morte de meu tio, ficamos desamparadas, e meu primo, para frequentar a Universidade, teve de requerer um subsidio; mas eu, emquanto Jayme não se forma, preferiria ser guardadora de cabras a viver aqui recolhida, se soubesse o que isto era.» Margarida Candida viu fugir-lhe a ultima illusão, e com ella a ultima esperança. A sua desgraça era sem remedio. Só lhe restava enviar atravez d’aquellas altas montanhas graniticas o seu pensamento, como uma ave errante, ao encontro de Joaquim Maria, dizer-lhe de longe, sem que elle a podesse ouvir, que o amava com a mesma firmesa e com a mesma dedicação. Um anno se passou, lentamente, na absoluta ignorancia de tudo quanto houvesse succedido fóra do convento. Ernestina de Carvalho, n’um dos bilhetes que deixara no escondrijo combinado, aconselhou Margarida Candida a que se recusasse a professar violentamente. Dizia-lhe que o costume era reunir-se o capitulo, convocado pela abbadeça, para declarar se queria acceitar a noviça como religiosa. Que se o capitulo decidia, por votos, affirmativamente, a noviça tinha de requerer ao prelado que nomeasse um commissario para proceder ao interrogatorio, a que se chamava a _exploração de vontade_. No dia em que o commissario chegava, a noviça era posta em plena liberdade, fóra da porta principal do mosteiro, e ahi interrogada sobre se era a mesma signataria do requerimento, se o fizera sem pressão e violencia ou se havia sido persuadida, indusida ou constrangida a professar o estado de religiosa. Margarida Candida, que ignorava todas estas circumstancias, ficou, desde o momento em que as conhecêra, firmemente resolvida a assignar o requerimento para ter occasião de declarar alto e bom som ao commissario que era constrangida a professar pela coacção de André Pinto. D’este modo, conseguiria o seu fim na presença do commissario, porque o requerimento tinha pouco valor: se ella se recusasse a assignal-o, facilmente poderiam falsificar-lhe a assignatura. Melhor seria pois mostrar-se submissa para ter occasião de que o commissario podesse ouvir as suas categoricas declarações. IX Ultimo desengano Maravilhas do Amor quem as entende? Os segredos do Amor quem os alcança? Uns corações em vivo fogo accende, A outros nega de si toda esperança. Pedro de Andrade Caminha—«Poesias». Ignorava Margarida Candida que o rei havia ordenado que ella professasse, e que o prelado, enviando para Arouca uma copia do aviso regio, implicitamente auctorisava a dispensa das formalidades reguladas pelo concilio Tridentino e pela constituição do bispado. Pois fazia-se isso, quando não se simulava o cumprimento d’aquellas formalidades substituindo a noviça por outra qualquer pessoa do seu sexo. D’esta vez, a unica prescripção respeitada foi a de que entre o primeiro dia de convento e a profissão devia medeiar «um anno perfeito e acabado.» Preenchido um anno completo, Margarida Candida foi chamada ao templo, e ahi recebeu aviso para immediatamente professar. Reagiu energicamente, rompeu em lastimosos clamores, protestando contra a violencia de que era victima, pois que nem tinha requerido, nem a sua vontade havia sido explorada pelo interrogatorio de um commissario. —Olha a doutora! exclamou uma freira. Como seria que a _outra_ teve artes de lhe ensinar tudo isto! Mas como a resistencia de Margarida Candida não afrouxasse, outra freira, simulando-se muito compadecida de sua desgraça, disse-lhe ao ouvido: —Se a menina amava sinceramente aquelle homem, não terá decerto duvida em professar, porque elle morreu. —Morreu! repetiu Margarida Candida num grito estridente, que reboou no templo. E cahiu sem accôrdo contra o peito d’essa e outras freiras, que acudiram a amparal-a. Ao cabo de poucos minutos, Margarida tornou a si, n’um abatimento de corpo e de espirito, que fazia d’ella um authomato. Cortaram-lhe a trança de cabello, que era farta e bella; impozeram-lhe o veu da ordem, que ella recebeu sem reluctancia. E, n’esse momento, o sino do mosteiro dobrou n’uma resonancia funebre, que parecia gemer nas quebradas das serras imitando os arrancos plangentes de uma voz humana. Ernestina de Carvalho, que estava na sua cella, sahiu ao corredor quando ouviu dobrar o sino. Viu o corredor deserto. Esperou que passasse alguem. Algum tempo depois assomou ao longe uma criada, que era ajudanta da sachristã. Quando a criada se aproximou, Ernestina de Carvalho perguntou-lhe cheia d’um tão vivo interesse, que se poderia dizer presentimento: —Quem morreu, sr.ª Carmo? —Não morreu ninguem, respondeu a criada com accentuada ironia; foi a sr.ª D. Margarida Candida que professou hoje. Já pertence ao numero das esposas do Senhor. —Desgraçada menina! exclamou Ernestina fechando a porta da cella com um movimento de odiosa repulsão. E a criada, arrastando os passos ao longo do corredor, foi resmoneando indignada: —Que figados de pedreiro-livre que tem esta rapariga! Nem santa Mafalda lhe vale! Ha de ir direita para o inferno com o marido que lhe destinam, e que é tão bom como ella! Cruzes, canhoto! Até parece que cheira aqui a enxofre! Sóror Maria das Cinco Chagas escreveu para Chaves informando o seu parente André Pinto dos bons serviços que lhe havia prestado justamente no momento em que Margarida Candida oppunha mais escandalosa resistencia á profissão. «Para a desarmar e quebrar-lhe as forças—dizia a freira—tive a feliz idéa de lhe mandar dizer que o tal capitão de dragões havia morrido. Ora foi como se se deitasse agua no fogo! E depois tudo se consummou sem maior escandalo.» Sóror Maria das Cinco Chagas orgulhava-se da sua imaginosa invenção, que cortou o nó gordio, valendo a espada de Alexandre. André Pinto vangloriou-se de vêr realizada, com tão feliz exito, a sua obra de tyrannia, e espalhou em Chaves a noticia da profissão da sobrinha, como se se tratasse de um triumpho obtido por elle proprio. Houve quem escrevesse a Joaquim Maria para Aveiro informando-o, com damnado proposito, da profissão de Margarida Candida. Fôra André Pinto, que ditára a participação a um amanuense, para esse fim convidado e assalariado. Era o golpe de misericordia da sua vingança contra o capitão de dragões. Joaquim Maria recebeu na cadeia de Aveiro, onde estava com outros presos politicos, a terrivel noticia, que desde logo acreditou porque a esperava. Elle conhecia bem André Pinto, e sabia que a sua perseguição iria até ao ultimo extremo da perversidade. Desde esse momento a vida tornou-se-lhe um fardo inutil. Tudo estava acabado para todo o sempre. No dia seguinte, quiz levantar-se do catre e não poude. Faltaram-lhe as forças. Foram dizer-lhe que, para aproveitar os «beneficos effeitos da amnistia», podia justificar o seu procedimento perante a _Commissão de rehabilitação_ que o governo absoluto havia creado em Lamego. —Não quero justificar-me, respondeu Joaquim Maria. A minha consciencia está tranquilla. Frei Simão de Vasconcellos, vendo o irmão profundamente desalentado, e cada dia mais doente, lembrou-se de ir a Arouca averiguar pessoalmente se a noticia da profissão de Margarida Candida era verdadeira. N’uma das suas frequentes visitas á cadeia de Aveiro, resolveu proceder a essa averiguação, sem dizer nada a Joaquim Maria. E, em vez de recolher á casa do Outeiro, seguiu jornada para Arouca, tomando em Macieira de Cambra um ligeiro disfarce. Entre-sorria-lhe a vaga esperança de que a informação fosse falsa, e de poder vir dizer ao irmão: «Resurge de ti mesmo, porque a tua felicidade não está ainda completamente perdida.» Mas, a espaços, tambem elle proprio desanimava, porque as vinganças politicas, especialmente na provincia, attingiam os maiores excessos. Até por experiencia propria o sabia. Em Cezár, a casa do Outeiro estava rodeada pelo odio dos visinhos, e se não fosse o terror que lhes inspirava a valentia de frei Simão, o odio absolutista teria já explodido brutalmente. Um dos mais encarniçados inimigos de ao pé da porta era Ignacio da Fonseca, depois que teve a certeza, pela denuncia dos criados, de que José Maximo viera furtivamente á casa do Outeiro entender-se com frei Simão para algum fim politico, suppunha elle. Logo os criados de Ignacio da Fonseca fizeram correr em toda a freguezia a noticia de que o patrão nunca mais daria a benção ao sobrinho, nem o queria tornar a vêr, noticia que frei Simão se apressou a transmittir para o Porto a José Maximo. E como por essa mesma occasião apparecessem derrubadas algumas arvores na quinta do Outeiro, e incendiadas algumas mêdas de palha, frei Simão tratou de conter em respeito os seus inimigos, que deviam ser principalmente os criados de Ignacio da Fonseca, rondando por horas mortas, de clavina aperrada, as immediações da casa. Uma noite pareceu a frei Simão que dois vultos de homem procuravam encobrir-se com o tronco das arvores. Metteu a clavina á cara, e disparou. Sentiu depois rumorejar a folhagem como agitada pelo rapido movimento de alguem que fugia. No dia seguinte appareceu junto a um castanheiro, em cujo tronco a bala de frei Simão fôra cravar-se, um chapeu de palha, velho, sem fita. Esse chapeu fôra reconhecido como sendo o de Manel Zarôlho, criado de Ignacio da Fonseca. Frei Simão mandou hastear o chapeu no topo do castanheiro, como ousada provocação a novas investidas. Mas os assaltantes não voltaram, receiosos da clavina de frei Simão e dos seus mortiferos zagalotes. Tomaram ainda maior medo ao frade. Chegando a Arouca, frei Simão entrou no pateo do mosteiro, e dirigiu-se á porteira perguntando-lhe se podia fallar á sr.ª D. Margarida Candida, de Chaves, que lhe constava estar ali recolhida. Bem sabia elle que a resposta seria negativa. Mas fizera a pergunta unicamente com o fim de poder colhêr alguma vaga informação. —Sóror Margarida do Amor Divino, respondeu a porteira, não recebe, nem falla a ninguem. —Sóror Margarida!? repetiu com fingida surpreza frei Simão. —Sim, porque professou ha coisa de mez e meio. Frei Simão deitou conta ao tempo decorrido desde que a noticia chegára ao conhecimento de Joaquim Maria, e disse mentalmente: «É isso. Ha mez e meio.» —Então é absolutamente prohibido fallar-lhe? —São ordens superiores, que nos cumpre respeitar. —Está pois em carcere privado?! —Está na observancia dos deveres que lhe foram impostos, respondeu a porteira, com rispidez, fechando rapidamente o ralo da portaria. Mas não o fez tão rapidamente, que não ouvisse ainda dizer ao desconhecido: —Tempo virá em que justemos contas. O desejo do frade seria ir procurar um machado, com que fendesse a golpes herculeos a grossa porta do mosteiro, para arrancar da clausura Margarida Candida. Mas essa loucura, a realisar-se, daria apenas um resultado ephémero, que custaria certamente a liberdade de frei Simão, se lhe não custasse tambem a vida. A ideia de que deixaria exposta a grandes perigos a sua familia de Cezár, especialmente suas irmãs, caso fosse preso, conteve-o. A phrase do desconhecido, ouvida pela porteira, e transmittida á madre abbadeça, causára enorme alvoroto no mosteiro. Aquelle homem, apesar do seu disfarce, era um padre, era decerto frei Simão, o frade apóstata, como os absolutistas lhe chamavam; era um inimigo perigoso por audaz. A abbadeça ordenou logo que Margarida Candida fosse internada na casa-forte do mosteiro, defendida por grossas portas de castanho, chapeadas de ferro, e expediu aviso ás auctoridades da comarca para que sem demora mandassem vigiar e guardar o edificio, ameaçado de um assalto. D’ali em deante uma força de milicias occupava militarmente o pateo do mosteiro, postando sentinellas em torno d’elle. E as freiras, quando se lembravam de frei Simão, estremeciam de horror, soffriam hysterismos de medo, como se estivessem ameaçadas da visita de Satanaz em pessoa. X Morte redemptora Muito ordinario é mandar nos Deus trabalhos, para serem meio de o buscarmos: e tambem instrumento de nos fazer mercê. Frei Luiz de Souza—«Historia de S. Domingos», liv. III, cap. XIV. O valle de Arouca, fertilisado pela agua de dois ribeiros, o Marialva e o Silvares, que ahi se fundem no rio vulgarmente conhecido pelo nome de Arda, é fechado por cerros alterosos, de uma melancolia agreste, ao sul a Freita, de éste a noroéste a Mó e o Gamarão. A villa ainda hoje conserva o tom geral de uma povoação serrana, em que choças primitivas, feitas de colmo e barro, se agrupavam ao capricho de bêcos tortuosos e immundos, onde, por entre um lastro de matto sêco, os cerdos fossavam, as gallinhas esgaravatavam no chão. O mosteiro, talhado em grande, contrasta com a rusticidade ingenua da povoação, que lhe fica proxima. É, na phrase de um estimavel cultor das lettras, uma como rútila joia engastada n’um áro de rocha viva, o granito das montanhas que circumscrevem o valle, e de basto arvoredo, em que a oliveira frondosa predomina. Apenas as _nuances_ da vegetação, desde a clara esmeralda do linho até ao verde cinzento do olivedo, suavisam, no valle, a impressão produzida pelo aspecto oppressivo das montanhas severas. No topo da Mó alveja a capellinha da Senhora d’essa invocação, d’onde a vista abrange um horisonte amplissimo, recortado pelo contorno das serras distantes, que se esfumam ao longe n’um traço sinuoso de carvão azulado. Passa, á distancia de duas a trez leguas apenas, caracterisando aquella região alpestre, o rio Paiva, confrangido entre negras penedias, espumando quando salta de fraga em fraga, represando charcos sombrios quando descansa um momento, e resoando, como um clamor subterraneo, surdo e rouco, na angustia do seu attribulado percurso até ao Douro. Um trecho do Paiva, em Alvarenga, chega a ser medonho no perfil alcantilado, pardo e nú, das vertentes escabrosas, que se eriçam em blocos amontoados e revôltos, calcinados e bravios. O Paiva recebe, em Paradinha, o curso do seu affluente Paivó, tambem ullulante e tôrvo, de margens desgrenhadas e duras. Parece que, em toda essa região, a impressão da agua completa a da terra, e que um negro Cocyto foi intencionalmente conduzido por entre montanhas tartáricas, como uma integração adequada de um scenario sinistro. Frei Simão, quando sahiu do páteo do mosteiro, e encarou o agro cariz d’aquellas asperas serras escalvadas, sentiu-se subitamente apprehensivo, abalado no seu animo forte e corajoso. Uma vaga sensação de mal-estar, que pela primeira vez o assaltava, obrigou-o a sentar-se n’uma pedra e a deixar-se ficar meditando pensamentos fugidios e confusos, que molestamente se succediam e baralhavam. Sobre as montanhas pairavam densas nuvens, laminadas de um azul-ferrete metallico, quentes de electricidade latente, o que aliás é vulgar n’aquella região. A atmosphera estava abafadiça, espêssa. De quando em quando cahiam grossos pingos d’agua, que a terra parecia sorver sôfregamente. Assim esteve durante quasi meia hora, alheado n’um tumulto de idéas sombriamente incoerciveis, que ao mesmo passo o prendiam e sobresaltavam. Por fim, querendo esclarecer a si proprio a surpresa d’aquella extranha preoccupação, attribuiu-a a um sentimento de justa repulsão por todo esse drama de tyrannia que se urdia na treva, no interior de um convento, em torno da sobrinha de André Pinto, o prepotente silveirista de Chaves. Frei Simão, fanatico pela liberdade, idealisando eldorados de paz e de felicidade social sob a reconquista da democracia parlamentar, quanto elle se illudia! odiava aquelle carcere monastico onde uma fraca alma de mulher gemia oppressa e captiva, sem esperança de, como elle, poder emancipar-se da tutella da communidade e da escravidão do claustro. Assim explicou frei Simão a si proprio esse desuzado torpor que por momentos lhe entibiou o espirito, rijo como o ferro em lances de maior tortura. Relacionou mentalmente com o supplicio de Margarida Candida a desgraça de Joaquim Maria, degradado das suas dragonas de capitão, preso e enfermo, cahido n’um desalento que dia a dia se tornava maior e mais profundo. E achando que a causa da sua indefinida preoccupação não podia ser outra, esforçou-se por combatel-a, readquirindo a habitual energia d’animo. Um espirito menos forte haver-se-ia deixado enleiar pela apprehensão de que ha estados de alma, subitos e insistentes, que se devem attribuir a uma dupla vista, a uma lucida e inexplicavel previsão do futuro, que vulgarmente se traduz pela palavra presentimento. Elle não. Elle não era homem que como José Maximo se deixasse avassalar por superstições e preconceitos. Envergonhado d’esse momento de cobardia, que o retivera ali, levantou-se, relanceou sobre o mosteiro um olhar de odio, que era uma nova ameaça mais eloquente talvez do que as palavras que a madre porteira lhe ouvira, e serenamente, a passos firmes, foi ao encontro do criado, que o esperava segurando a égua. Frei Simão cavalgou com agilidade, e partiu sem tornar a pensar n’aquella meia hora de extranha indecisão doentia. Chegando a Aveiro, encontrou o irmão no mesmo estado de torpor, que dia a dia o ia definhando. Joaquim Maria passava a maior parte do tempo no catre, d’onde apenas sahia por instancias de frei Simão. Mas assim que o frade se ausentava, Joaquim Maria voltava para o catre. O cirurgião da cadeia prescrevia-lhe uma therapeutica reanimadora. Vinham os remedios, e o doente emborcava-os da janella a baixo. Mal tocava nos alimentos. Tinha um fastio mortal. Durante o dia cahia por vezes n’um langor em que sonhava meio-accordado. Não dormia, e comtudo perdia o conhecimento de si proprio. Mas velava as noites n’uma insomnia tranquilla, muito lucido, pensando em Margarida, e crendo que lhe seria permittido encontral-a no ceu,—n’um mundo sydereo onde a Providencia devia compensar os tristes e affligidos. Á volta de Arouca, frei Simão procurou, com a facilidade dos animos fortes, incutir alento ao irmão, insinuando a esperança de que a má noticia vinda de Chaves teria tido apenas em vista aggravar a sua tortura. Um espirito menos corajoso que o de frei Simão haver-se-ia traído pelas lagrimas, pela sentimentalidade expansiva que involuntariamente vae até revelar uma verdade, que se desejava encobrir. Mas nunca a esperança pareceu aquecer tão sinceramente o coração do frade como n’aquella hora em que elle era o primeiro desilludido. A cada mentira piedosa com que procurava galvanisar o doente, correspondia, sem que o semblante o denunciasse, o pungir de uma dor intima, e profunda. Um mez depois, Joaquim Maria era um homem irremediavelmente perdido. O cirurgião disse-o a frei Simão de Vasconcellos, que sobejamente o sabia. O proprio doente tinha a consciencia do seu estado, porque abruptamente pediu ao irmão que o ouvisse de confissão pela ultima vez. Frei Simão não se mostrou abalado. Escutou impassivel. Joaquim Maria recordou serenamente todos os actos da sua vida, que revelavam a limpidez de uma alma honesta. Referindo-se á perseguição politica de que era victima, disse ao irmão: —Tudo perdôo ao homem, que me reduziu a esta desgraça. Morro sem odios, e certo de que Deus terá compaixão da minha alma. Sorri-me até a ideia de, perseguido pelos homens, ir descançar na paz eterna da morte. Ao confessor não tenho mais que dizer, mas resta-me fazer ainda um pedido ao irmão e ao amigo. —O que é? perguntou frei Simão, levantando-se com subita energia, como se adivinhasse o que Joaquim Maria lhe queria dizer. —Não penses em vingar a minha morte, Simão, porque sou eu o primeiro a perdoal-a. Mas peço-te que procures arrancar a um infame supplicio a alma torturada de Margarida. Se algum dia a liberdade tornar a raiar n’este desgraçado reino, peço-te que te lembres de Margarida na hora do triumpho. Se a morte a não tiver libertado, liberta-a tu, corre ao mosteiro de Arouca, faze abrir de par em par as portas do carcere, e dize a Margarida: «Meu irmão morreu amargurado pela ideia de ter sacrificado o mais leal dos corações; cumpro a sua vontade vindo quebrar os grilhões que tão barbaramente escravisaram a martyr.» Para mim, Simão, não resta a menor duvida de que André Pinto obrigou Margarida a professar. Conheço de sobra a obcecação feroz dos absolutistas de Chaves, d’elle principalmente. E tenho a plena certeza de que Margarida não recuaria perante o sacrificio de toda a sua vida na hora em que a abandonasse a ultima esperança do seu dedicado amor. A noticia deve pois ser verdadeira. Frei Simão tinha ouvido o irmão com essa attenção placida, mas absorvente, que é apanagio dos fortes. O seu olhar era vivamente incisivo, mas as linhas da physionomia não passavam pela menor crispação nervosa. —Juro-te, disse elle com decisão, que se morreres primeiro do que eu, o que só a Deus pertence saber, hei de cumprir religiosamente o teu legado. A minha primeira homenagem á liberdade, se ella de novo felicitar este paiz, será a redempção da mulher que tão nobremente amaste. E agora, alma justa e boa, te absolvo, em nome de Deus, de tuas faltas veniaes. Eu, misero peccador, sinceramente rogo ao Todo Poderoso que me ensine a imitar o teu exemplo. E crusando sobre a fronte pallida de Joaquim Maria a benção absolutoria, proferiu em voz baixa as palavras do ritual. Depois despediu-se, e sahiu. Sentia-se oppresso, precisava respirar o ar puro que vinha da barra em brandas lufadas, as quaes passavam sobre a ria sem a fazer ondular. Junto ao caes, um hiate de cabotagem parecia dormir immovel sobre a agua espelhante. E um barco de pesca deslisava suavemente, aproado ao oceano, esbatendo-se na claridade olympica da atmosphera maritima. A quietação da paizagem e a luz gloriosa do ar contrastavam singularmente com a dolorosa concentração, que opprimia o coração de frei Simão de Vasconcellos n’uma treva de noite funda. Chegado a Cezár, disse á irmã mais velha: —Vou amanhã solicitar as devidas licenças para que seja permittido a um moribundo vir expirar nos braços da sua familia e em sua casa. A irmã ouviu-o em lagrimas. O cirurgião dos presos, ouvido sobre o requerimento de frei Simão, informou que Joaquim Maria estava irremediavelmente perdido, e poucos dias teria de vida. Mas esta informação não conseguiu abalar o animo duro da justiça até o ponto de conceder que o capitão fosse transportado para sua propria casa. O mais que se concedeu foi que a familia de Cezár escolhesse habitação dentro da cidade de Aveiro ou perto d’ella, onde Joaquim Maria podesse ser recebido, sob fiança de uma familia conhecida. Frei Simão obteve a annuencia da familia Rangel de Quadros, do Carmo, que se prestou a receber o preso, e a responsabilisar-se por elle. Joaquim Maria sahiu da cadeia para a casa do Carmo nos primeiros dias de outubro d’esse anno de 1823. Frei Simão e D. Maria Albina, a irmã mais velha, acompanharam-n’o. O doente quiz que lhe fossem ministrados os ultimos sacramentos, e serenamente os recebeu. O frade velava-lhe o leito, como enfermeiro dedicado. Ficou só, ao lado do irmão; fizera recolher a Cezár D. Maria Albina, e prohibira ás outras pessoas da familia que fossem alancear com a sua presença os ultimos momentos de um moribundo. No dia 12 de outubro, que completava seis semanas de enfermidade, Joaquim Maria sentiu avisinhar-se a morte. Apertou nas suas as mãos do frade e cravou n’elle um olhar insistente, que a agonia embaciava. Frei Simão comprehendeu esse olhar, e disse ao moribundo: —Não me esqueço do que prometti. Vae tranquillo. E não podia ser mais tranquilla a morte de Joaquim Maria. Foi o frade quem amortalhou o irmão e quem acompanhou o esquife á egreja do convento de Santo Antonio. Quando frei Simão voltou á casa de Cezár, disse ás irmãs: —Rezai por elle. Deus ha de premial-o, e a liberdade o vingará. XI Borrasca de ciume É ciume um fogo que ateado em qualquer leve occasião, levanta ardente chamma e tão espêsso fumo, que abrasa, e céga, a quem está perto d’elle. E não só arde o sêco, mas no verde é mais perigoso. Rodrigues Lobo—«O desenganado». José Maximo foi desde o inverno de 1820 até junho de 1823 empregado como amanuense supranumerario na secretaria municipal do Porto. Ignacio da Fonseca repellira-o, logo que soube que elle fraternisara com frei Simão nas alegrias do triumpho constitucional de 1820, e mandára dizer para o Fundão, ao irmão e á cunhada, que o sobrinho, em vez de estudar em Coimbra, perdia o tempo em machinações politicas, que o desviavam do cumprimento dos seus deveres. Causou horror ao pae de José Maximo a noticia de que o filho estava filiado na seita dos pedreiros-livres. Conchavado com o irmão, tratou de averiguar miudamente qual tinha sido a vida de José Maximo nos ultimos tempos. Ignacio da Fonseca foi de proposito a Coimbra para colhêr informações, e veio a saber que o sobrinho abandonára as aulas do Collegio das Artes, ausentando-se sem dizer para onde. Bastaram estas denuncias, aliás incompletas, para que Ignacio da Fonseca recolhesse indignado a Cezár, e participasse ao irmão que estava resolvido a renegar um sobrinho indigno da sua estima. O pai de José Maximo afinou pela colera do irmão. A mãe chorou amargas lagrimas pela sorte do filho, cujo destino ignorava, mas não poude abrandar a indignação do marido e do cunhado. Os criados de Ignacio da Fonseca espalharam em Cezár, para que chegasse ao conhecimento de frei Simão, que «tanto o tio como o pai do sr. José Maximo não queriam tornar a saber d’elle.» Frei Simão mandou esta ruim nova a José Maximo, para o Porto, e dizia-lhe por essa occasião: «Parece que estou condemnado a não poder escrever a Vossa Mercê sem ter que lhe dar noticias desagradaveis. Não bastou communicar-lhe que os criados de seu tio o reconheceram quando Vossa Mercê veio a Cezár. Agora os mesmos criados espalham por aqui que seu pai conhece tão bem como seu tio o facto de Vossa Mercê haver abandonado Coimbra. Apenas me parece que a sua familia ignora o que Vossa Mercê tem passado depois que se retirou das aulas: se o soubessem, não teriam deixado de o dizer e commentar. «Eu passo aos olhos do sr. Ignacio da Fonseca por ser o desencaminhador, o genio mau de Vossa Mercê, e o fallatorio que por aqui vai tem visivelmente por fim apontar-me á indignação das gentes como pervertor politico de moços incautos. Mas eu, que no caso sujeito estou bem com a minha consciencia—Deus o sabe e Vossa Mercê tambem—não me incommódo com as injustiças que contra mim partem de visinhos rancorosos.» Esta carta de frei Simão entristeceu José Maximo: elle conhecia o animo rispido do pai, e calculava, por isso, quanto a mãe teria soffrido desde que no Fundão se soube que abandonára as aulas de Coimbra. Sentiu remorsos de ter dado esse desgosto á santa creatura que o adorava, e que elle já nem sequer via ha tanto tempo, por isso que, como sabemos, costumava ir passar as ferias a Cezár. Não lhe pesava a ideia de não poder esperar da familia quaesquer recursos pecuniarios. Incommodava-o pouco, isso. Estava habituado a soffrêr incommodos desde que tomára o disfarce de serviçal em casa do general Canavarro. Depois da victoria constitucional do Porto, arrumaram-n’o na secretaria do senado com um crusado novo por dia. Trez moedas chegavam-lhe bem para viver. Mas aquella situação era por de mais obscura para satisfazer o seu animo; equivalia a um bêco sem sahida. Repugnava-lhe ter que passar a vida na passividade ingloria de humilde copista, elle, que tudo tinha arriscado para fazer vingar a conspiração liberal do Porto. Em muitas horas melancolicas reconhecia que frei Simão acertadamente lhe havia dito que só pelas armas ou pelas lettras se podia conquistar renome e posição. E no fundo do seu coração sentia pena de ter abandonado as aulas de Coimbra, fechando sobre si a porta de um futuro brilhante. Principiou a reflectir sobre a illusão dos triumphos politicos, em que os primeiros são os ultimos, e os ultimos os primeiros. Orgulhosamente recordava que fôra elle que em Lisboa livrára Fernandes Thomaz das garras da policia, e que se Fernandes Thomaz houvesse sido preso, a revolução do Porto teria abortado. Pois, não obstante, atiraram-lhe com um magro osso, como a um rafeiro, e nunca mais se tornaram a lembrar d’elle. Fazia-lhe falta um diploma litterario. Se o possuisse, poder-se-ia nivelar com os corypheus do constitucionalismo, haveria sido eleito deputado ás constituintes, teria conquistado no parlamento um logar distincto. Mas já ninguem parecia lembrar-se da abnegação, com que, no disfarce de _Fresca Ribeira_, se havia sentado ao tinélo do general Canavarro, comendo entre os outros criados. O amor de D. Anna de Vasconcellos era a unica amarra que o prendia a uma vida descontente, e a uma esperança duvidosa. Ella ficára no Porto, em companhia de Frederico Pinto, e ficára, certissimamente, por causa d’elle. A principio, José Maximo ia aos domingos passar a noite a casa de Frederico Pinto, e velozes lhe corriam ahi doces horas, que lhe davam alento para ir esperando um futuro incerto. Mas um dia soubéra por D. Anna de Vasconcellos que o irmão lhe tinha dito: —Não admitte duvida que José Maximo te ama, e que tu o amas tambem. Mas devo fazer-te vêr que elle tem um caracter exaltado, um animo fogoso, ao qual uma esperança tranquilla não bastará a dar felicidade. É pois possivel que pense, n’alguma hora de impaciencia, em antecipar um casamento, que as condições da sua posição social não podem auctorisar por emquanto. Se elle te propozer um rapto, recusa-o, porque tens obrigação, como mulher digna que és, de não vexar a nossa familia e envergonhar a minha casa. Anna de Vasconcellos teve a imprudencia de contar isto a José Maximo, que se indignou com a certeza de que Frederico Pinto suspeitava da sua lealdade de cavalheiro. —Teu irmão não me conhece ainda! exclamou elle exaltadissimo. E nunca mais voltou a passar os serões do domingo em casa de Frederico Pinto. Não contente com isto, aconselhou Anna de Vasconcellos a que voltasse para a casa do Outeiro. —Prefiro a tua ausencia, disse-lhe elle, a ter que supportar a idea de que por tua causa me não fazem inteira justiça. A pobre Anninhas, muito arrependida da inconfidencia, procurava desculpar o irmão, e resistia, com lagrimas nos olhos, ao alvitre de voltar para a casa do Outeiro ficando José Maximo no Porto. Á força de rogos carinhosos conseguiu ella que José Maximo não insistisse pelo regresso a Cezár, mas não poude obter d’elle que voltasse aos serões do Campo de Santo Ovidio. José Maximo tornára-se sombrio, concentrado. A esperança abandonava-o. Escrevia a D. Anna de Vasconcellos longas cartas, cheias de desalento, que todas as noites ella içava por um cordão de retroz da rua para a janella. Elle considerava-se uma alma incomprehendida pelo commum das pessoas, habituadas a medir o espirito humano pela bitola da vulgaridade egoista. Mostrava-se desacoraçoado do futuro, que previa «fertil e estrondoso em desgraças.» Este era o diapasão constante da sua correspondencia amorosa. «Sinto remorsos, escrevia elle uma vez, de ter feito a infelicidade de duas mulheres que eu adoro: minha mãe, e tu. O meu amor tem o triste condão da lepra: é contagioso na desgraça. Perdoa-me, bella alma, pura como as estrellas e delicada como as flores, perdoa-me o ter-te infelicitado só porque o meu coração te escolheu para amar-te entre todas as mulheres.» Anninhas lia estas desalentadas cartas, e chorava. Ella mesma, habituada á linguagem sombria de José Maximo, começava a tremer pelo futuro, receiava-o. Assim decorreram dois annos n’uma tortura de amor, cujas angustias a imaginação ardente de José Maximo parecia comprazer-se dolorosamente em augmentar. Quando á contra-revolução transmontana de 1823 succedeu a desgraça de Joaquim Maria, mais se exaltou ainda em negras visões e apprehensões sinistras a phantasia lugubre de José Maximo. «Vai-se cerrando em torno de nós, escreveu elle a D. Anna de Vasconcellos, uma atmosphera caliginosa, que parece aviso da nossa perdição futura. A desgraça pelo amor entrou já na tua familia. Fui eu que a trouxe com a minha má sina? Não sei. Mas firmemente creio que não deixarei de exceder o cruel destino de teu irmão Joaquim, e que tu não terás que soffrer menos que Margarida Candida.» No fim de maio d’aquelle anno o infante D. Miguel restabeleceu facilmente, com a jornada de Villa Franca, o poder absoluto, de que o rei D. João VI, bem aconselhado, conseguiu apossar-se. Os deputados liberaes, os famosos implantadores do constitucionalismo de 1820, fugiram, emigraram. José Maximo estava tão desanimado, que indifferentemente recebeu, no primeiro momento, a noticia da restauração. —Tanto valem uns como os outros. Não merece a pena escolhêr entre liberaes e realistas, disse elle no segredo da sua alma. Esperou durante alguns dias que o despedissem da secretaria municipal do Porto. Mas ninguem pensou n’isso. Os vencedores não o enxergavam na obscuridade do logar que desempenhava. José Maximo encarou principalmente a questão por este lado, e a sua tristesa augmentou. Todavia repugnou-lhe viver accommodaticiamente á sombra de um regimen de que era adversario intransigente, e foi elle proprio que abandonou o seu logar na secretaria da camara. Conservava alguns recursos amealhados na estricta economia em que tinha vivido desde que, contrariado por todos os acontecimentos que o leitor conhece, fugia a distracções e passatempos. Estava indeciso sobre o caminho que devia seguir, quando, por occasião da romaria do Senhor de Mattosinhos, D. Anna de Vasconcellos o avisara de que toda a familia de Frederico Pinto ia ali cumprir uma promessa que tinham feito durante a recente doença do pequeno Frederico, e que ella não podia deixar de os acompanhar. Se bem que contrariado, José Maximo foi tambem a Mattosinhos. Uma romaria era para elle uma bacchanal do catholicismo; aborrecia-lhe. Mas o amor conseguiu vencer a sua repugnancia ás romarias. Anninhas logo o enxergou mésclado entre a multidão que borborinhava no ádro da egreja. E comprehendeu o sacrificio que elle devia estar fazendo no meio de romeiros, que traziam no chapeu o registo do Senhor de Mattosinhos adornado com laços escarlates,—a côr symbolica da restauração. Depois de cumprida a promessa, quando a familia de Frederico Pinto sahia do templo, foi demorada no ádro pelo encontro com um capitão de infanteria 18, em cuja companhia andava um rapaz flammantemente entrajado ao garrido. Frederico Pinto parecia tratar com muitas attenções o pintalegrete, que o capitão lhe apresentára, e que elle por sua vez apresentára á mulher e á irmã. José Maximo viu isto, e doeu-se. «De mim duvidam, pensou elle; áquelle, estimam-n’o. Notou que, no momento em que a familia de Frederico Pinto se dirigia para o sitio onde a estava esperando o carroção, Anninhas era contrariada pela insistencia com que o taful estoiradinho lhe dirigia a palavra. Justamente n’essa occasião um andador de capa de seda branca aproximou-se de José Maximo pedindo-lhe «esmola para Nosso Senhor de Mattosinhos.» Mettendo a mão á algibeira, e deixando cahir um vintem na bandeja, José Maximo perguntou abruptamente ao andador, indicando-lhe o galan do arraial: —Conhece aquelle rapaz? O andador respondeu immediatamente: —Se conheço?! É o filho do sr. Rodado, das Casas Novas. —Rico? —O sr. Rodado, que é este anno o juiz da nossa confraria, veio de Manáus pôdre de rico, e mandou fazer as maiores casas que ha em Mattosinhos. —Huum! rugiu José Maximo n’uma colera surda. E o que faz elle, o filho? O andador estava morrendo por taramelar. —O sr. Manelsinho é estudante de Coimbra. —É estudante de Coimbra e está agora aqui?! —Veio de proposito á festa por o pae ser juiz, e vai-se embora amanhã. O sr. nunca ouviu dizer que quem tem dinheiro faz tudo o que quer?! Esta resposta despertaria decerto alguma replica agreste, se a attenção de José Maximo não fosse subitamente attraída por um incidente inesperado, que augmentou a sua colera. A familia de Frederico Pinto entrára no carroção, e conjuntamente com ella o capitão de infanteria 18 e o estudante de Coimbra. Subitamente, o coração de José Maximo pareceu querer saltar-lhe do peito n’uma furia leonina. Era o ciume que despertava;—o ciume, sentimento que José Maximo desconhecêra até então. Ao mesmo tempo resurgiam no desalentado amanuense da secretaria municipal todos os seus fogosos instinctos de revolucionario, como se accordassem de um longo somno violentamente sacudidos por um braço de ferro. Reapparecia n’elle o homem forte, prompto para a lucta, destemido até á audacia. O carroção partira ao passo lento dos bois corpulentos e tardos, que o lavrador ia picando com o aguilhão como para regular-lhes a andadura no momento de arrancar. O rosto de D. Anna de Vasconcellos denunciava-se constrangido, ao espreitar para o arraial, onde José Maximo ficára acompanhando com um olhar desvairado o rodar vagaroso do vehiculo. Pensando n’esse inesperado adventicio, cuja apparição lhe fizera despertar uma subita tempestade na alma, José Maximo monologava apprehensivo: —Se elle veio de Coimbra de proposito para assistir á romaria, e se deixa a romaria para ir para o Porto, é porque está namorado. E porque elle é rico, e porque segue a carreira das lettras, porque, n’uma palavra, representa «um bom partido», todo o mundo, a familia de Frederico Pinto principalmente, ha de aconselhar Anninhas a que me esqueça para poder ser esposa feliz nas Casas Novas do brazileiro de Mattosinhos, como co-herdeira dos seus mil crusados e dos seus palacetes. E, meneiando a cabeça, sorria de desdem, de amargura, de raiva. Era o ciume... XII Separação inesperada Cuida que por fugir a um mal mais forte Se offereceu esta alma a ti captiva, A soffrer este mal da tua ausencia Que me consume o siso, e a paciencia. Francisco d’Andrade—«O primeiro cèco de Diu». Ardia José Maximo em impaciencia de chegar ao Porto e saber de D. Anna de Vasconcellos o que se tinha passado durante o caminho. Á meia noite, hora aprazada para a troca da correspondencia amorosa, José Maximo levava na algibeira, quando chegou ao Campo de Santo Ovidio, um bilhetinho em que, por excepção, pedia a Anninhas que o lesse e voltasse logo á janella, pois que, acontecesse o que acontecesse, precisava fallar-lhe. Anninhas adivinhara-lhe o pensamento ou antes tambem ella se não contentaria com narrar-lhe por escripto as suas impressões d’aquelle dia; quereria contar-lh’as de viva voz. Por isso, certificando-se de que toda a familia da casa dormia, resolveu demorar-se á janella, desobedecendo, por uma só vez apenas, á imposição de José Maximo, que, desde que não voltára a casa de Frederico Pinto, se limitava a trocar rapidamente uma carta por outra. Anna de Vasconcellos acabava de dizer a José Maximo que ao menos n’essa noite se demorasse um pouco mais, o que elle aliás vivamente desejava, quando, na claridade, um vulto de homem surgiu d’entre as arvores do Campo de Santo Ovidio, e parou em frente da janella. José Maximo, de costas voltadas para o Campo, não o viu. Deu tento, porém, de que D. Anna fizera um movimento brusco, aprumando o busto e retraindo-se, ao mesmo tempo que dizia: —É elle! José Maximo suppoz a principio que D. Anna tivesse sido surprehendida pelo irmão, mas não vendo apparecer ninguem á janella, e não sentindo rumor no interior da sala, cuja vidraça se conservava aberta, voltou-se, procurando explicar a si mesmo a razão de tão extranha occorrencia. Viu então parado em frente da janella o vulto de um homem. Atravessou em poucos passos a rua, e caminhou direito ao vulto. Reconheceu-o. Era o estudante de Coimbra, o pintalegrete do arraial de Mattosinhos, que, não contando certamente com tão audaz arremettida, recuou dois passos. José Maximo perfilou-se com elle, mediu-o sobranceiramente de alto a baixo, e disse com desabrida provocação: —Ah! é o mesmo palito das sécias, que eu vi hoje no arraial de Mattosinhos! Manuel Rodado não lhe respondeu; mas procurava affirmar-se nas feições do homem que o insultava. José Maximo tinha-o visto de dia; foi-lhe, portanto, facil reconhecel-o. Manuel Rodado, que o via pela primeira vez, apenas podia valer-se do auxilio do luar, para fixar-lhe a physionomia. Se não fosse a lua, não o teria conseguido, porque as ruas do Porto eram n’aquelle tempo tenebrosas por falta de illuminação publica. Atravez de um «titulo» das _Ordenações_ enxergamos ainda hoje a escuridão das antigas noites portuguezas, porquanto esse «titulo» dispõe: «E os que forem achados depois do sino (de recolher) sem armas, e com candea accêsa, ou lanterna, ou outro lume, indo pela rua para algum certo logar... não serão presos, nem pagarão pena alguma.» Ora só tempo depois de ter occorrido este encontro no Campo de Santo Ovidio ordenou o governo, por decreto de 5 de outubro de 1824, que a cidade do Porto e Villa Nova de Gaya fossem illuminadas por candieiros de azeite todas as noites em que não houvesse luar, consignando-se a esta despeza o rendimento da «ponte de barcas» e a imposição de dois réis em cada arratel de carne de boi e de porco. —O que faz aqui? perguntou José Maximo com maior desabrimento. —Ora essa! replicou o estudante. A rua é do rei. —Do rei! repetiu José Maximo ironicamente. E arremessando-se sobre o filho do brazileiro empolgou-o em ambos os braços, sopezando-o com musculos de aço. Manuel Rodado procurava defender-se dos pulsos rijos de José Maximo, sem o conseguir. Os seus olhos, brilhantes como os de uma féra na escuridão, insistiam em reconhecer a physionomia do aggressor. José Maximo, augmentando a pressão dos braços, revessou agilmente a perna direita e, firmando-se solidamente, baldeou no chão o estudante, que ficou estatelado sobre a relva do Campo. Depois crusou os braços e, serenamente, disse: —Se gritas, mato-te. —Não grito, respondeu o estudante meio solevantado sobre o cotovêlo esquerdo. Não grito, mas havemos de tornar a encontrar-nos. —Quando quizeres, poltrão! Em Coimbra, por exemplo. José Maximo viu impassivelmente levantar-se o estudante, apanhar o chapeu que lhe tinha cahido da cabeça, e affastar-se coxeando. Dados alguns passos, Manuel Rodado voltou-se para traz, e disse: —Até á vista. José Maximo respondeu: —Até sempre. Pouco depois pareceu a José Maximo que D. Anna de Vasconcellos tinha voltado á janella. Aproximou-se; reconheceu-a. A pobre menina perguntou, com voz tremula de commoção, o que tinha acontecido. Estava agitadissima, n’um grande sobresalto. Receiava alguma desgraça. José Maximo tranquillisou-a dizendo: —Não houve nada, socega. Os pintalegretes são sempre cobardes; tão atrevidos com as mulheres como pusillanimes com os homens. Foi ao chão, mas levantou-se. E houve por bem retirar-se prudentemente. Contou então Anninhas que, durante toda a jornada de Mattosinhos ao Porto, o filho do brazileiro a perseguira com insistentes galanteios, e que, desde que chegaram, tinha apparecido dezenas de vezes no Campo de Santo Ovidio, o que ella sabia por lhe ter dito uma criada: «Ó menina! anda ali um rapaz p’ra cima e p’ra baixo a olhar para as nossas janellas.» —Foi talvez tua cunhada ou teu irmão que te mandaram dizer isso, observou José Maximo. —Elles? Não! respondeu Anninhas. Fallaram da nossa ida a Mattosinhos, e nem sequer alludiram ao filho do brazileiro! —É um plano, manifestamente. Trata-se de casamento rico, e é natural que elles t’o aconselhem. —Olha que me offendes... disse maviosamente D. Anna de Vasconcellos. —Não fallo de ti; fallo d’elles. Eu sou um escripturario, um simples amanuense; o pintalegrete, alem de rico, é estudante de Coimbra. Mas tambem eu o hei de tornar a ser. —Tu?! —Sim. Tomei hoje em Mattosinhos esta resolução. Medi toda a extensão da minha desgraça, e quero resistir-lhe. Lembraram-me as palavras de frei Simão, que no Outeiro me aconselhou um dia a voltar para Coimbra. E voltarei. —Queres então separar-te de mim? —Tontinha! Se é por tua causa que eu ambiciono um futuro brilhante! É preciso não perder tempo. Muito tenho eu já perdido. D’aqui a cinco annos poderás ser minha mulher. Terei então conquistado o direito a pedir a tua mão, de cabeça levantada. —Mas eu hei de ficar aqui? —Onde quer que fiques, estarás sempre presente á minha alma e ao meu amor. —No Outeiro estarei muito mais perto de Coimbra. —Então sempre tu receias que teu irmão e tua cunhada procurem desviar-te do meu destino! —Não receio. Nem elles o tentaram por ora, nem o conseguiriam. Mas, peço-t’o eu, quando fores para Coimbra, passa por Cezár, e dize a frei Simão que eu desejava voltar para o Outeiro visto que tu sahes do Porto. —Pois seja. E por que lhe não escreves tu? —Porque costumo entregar a meu irmão Frederico as cartas que escrevo para o Outeiro, e não quero que elle supponha que vivo aqui contrariada ou desgostosa. Tinha ficado no Porto por tua causa. Estava bem emquanto tu aqui estavas. Mas se vais para Coimbra, ficarei melhor estando mais perto de ti. —Pois amanhã mesmo cumprirei a tua vontade. —Amanhã? Já?! —Não devo demorar a minha resolução. Tenho pressa de me igualar aos que se nobilitam seguindo a carreira das lettras. Não valho menos do que elles, e não quero que no futuro elles pareçam valer mais do que eu. Anna de Vasconcellos conhecia a firmesa de animo de José Maximo; não lhe fez a menor objecção. E com o coração dilacerado de saudade e os olhos afogados em lagrimas se despediu d’elle, descendo de mansinho a vidraça, com os braços tremulos de commoção. José Maximo foi, como prometteu, pela casa do Outeiro, caminho de Coimbra. Abriu-se expansivamente com frei Simão contando-lhe minuciosamente tudo o que se tinha passado no Porto. Revelou-lhe os seus desgostos e desalentos politicos. O frade comprehendeu-o, porque tambem estava desalentado desde que vira afundar-se em Villa Franca a liberdade nascente. Joaquim Maria tinha naufragado com a liberdade; achava-se a esse tempo preso em Aveiro, ainda vivo mas implacavelmente perseguido. Esta serie de dolorosos acontecimentos acabrunhára o animo varonil de frei Simão. A identidade de circumstancias aproximára mais uma vez, intimamente, aquelles dois homens. Depois das confidencias politicas, vieram as confidencias amorosas. José Maximo fallou a repeito de D. Anna com a sinceridade de quem não estivesse na presença de um irmão d’ella. Amava-a mais do que nunca, mas tudo lhe fazia lembrar que não se encontrava em situação de desposal-a, como tanto ambicionava. Até Frederico Pinto lh’o fizera recordar, receiando que elle ousasse raptar-lhe a irmã. Contou que, por este motivo, nunca mais tinha voltado á casa de Santo Ovidio. —Não o sabia, disse frei Simão. Meu irmão não m’o mandou dizer, porque calculou decerto que essa noticia me seria desagradavel. Mas parece-me que Vossa Mercê viu indevidamente um aggravo pessoal no que era apenas um aviso cauteloso de irmão mais velho. Frederico arreceiou-se talvez do caracter fogoso de Vossa Mercê e da impetuosidade das suas paixões. Mas eu não teria dado o conselho porque conheço tão bem o seu coração ardente como a sua honradez inabalavel. Comtudo—accrescentou o frade—se me achasse collocado na situação de Vossa Mercê, eu teria procedido como Vossa Mercê procedeu. José Maximo contou o episodio da romaria de Mattosinhos. O frade sorriu, mas d’ahi a pouco disse, referindo-se ao filho do brazileiro: —É notável! Sempre que os amigos sahem por uma porta, os inimigos entram por outra! É o que tambem me tem acontecido. Fica Vossa Mercê tendo mais um inimigo. O assumpto culminante d’esta entrevista era a resolução que José Maximo tomára de ir continuar os seus estudos em Coimbra, resolução com a qual se relacionava o pedido, que D. Anna de Vasconcellos mandava fazer, para regressar á casa do Outeiro. Frei Simão applaudiu com jubilo aquella resolução, recordando as palavras que, annos antes, n’essa mesma casa, havia dito a José Maximo. —Mas, perguntou o frade, de que tenciona Vossa Mercê viver em Coimbra? —Do meu trabalho. Ensinarei o que me ensinaram de latim, philosophia racional e moral e rhetorica; e, emquanto não firmo creditos de leccionista, viverei do meu pé de meia. Com improbo trabalho poderei habilitar-me a ultimar ainda este anno o estudo da geometria, sem cujo exame já não é permittido a ninguem matricular-se agora no primeiro anno juridico. Frei Simão admirava cada vez mais a corajosa e nobre alma d’aquelle rapaz, já tão contrariado, em verdes annos, pelos duros trabalhos da vida. —Mas uma vez na Universidade poderá Vossa Mercê receber o subsidio, que a muitos estudantes é concedido, do cofre da Intendencia e da Casa Pia. —Não me repugna esse auxilio, justamente inspirado pela necessidade de soccorrer os estudantes que se encontram nas minhas circumstancias; porém n’um regimen em que a camarilha predomina, só os aulicos poderiam obterm’o, e eu não conheço os aulicos, nem quero conhecel-os. —Nem só os aulicos teem valimento. Além do que, eu sei que muitos estudantes desprotegidos teem solicitado e obtido o subsidio por um ou outro cofre. José Maximo encolheu os hombros, como significando que desejava pôr de parte aquelle assumpto. Depois transmittiu a frei Simão o pedido de D. Anna de Vasconcellos repetindo as rasões allegadas por ella. —Fique Vossa Mercê tranquillo, respondeu o frade, que a sua commissão terá bom despacho. Anninhas é um anjo, e eu irei ao Porto fazer sentir a meu irmão, com a delicadeza que o caso requer, que nós os do Outeiro temos tanto direito como elle á companhia de um anjo. Se meu irmão vier, porém, a perceber que o pedido partiu d’ella, aconselhal-o-hei a desculpal-o, porque o amor sincero merece o respeito de quem o comprehende. E a Anninhas é uma alma sincera. É um anjo, creia; um anjo digno de Vossa Mercê. José Maximo despediu-se effusivamente do frade, cujo animo forte já havia despertado de um desalento passageiro, e que por isso lhe disse ao limiar da porta, como se não receiasse ser ouvido: —Até á liberdade, meu amigo. —Que não voltará mais, replicou José Maximo. —Ha de voltar, porque está no coração do homem, é uma aspiração ingenita da natureza humana. —Ha muitos seculos, respondeu ainda José Maximo, que o espirito do homem vive escravisado. A sua força de resistencia é menor que a pressão esmagadora dos factos. No caminho José Maximo avistou um criado de seu tio. Era o Manel Zarôlho, que estava ali a espional-o, porque tinha constado que José Maximo passára para o Outeiro. Ao contrario do que costumava fazer, José Maximo parou o cavallo, e chamou pelo camponez. —Meu tio está bom? perguntou-lhe. —Vae indo como Deus é servido. E o sr. José Maximo vae para Coimbra? —Não. Vou para o Porto. José Maximo quiz desviar da sua passagem por Cezár a suspeita de que a noticia de regressar a Coimbra significasse uma reconciliação com o tio pelo arrependimento do seu procedimento anterior. A pequena distancia iria José Maximo, quando frei Simão se sentou á carteira para escrever a frei Antonio Lino, seu antigo condiscipulo e confrade, cuja familia tinha alta cotação na côrte, pedindo-lhe que obtivesse para José Maximo da Fonseca, natural do Fundão, o qual se habilitava á matricula na faculdade de leis, o subsidio pecuniario destinado a estudantes pobres. «Eu, um vencido, que nada pediria para mim aos vencedores—dizia frei Simão de Vasconcellos—ajoelho n’esta supplica, com as mãos postas, implorando o teu valimento e de teus parentes.» XIII O oráculo A experiencia das cousas, foi a que descobriu a natureza d’ellas, e dos effeitos que viu, apropriou a muitas, os significados que teem. Os das plantas d’aqui tiveram sua origem, ainda que os mais d’elles não foram tão descobertos, por industria humana, como sabedoria divina: porquanto quando esta em diversos logares da sagrada Escriptura falla de plantas e flores, mais quer que por ellas se entendam as significações que teem, que as palavras que soam. Frei Isidoro Barreira—«Tractado das significações das plantas, flores e fructos, etc.» José Maximo foi encontrar Coimbra no apogeu do enthusiasmo absolutista. A maioria dos lentes e dos estudantes delirava com o triumpho alcançado em Villa Franca pelo infante D. Miguel. O claustro pleno resolvêra celebrar a restauração dos _inauferiveis direitos_ com grande pompa religiosa, a que não faltaria a organisação procissional de um prestito academico, especie de cortejo patriotico, que nascêra da engenhosa imaginação do lente de canones José Caetano da Silva. A faculdade de theologia propunha-se gargantear _Te-Deums_ e declamar panegyricos com o intuito de fazer crêr que o Todo Poderoso interviera na quéda do constitucionalismo. E as outras faculdades, salvas algumas excepções pessoaes, fraternisavam com os lentes de theologia, arrastando no enthusiasmo restaurador os respectivos cursos universitarios. Os cathedraticos e estudantes liberaes viam-se esmagados pela corrente triumphante do absolutismo; não ousavam reagir contra adversarios ébrios de gloria, que pareciam insaciaveis de commemorações festivas. José Maximo, que sahira do Porto aborrecendo a politica, não tratou no primeiro momento senão de habilitar-se ao exame do ultimo preparatorio que lhe era exigido, a geometria. Estudava com grande applicação, procurando abster-se de versar assumptos extranhos áquella disciplina. Mas não o fazia sem sacrificio, porque o seu temperamento era irritavel, como sabemos, e a sua paixão politica tão sincera como exaltada. Não obstante, dominou-se a ponto de assistir á famosa procissão dos lentes, em julho, e apparentemente sereno, se bem que intimamente indignado, viu desfilar, caminho de Santa Clara, essas duas longas álas de cathedraticos, que iam agradecer a Deus a restauração do poder absoluto. No dia seguinte, porém, deixou-se ficar em casa, sobre os livros, á hora em que a maioria dos estudantes se apinhoava n’aquelle templo para ouvir a oração evangelica recitada pelo doutor frei Manuel de Almeida, monge de Alcobaça, lente de prima na faculdade de theologia, e prégador de fama. A sua falta foi notada por um estudante, primeiranista de direito, que espionava na sombra todos os passos de José Maximo. Era Manuel Rodado, o filho do brazileiro de Mattosinhos, que procurava occasião de vingar o desaire soffrido no Campo de Santo Ovidio e que, como todos os poltrões, planeava entrincheirar-se nas suas prerogativas de primeiranista em relação a um caloiro do Collegio das Artes, para realisar impunemente a vingança. Todos aquelles que aspiravam a honrarias nobilitadoras abraçavam interesseiramente a causa da restauração, cujo triumpho lhes abria estrada larga por onde chegassem a conquistar os favores da Corôa. Manuel Rodado estava n’este caso. Ao dinheiro do pai apenas faltava a consagração nobliarchica de um habito de Christo. O infante D. Miguel, que voltára de Villa Franca como um vencedor a quem D. João VI nada poderia negar, acalentava indirectamente as aspirações dos plebeus ambiciosos dando o exemplo de admittir á maior intimidade, como Luiz XI, pessoas de humilde, senão rasteira origem. Manuel Rodado teria talvez esquecido o seu encontro com D. Anna de Vasconcellos, no adro da egreja de Mattosinhos, como effectivamente esquecêra tantas outras pequenas aventuras amorosas, que se repetiam todos os dias, se não se relacionasse com esse encontro o facto de um pobre diabo como José Maximo, que não tinha onde cahir morto, o haver preterido e de mais a mais maltratado. Rodado tratára de colhêr informações a respeito do homem a quem D. Anna de Vasconcellos distinguia com o seu amor. Essas informações obteve-as principalmente de pessoas absolutistas, que lh’o inculcavam como um aventureiro miseravel, que em 24 de agosto de 1820 andára atirando o chapeu ao ar pelas ruas do Porto, e a quem os vencedores constitucionaes haviam dado por compaixão um ôsso para roer. E fôra este bohemio sem eira nem beira que se atrevêra a baldear sobre a relva do Campo de Santo Ovidio o mais acabado peralvilho da romaria de Mattosinhos, o filho do rico brazileiro das Casas-Novas, pintadas de verde-gaio! Não importava muito a Manuel Rodado que D. Anna de Vasconcellos continuasse a mostrar-se-lhe esquiva; o que lhe importava, e por isso se lembrava d’ella tantas vezes, era vingar o insulto que recebêra da mão do supposto aventureiro, que não traria um chavo na algibeira. Affigurou-se ao filho do brazileiro que o retraimento de José Maximo em Coimbra era devido ao receio de qualquer aggressão por parte dos estudantes absolutistas, especialmente d’elle proprio. Deu, pois, esta interpretação ao facto de o não vêr na egreja de Santa Clara, quando a fina flôr da mocidade tradicionalista se agglomerava deante do pulpito onde frei Manuel de Almeida fazia a apotheóse da auctoridade dos reis como delegação do poder divino. Mas, na duvida, não era Manuel Rodado homem que, para desaffrontar-se, se aventurasse a arriscar pela segunda vez as costellas. Esperava cautelosamente a occasião de poder vingar-se, quando tivesse as costas quentes, e essa occasião, se não se tinha azado n’aquelle dia, facilmente a poderia encontrar na vida de Coimbra, em algum inevitavel conflicto travado entre estudantes absolutistas e liberaes. José Maximo recebêra uma carta de frei Simão, que lhe dava duas noticias agradaveis: participava-lhe que D. Anna já estava na casa do Outeiro, e felicitava-se de ter obtido um subsidio da Intendencia, com cujo auxilio José Maximo poderia frequentar a Universidade sem maiores privações e trabalhos. Feito o ultimo exame de humanidades, com um prodigioso esforço de intelligencia e applicação realizado em pouco tempo, José Maximo foi a Cezár agradecer mais aquelle testemunho de estima, que frei Simão tão espontaneamente lhe havia dado. E o desejo de tornar a vêr Anninhas comprazia-se de encontrar um tão justificado pretexto, como era o da gratidão e reconhecimento pelo favor recebido. José Maximo sentia-se um homem feliz ao entrar na casa do Outeiro. Suppunha-se nobilitado aos olhos de D. Anna de Vasconcellos pelo proximo ingresso á carreira universitaria, que lhe promettia uma posição social digna da consideração publica. Por occasião da romaria do Senhor de Mattosinhos achava-se ainda n’um plano inferior ao de Manuel Rodado; agora, sendo pobre, ia nivelar-se litterariamente não só com os filhos dos ricos, mas até com os filhos dos nobres. Frei Simão louvou-lhe o esforço intellectual com que em tão pouco tempo conseguira desembaraçar-se das disciplinas professadas no Collegio das Artes. José Maximo allegou modestamente que já não era hospede em geometria, por isso que mais ou menos a versára antes de abandonar Coimbra. —Agora, disse-lhe frei Simão, precisa Vossa Mercê pôr todo o seu cuidado em evitar os perigos da politica de Coimbra, que, segundo o que me consta, está mais brava do que nunca. Os lentes são fanaticos, os estudantes são moços, e, como taes, exaltados: o exemplo dos lentes estimula-os, e a certesa da impunidade torna-os destemidos. O que fazer então? Evitar com prudencia todo o pretexto para um conflicto, em que a victoria seria d’elles, que em Coimbra não teem quem os reprima, e que em Lisboa teem quem os proteja. Olhe Vossa Mercê para isto que lhe digo, como sendo o conselho de um amigo sincero, que lhe quer como a pessoa de familia. O que frei Simão disséra com tão bom juizo, repetira-o pouco depois Anninhas com maviosa ternura. Fôra o proprio frei Simão que proporcionára aos dois namorados o ensejo de poderem fallar sem testemunhas. —Vamos ali ao pomar, gozar a sombra, dissera elle. Anda d’ahi, Anninhas, para fazeres as honras da casa ao nosso hospede, emquanto eu vou regar as minhas flôres. O pomar da casa do Outeiro, ao qual se descia pela escada de pedra do páteo, era pequeno. Hoje quasi não existe. Encostado á parede do edificio havia um canteiro, onde frei Simão cultivava algumas flôres. Sob uma macieira, um banco de cortiça era o poiso predilecto do frade. Anna de Vasconcellos e José Maximo, tendo descido as escadas, ficaram por algum tempo de pé, junto á macieira, cuja sombra cobria o banco. Frei Simão pareceu desde logo muito entretido em regar as flores do pequeno canteiro, que era em Cezár a mais alegre das suas distracções. De costas voltadas para os dois, andava curvado, simulando dar a maxima attenção ao que estava fazendo. Anninhas entretanto dizia a José Maximo: —Eu não te sei aconselhar com os argumentos do mano frei Simão, mas peço-te que sigas os seus conselhos, e que não queiras saber mais de politica. Ah! como eu detesto a politica, que tanto nos faz soffrer aqui pela hostilidade de quasi todos os nossos visinhos! —Podes estar certa, respondia José Maximo, de que apenas pensarei em ti por amor dos livros, e nos livros por amor de ti. N’este momento frei Simão voltou-se e fingiu-se muito admirado de os vêr ainda de pé. —Então, disse elle, não teem ahi esse banco de cortiça para sentar-se?! Olhem que eu, em começando a jardinar, esqueço-me do tempo, e fal-os-hei aborrecer com a demora. Frei Simão, que nunca tinha experimentado as doçuras bucolicas do amor, comprehendeu-as n’esse momento, adivinhou-as. Sobre o banco de cortiça cahia a sombra fresca da macieira, onde as andorinhas pipitavam n’uma alegria discreta, parecendo que, n’esse feliz parlamento aereo das aves, cada orador alado pedia a palavra por sua vez, para não perturbar o colloquio do amor humano. Sobre o pequeno canteiro, matizado de côres vivas, em que a florescencia da vegetação accentuava tons variados e nitidos n’uma polychromia risonha, as flechas doiradas do sol incidiam, aqui e além, por entre as franças das arvores, na corolla das flores, que as abelhas procuravam. Na orla extrema do pomar, onde a sombra era mais espêssa, passavam na verdura da horta grandes borboletas brancas volitando aos pares n’uma chorea infatigavel. A agua cahia n’um improvisado tanque, de que já não restam vestigios, por uma calha de barro, cantando como uma ama somnolenta, que, já fatigada, acalenta uma creança rebelde ao somno. Uma branda sensação de mollesa parecia cahir da sombra do arvoredo e do despenho monotono da agua sobre o tanque. A paz campesina envolvia a atmosphera no longo espreguiçamento d’um corpo são que adormece entre branco linho muito fresco depois de um banho consolador. Anninhas tinha nos labios côr de rosa a eloquencia espontanea que as mulheres namoradas possuem na primeira inspiração do amor—volata do coração que accorda em extasi. José Maximo, como todos os homens que surprehendem os encantos d’essa eloquencia maravilhosa n’um colloquio tranquillo, ouvia-a n’uma embriaguez de fascinação. As palavras que até ahi havia trocado com D. Anna de Vasconcellos, no Outeiro ou no Porto, sempre a medo e de relance, não lhe tinham annunciado essa verbosidade apaixonada, essa fluencia de phrases simples e carinhosas, que affluem aos labios de uma mulher quando pela primeira vez pode dizer, n’uma liberdade honesta, quanto tem sentido e sonhado. Mas o coração humano contém em si mesmo o segredo de atormentar-se na felicidade, que nunca chega a ser completa por isso mesmo. O homem, mais do que a mulher, obedece a uma fatalidade torturante, que o leva a procurar as preoccupações dolorosas nos momentos em que a paz e a esperança pareciam apostadas em sorrir-lhe. Uma subita desconfiança invade-lhe a alma, como um veneno de lento effeito, que vae a pouco e pouco anesthesiando a sua victima. Foi José Maximo quem se lembrou de consultar o oráculo, que, segundo a superstição dos amantes, falla nas folhas das plantas, quando consultadas por elles. Estava ali perto um tufo verdejante de trevo, que adivinha os segredos do amor. —Para nós sermos inteiramente felizes, dissera José Maximo, só é preciso que as folhas do trevo confirmem as tuas doces palavras. E o oráculo, consultado folha a folha, affirmára o amor de D. Anna de Vasconcellos. Ella rira crystallinamente no seu triumpho como uma alma sincera, que não se teme do segredo dos oráculos. José Maximo riu tambem, entre envergonhado do riso de Anninhas e contente do resultado da consulta. Frei Simão voltou-se de subito, sorrindo por contagio, com um olhar alegremente investigador. —É o sr. José Maximo, disse Anninhas, que está consultando as folhas do trevo como cá fazem os camponezes. E, de repente, como que arrependida da sua propria franqueza, córou de pejo. Frei Simão ficou encantado com o primitivo bucolismo d’aquelle casto idyllio amoroso e, para salvaguardar a sua auctoridade de irmão mais velho, procurou illudir o sentido da resposta, dizendo: —Ah! o sr. José Maximo lembrou-se de consultar o futuro! Pois o futuro, meu amigo, pertence a Deus. E Anninhas acudiu de prompto como se quizesse valorisar a resposta do oráculo, que lhe tinha sido favoravel: —Mas quem faz nascer as plantas senão Deus? Frei Simão, comprehendendo o lance, respondeu: —Tens razão, Anninhas! E curvou-se de novo a regar as flores e a pensar em que jámais, na sua vida monótona e árida, tinha tido motivo para consultar os oráculos do amor. José Maximo disséra baixinho a Anna de Vasconcellos: —É verdade! Consultemos o futuro. E, desfolhando o trevo, dizia: _Feliz, infeliz_. A ultima folha respondeu: _Infeliz_. —É notavel! exclamou José Maximo, lembrando-se subitamente da cantiga que tinha ouvido ali em Cezár, quando descansára por alguns momentos, havia seis annos, sob a sombra de uma faya, na estrada. É notavel, repisava elle, a insistencia de um ruim agoiro! E repetiu a Anninhas a cantiga que então tinha ouvido: Quem quer ver um infeliz, Que nasceu ao pé da faya? Não ha desgraça nenhuma, Que n’este infeliz não caia! Anna de Vasconcellos, para dissipar as apprehensões aziagas de José Maximo, procurou rir com esforço. Frei Simão perguntou de longe: —Tornou a fallar o oráculo? E Anninhas respondeu: —O mano quer saber?! O sr. José Maximo ficou agora muito triste porque o trevo lhe disse que não havia de ser feliz! —Nunca vi homem intelligente, replicou frei Simão, que não fosse supersticioso. Chega a parecer ás vezes que a intelligencia, descontente de si mesma, quer nivelar-se com a fé céga dos ignorantes ingenuos! —Ouviste? perguntou Anninhas a José Maximo. José Maximo não respondeu, de preoccupado que estava. Angustiava-o a tortura que elle proprio inventára. A serenidade rural em que o pomar umbroso pareceria adormecido no fundo de um stereoscopo, se não fosse o vôo inquieto das borboletas brancas e das abelhas loiras, encontrava no peito de José Maximo uma forte resistencia, que já lhe não deixava tranquillo o coração como meia hora antes. XIV Á Porta Férrea É inveterado costume, e lei Academico-Escolastica, que todo e qualquer Novato leve a sua investida, e pague a sua patente: Não resista vossa mercê a nenhuma d’estas cousas; o que deve pedir é, que seja suave: para o que quanto aos dicterios e injurias bôca tapada, e quanto á patente, mão á bolsa. Silveira Malhão—«Vida e feitos», tomo II. Matriculado na faculdade de leis e canones, cujo curso era commum até ao terceiro anno, José Maximo não passou impunemente pela Porta Férrea, segundo a tradição academica. Já Nicolau Tolentino havia dito referindo-se a Coimbra e ás caçoadas, por que os novatos tinham de passar: Povo revoltoso, e ingrato Dentro em seus muros encerra; Em vão de adoçal-o trato, É um titulo de guerra A chegada de um novato. José Maximo conhecia de sobra a vida de Coimbra, e esperava por isso a troça; mas, pelo facto de ser já conhecido, julgava-se a coberto das maximas torturas de que o _Palito metrico_ fallava: ........... tum cœtera turba Rodeat miserum; truxque investida comecat. Principio quatuor mandat aparare sopapos, Et simul haud cessant miseri cuspire bigotes, Donec sella chegat lumbo imponenda rebeldi. Manuel Rodado combinára porem com outros segundanistas que José Maximo fosse o principal alvo da _troça_ feita aos novatos. Queria iniciar a sua vingança, e, como era rico, remunerava bisarramente a adhesão dos condiscipulos aos seus planos. Era elle quem na _borga_ pagava as despezas de comes e bebes, as merendas de manjar branco «no fresco pateo de Cellas», as ceias na estalagem do Paço do Conde ou na tasca do Alexandre Ramalhaes ao fundo da rua das Sollas; d’aqui o seu prestigio, porque em primasias de intelligencia não se assignalava Manuel Rodado. A academia, sempre alegre e epigrammatica, pozera-lhe uma alcunha feliz, que ao mesmo passo alludia á garridice e á pecunia do sujeito: era o _Narciso doirado_. José Maximo passou á Porta Férrea por entre duas filas de segundanistas, entre os quaes estava o filho do brazileiro. Não reagiu contra a tradição academica do _canellão_, no primeiro dia de aulas, apesar de perfeitamente ter distinguido, na hilaridade dos trocistas, as risadas alvares, muito sarcasticas, de Manuel Rodado, o qual, vendo a submissão de José Maximo, julgou que podia exceder-se sem perigo de resistencia. Não obstante ter grande amor ás costellas, entendeu que José Maximo, a julgar pelo seu retraimento e submissão, não era homem que tivesse coragem de repetir em Coimbra, no seio da academia, a pimponice valentona do Campo de Santo Ovidio. Por isso, no immediato dia lectivo, quando José Maximo recebia, á Porta Férrea, a segunda dóse de _canellão_, ouzou passar-lhe a mão pela cara. Teve resposta prompta. José Maximo fez pé atraz, e descarregou-lhe na face uma sonora bofetada, que deixou aturdido o filho do brazileiro. Armou-se uma baralha de mil diabos. Muitos segundanistas cahiram sobre José Maximo, que, cego de colera, respondia energicamente com murros e pontapés. Tamanha coragem exhibiu no maior apêrto do tumulto, fazendo frente ao grupo dos aggressores, que alguns estudantes dos ultimos annos intervieram em favor de José Maximo, defendendo-o. Um d’elles, que se chamava Jayme de Carvalho, quintanista de direito, por alcunha o _Sam Bartholomeu_, cobriu José Maximo com a pasta. A academia temia o valor d’este quintanista, cujas idéas liberaes justificavam a alcunha que os estudantes absolutistas lhe pozeram por allusão ironica ao dia 24 de agosto, em que a Egreja celebra a festa de Sam Bartholomeu, e em que, trez annos antes, rebentára no Porto o movimento constitucional. José Maximo, quando a pasta protectora de um quintanista temido lhe permittiu explicar o seu procedimento, disse que tinha dado sobejas provas de submetter-se á _troça_ e de sujeitar-se ao _canellão_, mas que a sua dignidade não lhe permittia tolerar as provocações de um inimigo pessoal, que, para vingar-se de um incidente particular occorrido entre ambos, se acobertava cobardemente com a tradição academica e com o auxilio dos condiscipulos. Esta leal explicação causou no auditorio uma impressão excellente. Todos os _veteranos_, Jayme de Carvalho em primeiro logar, applaudiam o procedimento de José Maximo. E muitos dos segundanistas, que o tinham aggredido, acabaram por dar-lhe razão. Discutia-se animadamente o caso nos grupos da Porta Férrea, quando appareceu um verdeal que, por ordem do conservador _Cabaças_, vinha averiguar o que se tinha passado de extraordinario. Como José Maximo estivesse ainda rodeado pelo grupo mais numeroso, que o escutava com agrado, foi a José Maximo que o verdeal se dirigiu, abrindo caminho atravez do grupo. Interrogado, José Maximo respondeu que por sua parte nada sabia do que se tinha passado, mas que estavam alli muitos estudantes que poderiam informar, querendo, o sr. conservador. Nenhum se mexeu; todos encolheram os hombros sorrindo, menos Manuel Rodado. Jayme de Carvalho acabou por dizer ao verdeal que se fosse em paz, porque não havia motivo para qualquer procedimento. A academia, onde o elemento aristocratico era sanhudamente absolutista, deixou-se impressionar de uma subita sympathia por José Maximo, a quem, desde essa hora, ficou conhecendo pela alcunha de _Martim Moniz_, em memoria da sua façanha da Porta Férrea: façanha que no enthusiasmo do primeiro momento fôra pelos estudantes igualada á do heroe da porta do Castello de Lisboa no tempo de Affonso Henriques. Manuel Rodado sentiu-se corrido. Desappareceu. Mas nunca o seu rancor a José Maximo fôra maior do que quando, ao pensar nos acontecimentos d’aquelle dia, percebeu que tinha indirectamente concorrido para dar vantajosa evidencia ao novato, que pela segunda vez o desfeiteára. E fôra effectivamente assim. Durante o resto do dia e á noite não se fallou em outra coisa nos varios cenáculos de conversação academica. José Maximo tornára-se conhecido de todos, e estimado de muitos. Era já, na linguagem escolastica, geralmente designado por «Martim Moniz». Alguns estudantes absolutistas, com a versatilidade propria da juventude, pareciam querer mudar de opinião, qualificando de insolente reacção o procedimento de José Maximo, que tinha esbofeteado a academia na pessoa de Manuel Rodado. Mas outros, mais persistentes na primeira impressão recebida, replicavam que José Maximo respeitára as praxes universitarias submettendo-se ao _canellão_, e que apenas tomára como offensa pessoal a provocação que partira de um seu antigo inimigo. Accrescentavam que não era no meio da collectividade academica que deviam liquidar-se as pendencias individuaes. Posta a questão n’estes termos, ninguem ouzava quebrar lanças em publica defesa de Manuel Rodado, suspeito de cobarde. A pusillanimidade é o sentimento que mais repugna ao espirito dos novos, sejam quaes fôr as suas tendencias politicas e sympathias pessoaes. Alem d’isto, os apologistas de José Maximo punham em relevo a correcção da sua resposta ao verdeal, quando appellára para o testemunho da academia; e contrastavam esse nobre procedimento com o de Manuel Rodado, que nem sequer tivera a coragem apparente de sorrir disfarçando um mesquinho resentimento. O incidente da Porta Férrea estabelecêra ligações de amisade entre Jayme de Carvalho e José Maximo. A intimidade cresceu de pressa, porque não é proprio de gente moça moderar as suas expansões. E cada dia uma nova revelação vinha estreitar os laços de amisade que uniam aquelles dois academicos, attraidos um para o outro pela coincidencia das suas inclinações politicas e valorosas aventuras. José Maximo contou a Jayme de Carvalho a historia do seu amor por D. Anna de Vasconcellos para explicar a causa remota do conflicto com Manuel Rodado. Dezenhou-lhe o perfil insinuante de frei Simão, o destemido liberal de Cezár. Jayme de Carvalho ouvia-o sorrindo, sem comtudo mostrar-se surprehendido. —Esse frade, disse Jayme, tem um irmão que está agora preso em Aveiro por vingança de um silveirista de Chaves, que se tem valido da politica para o perseguir por motivos particulares. Não é verdade? —É verdade! Mas como sabes tu isso? —Esse irmão do frade ama uma menina, que está no convento de Arouca. Não é tambem verdade? —É verdade! Mas explica-te! Como sabes tu isso? —E essa menina tem no convento uma unica amiga, que, alem de minha prima, é minha noiva. Sabias? —Não sabia! —Pois é isto mesmo. —Ó homem, dá cá um abraço! exclamou «Martim Moniz» caminhando de braços abertos para «Sam Bartholomeu». Não ha coincidencias absurdas. O acaso é mais engenhoso nas suas combinações do que a chimica! E depois d’esta affectuosa expansão de recente amisade, que parecia já tão solida como se fosse muito antiga, entraram em pormenores. José Maximo disséra a Jayme de Carvalho: —Põe-me ahi a tua vida em pratos limpos. Quero saber tudo. —Eu sou pobre, disse Jayme. —E eu tambem, disse José Maximo. —Mas eu sou mais pobre do que tu. —Mais pobre do que eu não ha ninguem: nem mesmo tu. —Recebo subsidio da Casa Pia. —E eu da Intendencia. Quem t’o arranjou? —Foi o conde de Rio Maior. E a ti? —Foi frei Simão de Vasconcellos por intervenção de um frade absolutista de Alcobaça. —Outra coincidencia: somos dois pobretões subsidiados. —É verdade! Parece que tinhamos nascido para ser amigos! —Tens razão. Eu sentia-me só em Coimbra, disse Jayme de Carvalho, no meio d’esta grande récova de _burros_ arreatados á Universidade. —Mas vamos á historia dos teus amores com a amiga da _Flor do Támega_. —Quem é a _Flor do Támega_? —É a menina de Chaves tão desgraçadamente amada pelo irmão de frei Simão de Vasconcellos. —Eu sabia apenas que se chamava Margarida Candida. —Pois chama. Mas foi Antonio da Silveira, o apóstata de Canellas, que lhe poz a alcunha de _Flor do Támega_. —Não sabia. E pôde sahir do bestunto de um Silveira uma tão delicada alcunha? —Parece incrivel, mas é verdade! —Por morte de meu pae achei-me na impossibilidade de concluir o curso. —Que pena seres já tu quintanista, quando eu ainda sou novato! —Deixa lá! Quando dois homens nascem fadados para amigos, não é a formatura que os pode separar. —Tambem tens razão. —Mas se a morte de meu pae me prejudicou, maior prejuizo causou ainda a minha tia e minha prima Ernestina, de quem meu pae era o unico amparo. Minha prima, graças ainda á protecção do conde de Rio Maior, entrou no mosteiro de Arouca, aonde eu, logo que possa, a irei buscar para ser minha mulher. Olha que é uma linda rapariga, minha prima! —Faço ideia. —Fazes ideia? Pois eu não faço. —Como assim?! —Não faço ideia como ella estará agora, atormentada, flagellada pelo despotismo politico das venerandas madres de Arouca, que nem sequer a deixam escrever-me só porque minha prima pertence a uma familia liberal, apezar de eu ser o seu noivo. —E apesar de seres o seu noivo, talvez que te não seja facil tiral-a do convento quando a quizeres ir buscar. Pelo menos hão de empregar dilações, exigir longas formalidades só para contrariar-te e contrarial-a. O absolutismo é como as feras: não larga facilmente uma victima. —Ora essa! Minha prima pertence á sua familia! Para que servem então as leis, que nós vimos estudar em Coimbra?! O convento de Arouca não é uma cadea legal; não tem maiores privilegios do que as outras casas monasticas. —Em conventos, meu amigo, não ha que fiar e escolher: são todos mais absolutistas do que o infante D. Miguel e sua mãe. —Nem minha prima poude escolher, porque veio de Lisboa licença para entrar no de Arouca. Precisava ir para um: foi para aquelle que lhe designaram. —Mas se tua prima não póde escrever-te, como sabes tu o caso da _Flor do Támega_? —Minha prima escreveu á mãe apenas dois bilhetes desde que está em Arouca, e se o conseguiu fazer foi porque um almocreve e um pastor levaram os bilhetes ao seu destino. No primeiro, contava a perseguição politica de que estava sendo victima dentro do convento; na segundo insistia sobre o assumpto e participava que já tinha uma companheira de desgraça, certa menina de Chaves, Margarida Candida, que ali entrára por castigo de namorar um capitão de dragões, muito liberal, irmão de um celebre frade, tambem liberal, residente em Cezár. Minha tia recebeu esses dois bilhetes, e não tornou a receber nenhum outro. Mandou saber da abbadeça se minha prima passava bem de saude. A abbadeça respondeu que Ernestina gosava a melhor saude d’este mundo, que estava excellentemente, e que em havendo alguma novidade a participaria, mas que só a ella, na qualidade de prelada, pertencia avaliar a opportunidade das relações epistolares das suas subordinadas com os respectivos parentes. Dize-me agora se acabaram realmente os carceres e torturas da Inquisição ou se continuam funccionando, sempre em nome de Deus, no mosteiro de Arouca, para honra e lustre da religião catholica, apostolica, romana. —Ha effectivamente ainda muito que derrubar e combater! accrescentou José Maximo, pensativo. A arvore da tyrannia, comquanto abalada desde o seculo passado pelos vendavaes revolucionarios, tem raizes profundas, que não poderão ser extirpadas facilmente. Mas eu já não me proponho auxiliar essa empresa demolidora. Toda a minha ambição é obter pacificamente uma carta de bacharel em leis e ir depois esconder-me n’algum canto da provincia com Anninhas e com a tranquilla felicidade da minha consciencia. —Meu amigo, tu ainda cá tens que ficar durante cinco annos, e olha que te não ha de ser facil resistir impunemente a todas as provocações politicas, a todas as insolencias irritantes com que os altaneiros realistas, que ahi passeiam de grimpa levantada, procuram açular a nossa colera para esmagar-nos depois. —Hei de conseguil-o; sabel-o-has. —Elles não pensam senão em irritar-nos com successivos reptos. Agora lembraram-se de imitar o exemplo dos lentes secundando o famoso prestito de José Caetano com um _outeiro_ na sala grande dos actos e não sei que mais festanças provocadoras. —Deixal-os! Eu não quero saber d’isso. Effectivamente, os academicos absolutistas planearam commemorar solemnemente a quéda do constitucionalismo. O plano vingou, de accôrdo com os lentes. Em fevereiro de 1824 um triduo de ruidosas festas foi como um novo cartel arremessado á face dos estudantes liberaes pelos absolutistas. A provocação chegou a ponto de convidarem o famoso dominico Rochinha, muito constitucional, e cathedratico de theologia, para recitar a oração congratulatoria. Queriam compromettel-o pela recusa. Mas o doutor Rocha acceitou, comquanto o machiavelismo do convite irritasse profundamente o animo dos liberaes. D’este propositado rastilho nasceu o incendio. Emquanto na sala grande dos actos se celebrava o annunciado _outeiro_ com tumultuosos incidentes, no páteo da Universidade, vistosamente illuminado, a festa era perturbada pela expansão do despeito liberal. Ao passo que no _outeiro_ os estudantes constitucionaes, como um que se chamava Antonio Feliciano de Castilho, recitavam composições poeticas, em que o amor da liberdade transparecia ouzadamente, promovendo tumulto entre as duas facções adversarias, no páteo da Universidade os retratos da familia real e os emblemas allusivos á Restauração eram derrubados por mão desconhecida. Castilho tinha conquistado um logar saliente no seio da academia pela circumstancia de ser cego e poeta. Estudava pelos olhos dos irmãos, e avantajava-se aos irmãos no boleio dos versos e na delicadesa da inspiração, sendo que todos os Castilhos eram apaixonados cultores das bellas-lettras. Antonio Feliciano descobrira a veia poetica de José Maximo, e instou-o para que concorresse com elle ao _outeiro_. Procurou demovel-o com a leitura do _Sonho de Fénelon_, que escrevera expressamente como protesto contra os intuitos absolutistas d’aquella commemoração litteraria. José Maximo resistiu, desculpando-se com a insufficiencia do seu éstro indigno de hombrear com o do joven Milton portuguez. Mas prometteu a Castilho ir ouvil-o, e foi. XV Politica de estudantes São cousas de moços. Gil Vicente—Farça do «Juiz da Beira.» Na sala grande dos actos, José Maximo e Jayme de Carvalho, sentados um ao pé do outro, assistiam ao _outeiro_. N’um dos bancos anteriores estava Manuel Rodado no meio de um grupo de estudantes absolutistas, que denunciavam uma superabundancia de enthusiasmo, suspeita de copiosas libações intencionalmente liberalisadas pelo filho do brazileiro. Todo este grupo se voltava frequentes vezes para traz, olhando zombeteiramente para os dois academicos constitucionaes, sorrindo e fallando d’elles com escarneo. José Maximo disse para Jayme de Carvalho: —Eu cá faço de conta que não é nada comnosco. —E eu tambem. Quando os poetas absolutistas subiam ao estrado, a facção liberal arrastava os pés ruidosamente. O obéso conservador _Cabaças_, alcunha que resultára do seu feitio espheroidal, rompia logo coxia acima, á frente dos verdeaes, para surprehender em flagrante delicto os pateantes. Mas a pateada cessava, para começar depois. Ouviam-se vozes de—Fóra! fóra! E o grupo de Manuel Rodado, pondo-se de pé, olhava acintosamente para José Maximo e Jayme de Carvalho, como se quizesse indicar ao conservador que elles eram os cabeças de motim. Mas os dois mantinham-se imperturbavelmente serenos, facto que aliás era notado pelo corpo cathedratico, que occupava as tribunas de honra. Uma vez aconteceu que o proprio reitor, vendo que o _Cabaças_ observava os dois amigos, lhe fizera signal de que o tumulto partia de outro ponto da sala. Os poetas liberaes eram festejados pelos seus correligionarios com enthusiasticas manifestações de applauso. José Maximo e Jayme de Carvalho abstinham-se, mas abriram excepção para Castilho, a quem deram palmas, e que fôra obrigado a repetir muitas vezes o _Sonho de Fénelon_. Cresceu com esta ovação a colera dos absolutistas, a breve trecho atiçada pela noticia, que logo circulára na sala, de que tinham sido despedaçados os emblemas que ornamentavam o páteo da Universidade. O reitor entendeu que era mais prudente encerrar o _outeiro_, e a onda dos estudantes galgou desordenada para o páteo, onde se travaram pequenos conflictos, a que a ronda universitaria, _Cabaças_ á frente, logo acudia, varrendo adeante de si a multidão. José Maximo e Jayme de Carvalho passaram indifferentemente atravez da turba, seguidos a pequena distancia pelo grupo de Manuel Rodado, que, vendo-os caminhar pausadamente, como quem vae prevenido para uma aggressão, não ouzava atacal-os. José Maximo chegára a dizer para Jayme de Carvalho: —Não estamos armados. O melhor é irmos para casa. —Pois vamos, mas de vagar. Salvo o caso... —Bem sei que caso é, atalhou José Maximo; salvo o caso de nos aggredirem. Mas a aggressão não veio. José Maximo entrou em sua casa com Jayme de Carvalho e, apenas acabavam de entrar, quando todas as vidraças estalavam com uma rajada de pedras. Uma bala, entrando por uma das janellas, zuniu sobre a cabeça de Jayme de Carvalho. —Isto agora é mais serio! exclamou José Maximo. O ficarmos aqui encurralados já não seria prudencia, era vergonha. Foi direito ao quarto de um condiscipulo, onde sabia haver um bacamarte. —Está carregado, felizmente! disse elle apossando-se da arma. —E eu? perguntou Jayme de Carvalho. —Tu? Procura por ahi um punhal, uma bengala, qualquer coisa. Nova saraivada de calhaus bateu contra as portas das janellas, fazendo tinir o pouco que restava das vidraças. José Maximo desceu de um salto a escada, e abriu a porta. Jayme de Carvalho, armado de um cacete, seguiu-o immediatamente. Apenas José Maximo assomou ao limiar, foi agarrado pelos estudantes absolutistas, que se perfilavam ás hombreiras. Jayme de Carvalho, brandindo o cacete por sobre o grupo, descarregava bordoada a torto e a direito n’um rapido sarilho de esgrima. José Maximo poude libertar-se, mas o grupo, sentindo a pequena distancia um extranho tropel, largou a fugir em debandada. Vinham fugindo, em sentido opposto, alguns estudantes, que corriam gritando:—Fujam! fujam! Mataram o _Cabaças_ ao Arco do Bispo. Toda a caterva desappareceu como por encanto, e José Maximo e Jayme de Carvalho entraram precipitadamente em casa, fechando a porta. Subindo á sala, disse Jayme sentando-se, muito fatigado, n’uma cadeira de pinho: —Ora aqui está no que vieram a dar os nossos planos de prudencia! —É verdade! Mas fomos provocados. Só se não tivessemos sangue nas veias! —E se effectivamente mataram o _Cabaças_, teremos alçada, pagará o justo pelo peccador, quem sabe se não seremos tambem arrastados na rêde? —Nós?! exclamou José Maximo. Mas o que temos nós com isso?! —Temos que somos constitucionaes, e é o peior que podemos ser n’esta occasião. Estamos á mercê das vinganças e das delações de todo o fiel patife absolutista, como o _Narciso doirado_, e quejandos. Pois olha que qualquer complicação me faria agora differença, no quinto anno! —E a mim, no primeiro! disse desalentadamente José Maximo, que se lembrou de Anna de Vasconcellos, dos seus ternos pedidos para que se abstivesse de politica, bem como dos prudentes conselhos de frei Simão. Melhor eu não tivesse ido ouvir o Castilho! —O que está feito, está feito! apostrophou Jayme de Carvalho. Vou embora, preciso dormir. —É mais prudente que fiques. Se mataram o _Cabaças_, e se te apanham na rua, corres o risco de ser preso para investigações. —Mas olha que não deixa de ser compromettedor o facto de não ficar em casa! —Tambem é verdade. Vou acompanhar-te. —Não quero! —Mas quero eu. —É tolice. Dado o caso de eu encontrar a ronda, que necessidade tens tu de ser tambem preso? —Seguirei o teu destino. —Muito obrigado. Mas se fôr preso, prefiro que tu o não sejas, porque poderás mais facilmente justificar-me. Perante este argumento, José Maximo deu-se por convencido. Ficou. Deitou-se. Mas não poude conciliar o somno. A imagem de Anninhas apparecia-lhe lacrimosa a lastimar-se de não terem sido attendidas as suas supplicas. E a folha de trêvo, consultada como oráculo, revoluteava no cerebro de José Maximo á semelhança de uma borboleta negra, presaga. Jayme de Carvalho não teve pelo caminho qualquer mau encontro. As ruas estavam desertas, dir-se-ia que o terror fizera dispersar toda a academia, n’uma noite de festa e de luar, vespera de feriado. —Alguma coisa grave se passou effectivamente! tinha pensado Jayme de Carvalho. Os seus companheiros de casa, que já haviam recolhido todos, contaram-lhe que a ronda da Universidade fôra atacada a tiros de bacamarte no Arco do Bispo, mas que o _Cabaças_ não morrêra, como a principio constára. Apenas o meirinho e alguns verdeaes tinham ficado feridos. O caso, porém, não deixava de ter gravidade. —Quem foi que atacou a ronda? perguntou Jayme de Carvalho. —Vá lá saber-se! Fomos nós, foste tu, foram todos os que não são absolutistas. É o que ha de dizer-se. —Eu não ataquei ninguem; mas olhem que fui atacado. —Foste atacado?? perguntaram-lhe. —Pelo grupo do _Narciso doirado_, que apedrejou a casa de José Maximo. As pedras não passaram das vidraças, que ficaram partidas, mas eu senti zunir uma bala por cima da cabeça. —Patifes! disse um estudante. —Vamos nós fazer o mesmo ás janellas do _Narciso_? propoz outro, mais exaltado. —Não sejam tolos! respondeu Jayme. Eu vou mas é deitar-me. Boa noite, rapazes. No dia seguinte corria em alguns circulos absolutistas a seguinte versão: Manuel Rodado e outros estudantes, que recolhiam do _outeiro_, tendo encontrado ao Arco do Bispo um grupo que lhes pareceu suspeito, perseguiram-n’o para reconhecel-o. Dois individuos d’esse grupo entraram em casa de José Maximo, e como ahi mesmo fossem vigiados, sahiram á rua armados de bacamarte e cacete. Esses dois individuos tinham sido reconhecidos: eram José Maximo e Jayme de Carvalho. O primeiro não poude fazer uzo do bacamarte, porque o seguraram. O segundo descarregou muitas cacetadas contra os seus perseguidores, um dos quaes, Manuel Rodado, ficára ferido na cabeça. Esta versão tinha por fim insinuar que José Maximo e Jayme de Carvalho não eram extranhos á emboscada do Arco do Bispo. A versão liberal contava os factos como elles realmente se tinham passado e preconisava o denôdo dos dois amigos, que fizeram frente a um grupo numeroso, abrindo a cabeça a muitos absolutistas. Este acontecimento vinha coroar a reputação de valente, que José Maximo tinha ganho á Porta Férrea. Pelo que respeitava a Jayme de Carvalho, a sua reputação estava feita, e fôra elle proprio que engrandecera a gloria do seu amigo divulgando os serviços prestados á causa da liberdade no Porto e era Lisboa. José Maximo havia-lhe contado, no decorrer do tempo, todos os episodios da sua aventurosa existencia. De todos esses episodios o que mais exaltara a imaginação da rapaziada havia sido a metamorphose em criado de servir sob o disfarce de _Fresca Ribeira_. Muitos academicos liberaes foram a casa de José Maximo felicital-o; entre outros, estivera ali Antonio Maria das Neves Carneiro, natural do Fundão, seu patricio e amigo de infancia. N’esse improvisado parlamento constitucional discutiram-se durante longas horas os acontecimentos da vespera. Reconheceu-se a necessidade de uma forte concentração de elementos partidarios como nucleo de resistencia contra as insidias e perfidias da facção contraria. Foram indicados os nomes de José Maximo e Jayme de Carvalho como sendo os dos academicos que inspiravam maior confiança para a organisação e direcção dos trabalhos do partido. E d’esta acclamação unanime resultou achar-se José Maximo envolvido nos negocios politicos da academia, que vinte e quatro horas antes estava resolvido a evitar completamente. Um dos ultimos estudantes que sahiram foi Antonio Maria das Neves Carneiro. José Maximo, muito pallido, chamou-o de parte, e disse-lhe: —Ó Antonio, tu viste por lá minha mãe? E rebentaram-lhe as lagrimas, embaciando-lhe a vista. —Vi, sim, respondeu Neves Carneiro. Vive muito atormentada por tua causa. E encarregou-me, a occultas de teu pae, de te dar um abraço, quando estivessemos sós. José Maximo abriu os braços, e apertou Neves Carneiro contra o coração. N’esse momento, chorava copiosamente. Parecia-lhe que tinha sentido palpitar, na dôr e na desolação, o coração de sua mãe. O governo mandára uma alçada a Coimbra para syndicar dos acontecimentos de fevereiro, que, segundo a phrase de um chronista consciencioso[1], os odios e malevolencia do partido absolutista adrede exageravam para se vingar dos seus adversarios. Sabia-se, apesar do segredo da alçada, que José Maximo da Fonseca e Jayme Henrique de Carvalho tinham sido compromettidos pelo depoimento de Manuel Rodado e outras testemunhas absolutistas. Foram horriveis de anciedade os dias que para aquelles dois estudantes decorreram, desde que chegou a alçada e morosamente funccionou para que não ficasse por averiguar o menor delicto, até que em 30 de abril se mallogrou em Lisboa o novo movimento promovido pelo infante e pela rainha, recolhendo-se D. João VI a bordo da nau ingleza _Windsor Castle_ e sendo D. Miguel obrigado a retirar-se para o extrangeiro. O mallogro da _abrilada_ pela intervenção da diplomacia causára dolorosa impressão a todos os absolutistas, incluindo os de Coimbra, que tinham julgado aberto o caminho da reacção sanguinaria pelo assassinato do marquez de Loulé em Salvaterra. Lastimavam a ausencia do infante, e receiavam que se robustecesse a politica moderada e conciliadora, adoptada nos processos governativos depois da restauração de Villa Franca, e que fôra a causa determinante do segundo movimento tentado por D. Miguel. Tinham razão para receiar, porque assim veio a acontecer. A amnistia de 5 de junho de 1824 suspendeu as perseguições politicas; deteve o gladio da vingança. Ficaram por este motivo sem effeito os processos instaurados nas devassas a que a alçada, que em fevereiro tinha ido a Coimbra, procedeu rigorosamente. José Maximo e Jayme de Carvalho poderam respirar desafogados. Mas esse mesmo facto, que significava um tenue triumpho obtido pelos liberaes sobre os absolutistas de Coimbra, fez augmentar o prestigio politico de José Maximo, deu-lhe maior importancia partidaria. Estava livre, graças á amnistia, mas, infelizmente, a politica havia-o empolgado de novo, fazia-se em torno do seu nome, de preferencia a Jayme de Carvalho, uma atmosphera de celebridade capitolina, porque José Maximo, como primeiranista, era o sol que nascia, e Jayme de Carvalho, estudante do quinto anno, era o sol que ia desapparecer. A politica é sempre a mesma em toda a parte. XVI Falso triumpho Não era a demissão de um simples ministro que a regente assignava, era a demissão da causa constitucional. D. Antonio da Costa—«Historia do marechal Saldanha». N’um dos ultimos dias de fevereiro de 1826, Jayme de Carvalho, que havia mais de um anno tinha estabelecido banca de «lettrado» na cidade d’Evora, para onde fôra advogar por suggestão de um alemtejano seu contemporaneo em Coimbra, apresentava-se na portaria do mosteiro de Arouca, acompanhado de uma senhora, a reclamar a entrega de sua prima Ernestina. A senhora que o acompanhava era a mãe da secular. Jayme, que se estreiára com felicidade, e estava fazendo importantes interesses, podéra preparar com um certo conforto o seu lar conjugal. Depois requereu ao respectivo prelado a licença indispensavel para Ernestina sahir do convento. O prelado despachou favoravelmente, e Jayme, munido d’essa licença e acompanhado de sua tia, que tinha deixado o Porto para ir viver com elle em Evora, foi a Arouca buscar a prima que queria desposar. A abbadeça, irritada, como todos os miguelistas, pelo exilio do infante, refinára em odio aos liberaes, e enfureceu-se sobremodo com a visita d’um pedreiro-livre, que, de cabeça alta, com orgulhosa altivez, ia dizimar-lhe o sagrado rebanho, arrancando uma victima ás vinganças da politica monastica. De mais a mais, creando difficuldades á sahida de Ernestina, obstava á constituição odiosa de uma nova familia maçonica, no que julgava prestar um dedicado serviço á causa do absolutismo e da santa religião. Portanto, vindo á grade receber essa impertinente visita, peremptoriamente declarou que o documento apresentado, salvo o respeito devido ao despacho episcopal, não era bastante a justificar a entrega da educanda. Disse que Ernestina de Carvalho fôra recebida por ordem do governo, medeante auctorisação do prelado. Ora, o documento que lhe apresentavam, se tinha authenticidade ecclesiastica, carecia de sancção civil. —Nos tempos que vão correndo agora, accrescentára a abbadeça com rispido azedume, a desordem nas coisas publicas não pode ser maior, porque todos querem mandar. Tenho aqui, é certo, a auctorisação do nosso reverendo prelado. Mas se eu deixar sahir a menina sem mais formalidades, e amanhã o governo do reino se lembrar de perguntar-me o que fiz eu de uma secular que por elle me fôra entregue, não sei o que hei de responder. Vá pois Vossa Mercê entender-se em Lisboa com os ministros d’estado, traga da chancellaria da côrte uma ordem que invalide a que me enviaram para receber a educanda, e eu lh’a entregarei então sem o menor impedimento. Nós, que fômos educadas a respeitar o poder real, não estamos habituadas nem dispostas a fazer côro com os revolucionarios que o pretendem abalar. Jayme de Carvalho ficou fulminado com esta recusa formal. Quiz argumentar, discutir com a abbadeça, que, sem mais explicações, inclinou levemente a cabeça, e sahiu da grade. —Não ha que ver! disse Jayme a sua tia. Tenho de ir a Lisboa! José Maximo parece que adivinhava! Espero que não terei mais demora do que chegar e voltar. Por isso resigne-se minha tia a ficar aqui em qualquer casa que por alguns dias a queira receber, evitando assim, na sua idade, os incommodos de uma segunda jornada. Eu sou novo e forte, não me fatigarei, nem demorarei muito. Nenhuma das familias pobres de Arouca quiz receber a tia de Jayme de Carvalho, quando se soube que ella era a mãe da secular constitucional, originaria de maçons. Receiavam a colera da abbadeça, e da communidade. Entre as familias nobres uma lhe daria certamente pousada, era a da quinta do Outeiral; mas José Bernardo Pereira de Vasconcellos estava a esse tempo em Cezár no solar do Outeiro. Só em Sobrado de Paiva foi possivel encontrar hospedagem, graças ao silencio que tia e sobrinho aprenderam a guardar sobre o motivo da sua jornada. Jayme de Carvalho chegou a Lisboa em tão má hora, que foi encontrar agonisante, nos primeiros dias de março, el-rei D. João VI. Os ministros não davam audiencia, nem despacho. Passavam o dia na Bemposta, muito preoccupados com a magna questão politica da successão ao throno. Fóra do Paço boquejava-se que o rei já estava morto, mas que o governo, para fazer vingar a hereditariedade de D. Pedro IV, e ter tempo de nomear a regencia interina, occultava a sua morte. Os constitucionaes contradictavam este boato, e os miguelistas mostravam-se muito exaltados contra a postergação dos direitos de D. Miguel, por isso que D. Pedro, depois da independencia do Brazil, não era para Portugal mais do que um principe extrangeiro. D. João VI fallecêra antes ou depois de ter apparecido o decreto, que reconhecia a successão de D. Pedro e nomeava a regencia provisoria. Mas a sua morte fôra declarada officialmente, e seguira-se o funeral e o luto da côrte, de modo que Jayme de Carvalho não poude obter uma audiencia da infanta regente. Procurava todavia os ministros, expunha-lhes o estado da «sua questão», e os ministros, que estavam a vêr no que paravam as modas e que não queriam indispôr-se abertamente com nenhum dos dois partidos militantes, respondiam que o assumpto era melindroso, e que não podiam dar despacho sem levar primeiro o negocio ao conhecimento da «senhora infanta D. Isabel Maria». Jayme estava ainda em Lisboa, sem conseguir uma resolução do poder executivo, quando chegou, pela corveta _Lealdade_, a noticia de ter D. Pedro outorgado a Carta Constitucional. Apesar de muito contrariado por tão extranha demora, agora prolongada pela ausencia da regente, que estava em tratamento nas Caldas da Rainha, Jayme saudou com enthusiasmo a resurreição do constitucionalismo que ia inaugurar, pensava elle, uma nova epocha de felicidade para Portugal. O ministerio e a regente receberam com dolorosa surpreza a constituição que viera do Brazil, e adiavam de dia para dia não só o juramento da Carta, mas tambem todos os negocios que podessem augmentar o descontentamento dos miguelistas. De modo que não foi possivel a Jayme de Carvalho obter um despacho, simples na apparencia, mas que certamente desagradaria á communidade de Arouca, porque era transparente a intenção dilatoria da abbadeça. De repente, porém, Saldanha, governador das armas no Porto, Saldanha que, um anno antes, havia cavalgado em triumpho, na volta de Villa Franca, ao lado do infante D. Miguel, arvorou-se em defensor da Carta e principal propulsor do seu immediato juramento. Logo que isto constou em Lisboa, surprehendendo o espirito intransigente das primeiras familias da nobreza absolutista, com as quaes Saldanha estava aparentado, Jayme de Carvalho metteu-se n’um vapor, e sahiu de Lisboa para o Porto. O seu fim era obter a protecção de Saldanha, a quem logo tratou de procurar. Foi recebido sem demora, e expôz ao general o «estado da questão». Saldanha, caracter impressionavel e coração ardente, muito impetuoso e algo romanesco, acolheu com viva sympathia o jovem advogado, que implorava o seu valimento. O general disse resolutamente a Jayme de Carvalho: —Vou fazel-o acompanhar por um official da minha confiança, que irá encarregado de dizer á madre abbadeça o seguinte: «Ou ella entrega já a menina que acintosamente retém ou eu pessoalmente a vou lá buscar». Jayme cahiu de joelhos deante do general, abraçou-lhe as pernas, beijou-lhe a mão, não obstante Saldanha forcejar por levantal-o. N’aquelle momento historico, Saldanha era o papão dos miguelistas, que o odiavam mas temiam. A abbadeça de Arouca, vendo na grade um official bigodoso a intimar-lhe a ameaça de Saldanha, tremeu como varas verdes, amaldiçoou a Carta, mas entregou Ernestina de Carvalho, e o casamento effectuou-se alguns dias depois, em Evora. Jayme escreveu para Coimbra uma longa carta a José Maximo contando-lhe miudamente os trabalhos que passára para arrancar Ernestina do convento, a intervenção magnanima de Saldanha, e o triste destino de Margarida Candida que, segundo Ernestina lhe revelára, fôra illudida para professar. Acabava por congratular-se pela outorga da Carta, e estimulava-o a mais do que nunca exercer a sua influencia sobre a academia para combater á mão armada, se tanto fosse preciso, a opposição que, segundo se dizia, os reaccionarios preparavam. Saldanha conseguira impor-se á regente de modo a fazer jurar a Carta e a ser chamado ao poder como ministro da guerra. Os absolutistas preparavam, effectivamente, um golpe de mão. O norte e o sul do paiz, agitado por elles, acclamavam D. Miguel rei de Portugal. Em Traz-os Montes o marquez de Chaves soprava á fogueira da reacção. O Algarve, imitando o Alemtejo, fazia um pronunciamento militar, que Saldanha, já ministro da guerra, fôra suffocar pessoalmente. A academia de Coimbra não assistia indifferente ás luctas politicas do momento. José Maximo, o chefe constitucional da academia, entendera-se com o deputado Alvares Pereira, que tinha ido áquella cidade expressamente para mover os estudantes a armarem-se pela defesa da Carta. Não é facil imaginar a actividade, o zelo, o enthusiasmo, que José Maximo desenvolveu na organisação do batalhão de voluntarios academicos, cujo commando fôra confiado ao major de milicias de Tondella, Feio de Figueiredo. José Maximo escreveu a frei Simão de Vasconcellos narrando-lhe tudo o que se estava passando em Coimbra, e o frade, muito exaltado pelo novo advento do constitucionalismo, respondia-lhe de Cezár: «Se o batalhão academico carecer de um capellão, aqui estou eu, não precisam procurar outro. Tanto me faz ir combater inimigos ao longe como arcar com os de ao pé da porta, que não levam comigo a melhor.» Já não era o mesmo homem prudente, que tinha aconselhado José Maximo a abster-se das luctas politicas. Renascêra n’elle o fogoso revolucionario; a liberdade embriagava-o como um vinho capitoso. A perseguição que lhe faziam os seus visinhos absolutistas de Cezár irritava-o, enfurecia-o. Na casa do Outeiro havia uma pessoa que, no fundo do coração, amaldiçoava a liberdade resuscitada: era Anninhas, que tremia pela sorte de José Maximo ao aferil-a pelos acintes com que os visinhos de Cezár inquietavam o frade. Mas não ouzava expôr os seus receios na presença do irmão e das irmãs, a quem o espectro de Joaquim Maria, a victima da liberdade, a todo o momento clamava: «Vingança! vingança!» O deputado Alvares Pereira, que era tambem coronel do exercito, dizia vendo dia a dia o infatigavel ardor com que José Maximo trabalhava na organisação do batalhão academico: —Que pena que este rapaz não seja militar! É uma vocação perdida! Manuel Rodado, bem como outros estudantes absolutistas, fugiu de Coimbra. Quando se notou a sua falta, disse José Maximo: —O _Narciso_ fez mal em fugir: eu nem dava por elle! O batalhão dos voluntarios academicos marchou para Vizeu, a reunir-se, na Beira, ao exercito de operações. Os reaccionarios foram batidos, e tiveram de refugiar-se em Hespanha, onde achavam protecção. Voltaram de novo, avançando pelo Minho, ameaçando o Porto. Foram batidos segunda vez pelos constitucionaes portuguezes, porque a divisão ingleza, que o governo reclamára, chegou até Coimbra, parou ahi, e d’ahi tornou para Lisboa sem tomar parte na lucta. A Carta triumphára, e o batalhão academico recolheu a Coimbra, coberto de louros. José Maximo, que se tinha batido com louco denodo, era o heroe do dia, o alvo de ruidosas manifestações por parte dos academicos. Corações enthusiastas, poetas da politica, como esses generosos rapazes se illudiam com o seu proprio triumpho! O systema constitucional apenas vigorava nominalmente. Funccionavam todas as velhas molas do antigo regimen. Saldanha, affastado temporariamente do ministerio por motivo de uma longa doença, já não era um obstaculo, que impedisse o passo á reacção descarada. José Maximo, o grande vencedor academico, e os seus collaboradores nas victorias do batalhão dos voluntarios, soffreram, dentro de pouco tempo, a primeira disillusão. O conservador _Cabaças_ recusou-se a pagar aos estudantes subsidiados as mezadas que elles recebiam pelos cofres da Intendencia e da Casa Pia. O reitor não quiz mandar-lhes abonar as faltas. Que atormentado triumpho! Os vencedores pareciam vencidos, e os vencidos vencedores. Mas Saldanha, restabelecido, voltára de novo á gerencia da pasta da guerra, para se demorar pouco tempo, porque nas regiões do poder a corrente predominante era a absolutista. José Maximo lembrou-se de escrever a Jayme de Carvalho pedindo-lhe que sem demora fosse a Lisboa interceder pelos estudantes junto de Saldanha. Jayme partiu immediatamente. Saldanha reconheceu-o, e perguntou-lhe com alacridade ironica: —O que?! Tornaram-lhe a roubar sua esposa?! D’isso são elles capazes! Jayme sorriu, e explicou a triste situação dos estudantes de Coimbra. Saldanha obrigou os collegas a consentirem, muito contra sua vontade, que fossem abonadas as faltas e pagos os subsidios aos estudantes. Mas esta e outras imposições do ministro da guerra exasperaram a tal ponto os séctarios do absolutismo, e a propria regente, que Saldanha foi demittido e os tumultos, a que a sua demissão déra logar em Lisboa, duramente reprimidos. A perseguição aos liberaes era aberta, clara, e temerosa. O miguelismo triumphava á sombra da Carta. Mais um passo, e o absolutismo derrubaria o anteparo da Carta, por traz do qual se acobertava. Esse passo deu-o imprudentemente, talvez forçado pelas exigencias da diplomacia, o proprio D. Pedro, nomeando D. Miguel seu logar-tenente no reino e escolhendo-o para marido de sua filha. D. Miguel jura a constituição, assigna o contrato esponsalicio, e chega a Lisboa no dia 22 de fevereiro de 1828. XVII O crime do Cartaxinho Ao mesmo tempo, porém, que altamente nos pronunciamos contra os individuos que praticaram tão grande crime, temos obrigação de declarar em testemunho á verdade que na sociedade dos «divodignos» não se decidiu nem se tratou da morte dos membros das deputações. Joaquim Martins de Carvalho—«Apontamentos para a historia contemporanea.» Os primeiros actos de D. Miguel como regente, conjugados com o enthusiasmo popular que o saudava como rei, deram rebate nos arraiaes do constitucionalismo, causaram uma anciosa desconfiança nos espiritos mais exaltados. Entre as sociedades secretas de Coimbra avultava a dos _Divodignos_, que funccionava na rua do Loureiro, junto ao Arco de D. Jacinta, e que na sua maior parte era constituida por estudantes. José Maximo, disputado por todos esses clubs revolucionarios, a todos pertencia, e não poucas vezes teve de arriscar a sua influencia pessoal para conter os animos fogosos dos confrades e evitar inuteis desatinos de paixão politica. A chegada de D. Miguel, os seus primeiros actos como chefe do estado e as manifestações calorosas com que a opinião publica o recebêra, atiçaram a indignação das sociedades secretas de Coimbra, onde todas as noites eram proferidos discursos violentos e gizados planos audaciosos. Os lentes absolutistas, a cujos ouvidos chegavam os eccos ameaçadores dos clubs maçonicos, tratavam, por sua parte, de cortar os vôos aos estudantes demagogos, como elles os classificavam. Assim pois, sob pretexto de dar as boas-vindas a D. Miguel, resolveram, de accôrdo com o cabido, enviar deputações a Lisboa. Mas logo correu entre os estudantes que a fim occulto da jornada dos cathedraticos era apresentar a D. Miguel uma relação dos academicos liberaes, que deviam ser riscados e perseguidos. Reuniram-se immediatamente todas as sociedades secretas para tratar do assumpto. José Maximo entendeu dever assistir, de preferencia, á sessão dos _Divodignos_, por ser o club mais ardente e numeroso, portanto aquelle que offerecia maior perigo de desvairamento. Accrescia tambem uma circumstancia especial para inquietar o espirito de José Maximo com relação á assemblea dos _Divodignos_. Antonio Maria das Neves Carneiro, seu patricio e amigo, então alumno do segundo anno de mathematica, era não só um dos academicos liberaes mais exaltados, mas tambem inimigo pessoal de um dos lentes da deputação. Ora se taes motivos o faziam temido e perigoso, na materia que se ventilava, ninguem melhor do que José Maximo podia dispôr de auctoridade bastante a reprimil-o e contel-o. Portanto, de combinação com o sextanista da faculdade de leis, Francisco Cesario Rodrigues Moacho, que era o presidente da sociedade dos _Divodignos_, José Maximo, então no seu quinto anno, concorreu á sessão de animo feito para abafar as tempestades de colera, que certamente esbravejariam na bôca de Antonio Maria. Como se esperava, foi este estudante que apresentou e arrebatadamente sustentou uma proposta incendiaria, cuja summula se cifrava em que uma delegação dos _Divodignos_ fosse arrancar das mãos dos lentes, no caminho, não só as felicitações de que eram portadores, mas tambem, e principalmente, a lista das proscripções academicas. José Maximo combateu tenazmente a proposta. —De que servirá, perguntava elle, apprehendermos os papeis que nos denunciam culpados, se esses papeis podem ser facilmente substituidos por outros, com a circumstancia aggravante para nós de havermos violentamente inutilisado os primeiros? Pensais, acaso, que a deputação se não defenderá á mão armada contra a nossa investida? O que irá, pois, fazer a commissão dos _Divodignos_? Matar ou morrer: eis o triste dilemma, a deploravel consequencia a que forçosamente havemos de chegar. —Terás tu mêdo pela primeira vez na tua vida? atalhou ironicamente Antonio Maria. Se tens mêdo, fica. A assembléa não applaudiu a ironia, mas, fanatisada pela eloquencia do violento orador não a castigou com o menor signal de reprovação. José Maximo, a quem a popularidade faltára n’esse momento, como sempre tem acontecido aos chefes politicos, por mais adorados que hajam sido, ficou profundamente maguado com o áparte ironico de Antonio Maria. Ter mêdo, elle! Nunca o tivera; não o teria jámais. Tantos annos de prestigio estavam a pique de ser prejudicados por uma simples phrase. Repelliu-a, pois. —A minha lealdade, exclamou elle com grande vehemencia, obrigou-me a mostrar-vos os perigos da empreza; mas o meu brio pessoal, injustamente aggredido, obriga-me tambem a dizer-vos que, aconteça o que acontecer, estou prompto a acompanhar-vos. Estas palavras causaram um movimento de applauso na assembléa. José Maximo sahiu d’ali rehabilitado, mas triste, apprehensivo. A deputação mixta da universidade e do cabido partiu de Coimbra na tarde do dia 17 de março. Á noite, depois das dez horas, partiram por sua vez os estudantes. Antonio Maria, alma d’aquella empreza, tratou de evitar que não faltasse nenhum dos que para desempenhal-a se tinham offerecido. Á ultima hora, o estudante Urbano de Figueiredo parecia arrependido, pretextou ter muito que estudar para se habilitar a fazer acto. Antonio Maria replicou offerecendo-se para leccional-o, e allegando que seria apenas ida por volta. José Maximo partira só, pensativo, contrariado por um presentimento doloroso. Davam onze horas na Sé quando Antonio Maria sahia pela estrada de Lisboa, acompanhado do estudante Domingos Joaquim dos Reis. Ambos levavam espingardas, para justificar o disfarce de uma supposta caçada na Arrifana. Antonio Maria vestia esse celebre fato, que tanto o havia de comprometter depois: fardêta de saragoça prêta, á caçadora, calças brancas, chapeu redondo de copa alta; dois punhaes no cinto. A deputação dos lentes e dos conegos foi pernoitar a Condeixa. Os estudantes chegaram por alta noite á quinta do Freitas, proximo á villa, e ahi esperaram que amanhecesse. Nenhum d’elles sentia cansaço nem somno: e José Maximo menos que nenhum. Estava inquieto. —Somos treze! pensava attribulado, n’uma torturada excitação nervosa. Notára que os companheiros levavam armas de munição, com cartuxos embalados, e punhaes. O aspecto d’este arsenal ambulante confrangera-o. —Tu não vens armado? perguntou-lhe Antonio Maria. —Não pensei n’isso, respondeu José Maximo. Não venho para matar. —Mas, segundo o teu famoso dilemma, podes vir para morrer. Péga sempre um punhal para te defenderes, se fôr preciso. Isto disse Antonio Maria tirando do cinto um dos dois punhaes e dando-o a José Maximo, que o recebeu com indifferença. Aos primeiros alvores da manhã, os estudantes sahiram da quinta para antecipar-se á passagem dos lentes. José Maximo lembrou-se de que esse dia era uma terça feira, e esta ideia mais contribuiu para inquietar o seu espirito propenso a superstições. Chegando ao Cartaxinho, uma legua ao sul de Condeixa, os estudantes fizeram alto. Tapadas as caras com lenços, esperaram emboscados. Das sete para as oito horas da manhã, avistaram quatro caléças, ladeadas por cavalleiros, e acompanhadas por gente de pé. Na primeira caléça ia o deão Antonio de Brito e Castro com um criado, e outro á estribeira; na segunda, o conego Pedro Falcão Cotta e Menezes com um sobrinho, e outro a cavallo; na terceira o doutor Matheus de Sousa Coutinho, lente de canones, com o doutor Jeronymo Joaquim de Figueiredo, lente de medicina, acompanhando-os a cavallo José Candido, sobrinho do doutor Matheus; na quarta ia o doutor Antonio José das Neves e Mello, lente de philosophia, com um filho, já bacharel. Seguia-se a cavallo o official da imprensa da universidade, Francisco de Assis e Mattos. Fechava a comitiva a récova das bestas de carga, que os arrieiros e criados acompanhavam a passo. Quando a deputação se aproximou, os estudantes correram sobre ella, investindo com as armas engatilhadas. Os primeiros a avançar foram Antonio Maria e José Maximo, ambos por differente motivo: o primeiro, por não poder conter a sua impaciencia; o segundo, para não parecer cobarde. Fizeram apeiar os viajantes, e obrigaram-n’os a subir uma collina, protegida por um vasto pinhal, a léste da estrada. Ahi retiveram os caleceiros, arrieiros e criados, emquanto os lentes e demais pessoas eram conduzidos para uma baixa, a maior distancia, sitio sombrio e solitario. Escoltados uns e outros, foram os criados e arrieiros intimados a ir buscar todas as cargas, malas e bahús para junto do pinhal. Obedeceram. E os estudantes revistaram as bagagens, apprehendendo os papeis e valores que ellas continham. José Maximo, immovel, não tocou nas bagagens; nem olhava para ellas. Era tamanho o terror dos assaltados, que nenhum d’elles ouzava resistir. Derrubada e manietada com cordas a criadagem, voltaram-se as attenções dos academicos para o pessoal superior da caravana. Uma voz perguntou: —Devem tambem ser amarrados? —Não! gritou José Maximo. Mas outra voz replicou com azedume: —Devem ser seguros a punhal e tiro. E logo explodiram trez descargas á queima-roupa, fulminantes. O doutor Matheus e o doutor Figueiredo cahiram varados instantaneamente. O instincto de conservação sobrelevou então a surpreza, o terror dos restantes assaltados, que travaram desesperada lucta com os assaltantes. Fôra medonha a carnificina, successivas as descargas, e os golpes de punhal. Os dois membros do cabido conimbricense, o deão e o conego, defendiam-se com valoroso desespero. Por isso o grosso do bando academico convergiu sobre os dois: o deão recebeu vinte e sete ferimentos, feitos com quartos, alguns grãos de chumbo e punhal triangular; o conego foi alcançado vinte vezes pelas armas dos _Divodignos_. José Maximo, n’uma allucinação de intrepidez, cobria com o seu vulto o corpo do doutor Neves, para livral-o da morte, e ao mesmo tempo furtava-se aos golpes com que era atacado, por supporem alguns dos da deputação que elle disputava esse lente como prêsa em que quizesse cevar-se. A sangrentissima lucta foi presenceada, do alto de um outeiro, por uma mulher da Venda Nova, que principiou a gritar. Como era dia de mercado em Condeixa, passava gente, boieiros e lavradores, que logo acudiu. O povo corria, vozeando, na direcção do logar do conflicto. Os estudantes, vendo-se ameaçados de perto, trataram de fugir, mas como casualmente transitasse pela estrada real o general da Beira Alta, Agostinho Luiz da Fonseca, acompanhado pelo filho e escoltado por alguns soldados de cavallaria, foram perseguidos pelos soldados e povo. Nove dos academicos cahiram, não sem alguma resistencia, em poder dos seus perseguidores. Nenhum d’elles era José Maximo. O povo e a cavallaria, com o general á frente, bateram em todas as direcções os arredores do Cartaxinho, procurando os outros quatro estudantes, que não poderam ser encontrados. Os presos foram recolhidos á cadeia de Condeixa, e vigiados por uma enorme multidão, que a todo o momento ameaçava linchal-os. O mercado da villa e as granjas mais proximas tinham-se despovoado completamente, logo que soou a noticia d’essa horrorosa tragedia. O general Fonseca, reconhecendo que não era possivel encontrar os quatro fugitivos, mandou para junto da cadeia alguns soldados da sua escolta, a fim de conterem o povo, e enviou uma ordenança a Coimbra, a pedir o immediato auxilio de uma força de caçadores, que aliás não se fez esperar. José Maximo da Fonseca fugiu só, como tinha sahido de Coimbra. Foi correndo n’uma carreira cega, desesperada. Por muito tempo ainda ouviu o clamor do povo, que perseguia os fugitivos. Depois, como a distancia augmentasse, rodeiava-o apenas o grande silencio de montanhas, que elle não conhecia. Corria sem destino, evitando sempre as povoações, e obliquando instinctivamente para éste como a procurar salvação na fronteira de Hespanha. Exhausto, arquejante, faminto, com os pés golpeados escorrendo sangue, anoiteceu-lhe n’um pinheiral cerrado. O cansaço vencera-o. Atirou-se para o chão. Pouco lhe importaria n’aquelle momento que o encontrassem e prendessem. Mas devia estar já muito longe de Condeixa, comquanto não soubesse onde estava. Estendera-se sobre a terra dura, eriçada de cardos, especie de leito de Procusto, mas as dores da alma sobrepujavam, n’aquella hora tremenda, as dores do corpo. Deitado de recovo, não podia adormecer, apesar de extenuado. Pensava, começava a fazer-se-lhe nitida a desesperada situação, que o destino lhe preparára. Todos os trabalhos da sua revôlta existencia desfilavam n’um cortejo funebre, redivivos por uma grande lucidez de memoria, e a imagem de Anna de Vasconcellos, triste e lacrimosa, n’uma angustia abafada, sem blasphemias e desesperos, apparecia como no topo de um Calvario ideial, ao lado de outra mulher, que suspirava n’um anceio profundo, como o do naufrago que respira a custo. Esta mulher conhecia-a José Maximo, divisava-lhe as feições, via-a como se estivesse ali presente: era sua mãe. E entre elle e ellas estava um abysmo sombrio e vasto como o fundo do mar. Era a eternidade, o «nunca mais», o impossivel, a morte em nome da lei, mais hoje ou mais ámanhã, em qualquer parte, por denuncia, perseguição, ou acaso. A noite estava escura. O rumor dos campos dezertos, esse sussurro, vago e confuso, que parece ser a respiração da terra adormecida zumbia-lhe aos ouvidos, aturdia-lhe o cerebro como o revolutear de um vespeiro. De espaço a espaço a aragem ullulava na rama dos pinheiros imitando os gemidos de alguem que devia estar chorando ali perto... Eram ellas, as duas mulheres queridas, acorrentadas em espirito ao seu infortunio inexcedivel. José Maximo só a si proprio accusava da sua desgraça. Deus avisara-o, por muitas bôcas e por muitos prenuncios, mas elle não lhes déra ouvidos, nem mesmo ás meigas supplicas de Anna de Vasconcellos. A cantiga que fallava da faya, a folha do trevo, o numero 13, a coincidencia da terça feira tinham sido, de certo, pensava elle, outros tantos avisos, que despresára. Despenhára-se voluntariamente, e, no fundo do abysmo, sentia-se abandonado de Deus, que não podia absolvel-o depois de o ter avisado. A fadiga fizera-lhe perder a consciencia de si mesmo. Cahira n’uma somnolencia povoada de visões sinistras, cortada de sobresaltos e convulsões, de gemidos angustiosos. Como se fosse accordado por surpresa, abriu os olhos cheio de afflicção, circumvagou um olhar espavorido, attentando nos pinheiros que no primeiro momento lhe pareceram outros tantos aguazis gigantes, que o tivessem cercado durante o somno. Vinha rompendo a manhã. Levantou-se a custo, estonteado por vertigens, que o cegavam. Sentia fogo no cérebro. Palpou a fronte, que escaldava. Forcejou por caminhar, fugir. Durante meia hora arrastou-se a passos incertos, agarrando-se por vezes ás urzes do caminho para não cahir ao chão. A região montanhosa da Beira Baixa devia denunciar-se já na corda sinuosa dos montes, no relevo macisso das serras. Mas José Maximo não via, não podia olhar fito. Os olhos fechavam-se-lhe n’uma languidez nublosa, vidrada. Iria cahir prostrado por um grande desfallecimento, quando avistou um pastor, sentado no alto de um rochedo. Acenou-lhe com a mão, chamou-o. Depois sentou-se, recostou, exanime, a cabeça. O pastor, vendo-o desfallecido, ergueu-o ao hombro, levou-o para junto dos penedos, que davam sombra a um trecho do monte. Deitou-o ahi. José Maximo dormiu longas horas. Quando ao fim da tarde accordou, tinha sêde. Bebeu agua da cabaça do pastor. Reanimou-se. Sentia-se fatigado, mas a febre tinha diminuido. Encarando então no perfil duro das montanhas, que se desenhavam ao longe, perguntou ao pastor que serra era aquella. —É a Gardunha, senhor. José Maximo ficou espantado. Não tinha reconhecido essa longa serra, que é uma ramificação do Herminio, e que se ergue alterosa no Fundão, sua patria. Obedecendo á suggestão inevitavel que a terra natal exerce sobre os criminosos, foi caminhando na direcção d’essa serra longinqua sem comtudo querer demandar o Fundão, onde tinha uma familia que perdêra. Comeu o pão negro e umas azeitonas, que lhe tinha dado o pastor. E ganhou forças para andar durante quasi toda a noite. Quando amanheceu o dia 20 de março, emboscou-se n’um pinhal, para descançar, e para evitar a luz do dia. O sol, ascendendo n’uma serena effusão de luz, dava-lhe o desespero que sentem as almas attribuladas quando se defrontam com a paz eterna da natureza, insensibilidade ou despreso, que justifica a eternidade da creação. Se ella compartisse das nossas dôres quotidianas, acabaria por soffrer e envelhecer como nós mesmos. Passou ahi todo o dia pensando na sua desgraça irremediavel. Parecia-lhe que a visão de Anna de Vasconcellos ficava já a uma distancia infinita, insuperavel, mas como que sentia bater mais perto o coração de sua mãe. Quando anoiteceu, poz-se de novo a caminho, sem saber ao certo para onde. Ao romper da manhã do dia 21 tornou a esconder-se. Ao fim da tarde, seguiu jornada. Teria andado meia legua, quando sentiu a certa distancia o trote pesado de um cavallo. Saltou da estrada para o monte, e poz se á espreita, agachado. Viu que o cavalleiro trazia calças brancas e chapeu redondo de copa alta. Lembrou-se de ter visto alguem assim vestido, havia pouco tempo. Continuou a espreitar, e reconheceu Antonio Maria. Levantou-se. O fugitivo, que cuidadosamente vinha olhando a um e outro lado da estrada, viu-o logo. Reconheceu-o tambem. A surpresa dos dois foi igual. —Como ficaste tu para traz?! perguntou José Maximo. Antonio Maria parou o cavallo, depois de se ter certificado bem de que não era seguido. Contou que tinha ficado escondido na quinta do Freitas, d’onde sahira no dia anterior, já de noite, acompanhado até ao romper da manhã por um guia. Historiou como perdêra no pinhal de Palha Canna a sua fardeta, que levava ao hombro quando fugia, os seus papeis, o punhal, e a bolsa de coiro, e como esses objectos poderam ser encontrados por dois homens, que dedicadamente o haviam protegido. —Para onde vais tu? perguntou-lhe José Maximo. —Para o Fundão. E tu? —Eu sei lá para onde vou?! Tu tens familia no Fundão, mas eu posso dizer que a não tenho já. Insistiu Antonio Maria para que montasse com elle no mesmo cavallo. —Vais derreado. Anda comigo, que este cavallo poderá por emquanto com nós ambos. Fraca resistencia oppoz José Maximo. Aquelles dois homens eram attraidos pela mesma suggestão. Em caminho, não trocaram uma unica palavra sobre os acontecimentos do dia 18. José Maximo evitou esse doloroso assumpto, causa da sua desgraça. Que differença entre José Maximo e os estudantes presos, que a essa mesma hora, na cadeia de Coimbra, onde tinham entrado no dia 19, só lembravam o nome de Antonio Maria para o amaldiçoar! —Malvado homem, que nos metteu n’isto! diziam elles carpindo a sua propria desgraça. Seriam dez horas da noite, quando chegaram ao Paul. Viram a cabana solitaria de um cantoneiro. —Precisamos descançar aqui algum tempo. Se não fôr assim, disse Antonio Maria, o cavallo acabará por negar se. Vamos bater á porta. Bateram. O cantoneiro perguntou quem era. Responderam que dois rapazes do Fundão, que pediam pousada. O cantoneiro, a quem aquella voz não pareceu extranha, accendeu a candeia, pendurou-a, e veio abrir. —Aqui tens o nosso cavallo em penhor da nossa boa fé, disse Antonio Maria entregando-lh’o. —Vou desapparelhal-o, respondeu o cantoneiro, e amarral-o áquelle pinheiro acolá. —Não, replicou Antonio Maria, deixa-o estar sellado, mas dá-lhe umas sopas de vinho, se podes. O cantoneiro foi preparar as sopas. Quando entrou, fez maior reparo nos dois viajantes, que já estavam deitados sobre uns molhos de palha sêcca, ao lado de um caldeireiro ambulante, profundamente adormecido. A cabana do cantoneiro era um albergue de viajantes miseraveis. —Mas não me engano! apostrophou elle, pegando na candêa, e elevando-a á altura dos olhos. Vocês são... Antonio Maria poz sobre o nariz o dedo indicador da mão direita, intimando silencio. Pouco depois da meia noite, José Maximo, que não pudera adormecer, rastejou sobre a palha para accordar Antonio Maria e o cantoneiro. Sahiram os trez a desamarrar o cavallo. —Aconteceu-nos uma grande desgraça, disse Antonio Maria ao cantoneiro. Não nos denuncies. E, descalçando um dos sapatos, tirou d’elle dinheiro em papel,—um papel humedecido e rôto. —Isso chega, disse José Maximo ao cantoneiro, para repartires com o caldeireiro o que elle entender que vale a sua ferramenta, porque a vou levar comigo. Dás licença, Antonio? Eu não trago dinheiro. —Trago eu. Mas para que queres tu uma tão incommoda bagagem? observou Antonio Maria. José Maximo não respondeu. O cantoneiro prometteu guardar silencio: lembrou que conhecia os dois desde pequenos, e que por caso algum quereria perdel-os, visto ter-lhes acontecido uma grande desgraça. Os dois estudantes montaram a cavallo. Partiram. Pelo caminho Antonio Maria tornou a perguntar a José Maximo para que levava elle os utensilios do caldeireiro, que eram pesados e o embaraçavam. —É porque tu, no Fundão, tens familia, que te proteja, e eu não tenho. Seguirei logo para Hespanha, feito caldeireiro ambulante. Entrando ainda de noite no Fundão, foram bater á porta da familia de Antonio Maria, cujo pae, medico do partido ali, ouviu com dolorosa attenção a narrativa da desgraça do filho, sem todavia o repellir. Combinou-se que ambos fossem ficar, por cautella, a casa de uma visinha, e que ambos seguiriam depois para Hespanha, cada um por caminho differente. —Eu acompanhar-te-hei para guiar-te, disse amoravelmente o pae de Antonio Maria ao filho. —Só eu não tenho quem me guie! pensou José Maximo. E, n’um relance de pungentissima angustia, disse, muito commovido, ao medico: —Vossa Senhoria vae fazer-me decerto o ultimo favor que tenho a pedir-lhe. Diga a minha mãe, sem que meu pae o suspeite, que fujo para Hespanha, e que esteja á janella logo que nasça o sol. Quero vel-a pela ultima vez. O pae de Antonio Maria sahiu immediatamente. Ao romper da manhã José Maximo passou, de ferramenta ao hombro, por deante da casa em que nascêra. A mãe, immovel d’encontro ao peitoril, viu o filho, e cahiu desamparada no chão. José Maximo ouviu o baque do corpo, e quiz abrir a porta da sua casa, entrar. Mas, sentindo n’esse instante a voz sobresaltada do pae, deitou a fugir. N’uma _posada_ da fronteira, amarrou uma faixa sobre os olhos, deitou polvora no fundo de um prato, incendiou-a, e inclinou o rosto sobre a chamma. Queimou as faces para desfigurar-se. —Do homem que eu fui e que não posso tornar a ser, disse elle comsigo mesmo, nada mais restará do que a consciencia da propria desgraça. Se minha pobre mãe e Anninhas forem obrigadas a vêr a minha cabeça pendurada da forca, não me reconhecerão ao menos, duvidarão de que seja eu... E, pegando d’um canivete, retalhou com fundos golpes, estoicamente, as faces crestadas. Depois internou se na Extremadura hespanhola. XVIII Væ victis Sofframos como homens, e seremos corôados como vencedores. D. Frei Amador Arraes—«Dialogos». Havia na casa do Outeiro um criado, que a familia de frei Simão distinguia entre todos os outros. Chamava-se Francisco José Marques, mas era sempre tratado pelo appellido. Natural da freguezia de Sanfins, comarca da Villa da Feira, entrára muito novo ao serviço de José Bernardo Pereira de Vasconcellos, e pelo seu genio alegre e humilde fizera-se estimar pelos amos, que o mandaram ensinar a ler e a escrever. Ninguem tinha tido tanta paciencia como elle para trazer ao collo e adormecer nos braços a pequenina Anninhas durante os dias da primeira infancia. Quando a menina chorava, o Marques acudia muito solicito e dedicado a distrail-a e acalental-a. Passeiava-a longo tempo, cantarolando: Dorme, dorme, Minha menina Rú-Rú. Cantam os anjos E dormes tu. Era elle sempre o primeiro a desculpal-a nas suas perrices, e procurava entretel-a contando-lhe historias, que ella a principio ouvia com pouca attenção, depois com muito interesse. E quando os olhos da menina amorteciam na languidez do somno, o Marques, já cansado de contar historias, ia dizendo de vagar, espacejando lentamente as palavras, ás vezes até as syllabas: Era uma vez Uma menina chamada Victoria. Morreu a menina... Acabou-se a historia. Anninhas já o não ouvia: tinha adormecido. De todas as pessoas da casa a mais estimada pelo Marques era, pois, a _sua menina_, como elle dizia orgulhosamente. Mas toda a familia do Outeiro o considerava, pela sua dedicação á casa, como o primeiro dos criados,—mais um amigo do que um serviçal. O genio alegre do Marques, a agudeza de espirito que revelava em muitas observações e muitas phrases de uma graça desaffectada, quasi ingenua, tornavam-n’o agradavel no trato domestico, as pessoas da casa riam-se de ouvil-o, chegavam a puxar-lhe pela lingua, quando estava de maré, o que quasi sempre acontecia. Identificado com a familia do Outeiro, o Marques era liberal como os amos, sem comtudo saber muito bem no que consistia a liberdade constitucional, e quaes fossem as suas vantagens politicas sobre o absolutismo. Mas seguiria frei Simão para onde elle fosse, prompto a defender a causa que elle defendesse. Depois que veio D. Miguel, o Marques disse uma vez a frei Simão: —Papeis, nas mãos de ignorantes como eu, apenas costumam servir para embrulho; mas se fôr preciso, deixar-me-hei embrulhar por um certo _papel_. Este _papel_ era a Carta. —O quê?! perguntou frei Simão. Eras capaz de assentar praça? —Se Vossa Reverencia me dissesse—_Marcha_, eu faria logo: Um, dois, trez. E fingia marchar, pondo ao hombro um cabo de vassoura, á laia de espingarda. No dia 20 de março andava frei Simão regando as flores do seu pequeno jardim; o Marques trabalhava no pomar contiguo. Anninhas estava debruçada no parapeito do pateo, que sobranceava o pomar. Na casa do Outeiro, uma atmosphera de perigos e sobresaltos cerrava-se ameaçadora em torno da familia Vasconcellos. A vida era ali mais triste do que nunca. Depois que D. Miguel chegára, e dissolvêra as côrtes, os absolutistas de Cezár tinham levado a sua ousadia até ao ponto de propositadamente irritar frei Simão. Se não iam mais longe, se não tinham chegado ainda á provocação directa, era porque temiam a valentia do frade. Elles bem sabiam que frei Simão fôra uma vez a Macieira de Cambra, terra de valentões, castigar por sua propria mão um homem, que acintosamente lhe havia enredado um pleito de familia. Fôra, castigára o homem, e voltára incolume a Cezár. Como esta façanha, contavam-se outras. De modo que os visinhos absolutistas, apesar de espicaçados por Ignacio da Fonseca, não tinham passado ainda da provocação indirecta. Por exemplo. Uma tarde passava frei Simão á Fonte da Pipa, perto do matto de Algiboa, quando uma voz rompeu a cantar ironicamente: É certo, e mais que certo D. Miguel ser nosso rei. É certo, e mais que certo, Que assim é que manda a lei. Pareceu a frei Simão que era a voz do Manel Zarôlho. Parou logo, procurando descobrir a pessoa que cantava. Mas a voz calou-se, e o frade seguiu pausadamente seu caminho. Eram prenuncios de tempestade imminente, que a ninguem da familia do Outeiro passavam despercebidos. A todos se antolhava ameaçador o futuro. Era visivelmente chegada a vespera de graves acontecimentos. Por isso tambem Francisco Marques parecia agora, mais do que nunca, empenhado em desviar os tristes presentimentos e vagos receios, que pesavam sobre o espirito da familia do Outeiro. Vendo Anninhas debruçada no parapeito do pateo, disséra jovialmente o Marques: —Olha a minha menina como está tristonha! Pois antes das vindimas ha de estar mais alegre. Ó sr. frei Simão, por que será que chamam _cabra_ ao sino que em Coimbra manda os estudantes? Anninhas sorriu levemente. —Como sabes tu isso? perguntou frei Simão. —Foi o sr. José Maximo que m’o disse uma vez. Mas eu fiquei a scismar n’aquelle nome. Será porque os cinco annos dos estudos teem tantos espinhos como as silvas, que as _cabras_ costumam roer? Frei Simão e Anninhas riram do jovial desconchavo. —É porque o sino berra como uma _cabra_, disse alegremente o frade. Se não fôr isto, é porque está empoleirado na torre como as _cabras_ no pinaculo dos rochedos. —Ah! tornou o Marques, isso quadra-me. Mas pena é que não esteja tão alto, que se não possa vêr de Cezár!... Tiniu agora mais crystallino o riso de Anninhas, a quem as facécias do Marques distraíam das vagas apprehensões com que ella pensava no futuro e sempre em Coimbra desde que José Maximo tornára a envolver-se nas questões politicas da academia. Bateram á _Porta vermelha_. Anninhas retirou-se para dentro de casa. —Vae vêr, ó Marques, disse frei Simão baixando a voz. Mas como o criado se demorasse a conversar fôra da porta com a pessoa que tinha batido, frei Simão perguntou de rijo: —Ó Marques! quem está ahi? —É o Zé de Oliveira, por causa da réga. —Diz-lhe que pode levar a agua amanhã. O Zé de Oliveira era um visinho, um amigo, a quem frei Simão cedia, alguns dias na semana, a agua precisa para a réga. Voltou o Marques, apparentemente tranquillo. —Ora o diabo do homem! disse elle olhando para as janellas sobranceiras ao pomar, não esteve comigo ás voltas, que sim e mais que tambem, que ha ahi uma certa cachopa, que me quer fallar casamento?! —Ainda ias a tempo! respondeu frei Simão. Mas como reconhecesse que ninguem os estava ouvindo, o Marques disse a meia voz: —Ó sr. frei Simão, faça favor de vir aqui vêr esta amendoeira como se vae a pôr bonita. Está aqui está toda coberta de flor. —Tenho mais que fazer agora. —Mas faça favor, que tem aqui uma _cursidade_ (curiosidade). Frei Simão foi, um pouco contrariado, por comprazer com o Marques. —Então o que é? perguntou elle entrando no pomar. —Faça favor de vir vêr ao perto. E como frei Simão se aproximasse, disse-lhe baixinho: —O Zé de Oliveira trouxe uma ruim noticia. —O que foi?! perguntou frei Simão com interesse. —Disse constar que os estudantes de Coimbra mataram ha dois dias em Condeixa uns lentes que iam para Lisboa. —Ora essa! exclamou frei Simão. Será isso verdade?! —Ha de ser, senhor, porque as ruins novas são sempre certas. —E fallou-te no sr. José Maximo? —Não, senhor. Disse que tinham sido os estudantes. —Cala-te, e vae ouvir o que se diz por ahi. Frei Simão ficou muito inquieto. O Marques sahiu, e voltou ao cabo de uma hora. —Está tudo cheio do tal feito dos estudantes. Fallei com o _Bréca_ (era um criado de Ignacio da Fonseca) que me contou que o amo, ao saber a noticia, tinha dito que o sobrinho ainda havia de passar grandes trabalhos por causa da politica. Longe vá o agouro! —Mas fallou-te no sr. José Maximo? —Não, senhor. Só me disse isto, e eu voltei-lhe as costas. —Ó Marques, tem paciencia, vae a Coimbra saber o que se passa, disse frei Simão muito apprehensivo. O Marques obedeceu como um cão; dir-se-hia que d’ali a Coimbra era um pequeno passeio, tanto á pressa o Marques se preparou para sahir. As noticias que elle trouxe, vinte e oito horas depois, eram más. No dia 19 tinham chegado a Coimbra, presos, nove estudantes por terem assassinado dois lentes no Cartaxinho. Segundo ouviu, o povo, quando elles chegaram no meio da escolta, enchia a Ponte, e seguiu-os pela Couraça de Lisboa acima em tamanha quantidade, que não caberia um alfinete. Nenhum dos presos era o sr. José Maximo, mas elle não estava em Coimbra, diziam que tinha fugido. —Mas está criminoso tambem? O Marques respondeu com desalento: —Dizem que sim, senhor. —Que desgraça! que desgraça! exclamou frei Simão. —Eu fallei até com a servente. Disse-me que o sr. José Maximo tinha sahido de casa no dia 17 á noite, e que ainda não tinha voltado, porque, segundo os estudantes contavam, andava a monte. —Meu Deus! Olha, Marques, eu vou a Coimbra. Toma sentido. Aqui, na minha ausencia, não entra ninguem. É preciso que as senhoras não fallem com viv’alma. —Vá Vossa Reverencia descansado, respondeu o Marques abafando de tristeza. —Descansado! repetiu frei Simão. O Marques não tivera coragem para dizer o mais, para contar tudo. Elle tinha ouvido em Coimbra que José Maximo e outro estudante, tambem do Fundão, foram os primeiros a assaltar as caléças em que os lentes iam. Preferia ter morrido pelo caminho, arrebentado de tristesa, mas Deus não lhe fizera a vontade. Vêr assim desgraçada a sua querida menina, quando, d’ali a mezes, devia ter o seu noivo formado! Eram pragas, deviam por força ser pragas de Ignacio da Fonseca. E cuspia trez vezes no chão. —Ó Santa Virgem do ceu! pensava elle com os olhos afogados em lagrimas, pelas dores que atormentaram no Calvario o vosso sagrado coração, valei á minha pobre menina, levae-me d’este mundo se eu tenho de vêl-a infeliz. E ficava encostado ao cabo da enxada a scismar n’aquella grande desgraça. De uma vez Anninhas viu-o da janella, e disse-lhe: —Ó Marques, estás a pensar na cachopa, que quer ser tua mulher? —Ah! a menina ouviu? Pois é mesmo: estou a pensar na cachopita, que não pode ser mais infeliz. —Porque? O Marques corrigiu-se sorrindo e dizendo: —Porque ella que se vira para um velho, é porque já nenhum moço a quer. —Pois vê lá se te resolves, e casaremos no mesmo dia. Frei Simão, chegando a Coimbra, foi hospedar-se na estalagem do Paço do Conde. Principiou ahi mesmo a colher informações, que o aterraram. O estalajadeiro asseverou-lhe que Antonio Maria e José Maximo estavam implicados no crime. Contou, segundo a versão dos estudantes presos, que tinham sido aquelles dois os que primeiro atacaram as caléças. E accrescentou que, tendo José Maximo combatido, nos _Divodignos_, a proposta de Antonio Maria, para irem esperar os lentes ao caminho, muita gente se admirava de que elle se avantajasse aos outros, com Antonio Maria, na arremettida, se bem que alguns explicassem que o fizera para não ser alcunhado de cobarde. —Deve ter sido assim, pensou frei Simão. Proseguindo, o estalajadeiro disse mais: —Que toda a indignação dos presos era contra Antonio Maria, que fôra quem os perdêra. Que era uma pena vêr tantos rapazes de boa familia desgraçados por a loucura d’um só; não só desgraçados, mas tambem infamados pelo roubo das bagagens. —Duvido, observou convictamente frei Simão, que José Maximo se associasse a essa infamia. É preciso não o conhecer. —Lá isso assim é, commentou um criado, o Agostinho, porque o doutor Neves veiu dizer que conheceu perfeitamente José Maximo pela voz, apesar de elle ter a cara tapada como os outros, quando gritou que não maltratassem os lentes, e diz que não sabe ao certo, pela atrapalhação em que estava, se José Maximo era um que o cobria com o corpo, mas que lhe parece que sim. —Tudo isso são attenuantes. Melhor elle se tivesse apresentado á justiça. —Qual! replicou o estalajadeiro. Fez muito bem em fugir, porque o castigo ha de ser severo para exemplo de todos. Dos estudantes que faziam parte da loja da rua do Loureiro já não está em Coimbra nem um unico. Fugiu tudo. Até fugiram os que não foram a Condeixa. O Moacho, que era o presidente, e estudava para capello, já desappareceu tambem. N’isto entrou na casa do jantar, e pediu o seu candeeiro para recolher-se ao quarto, um sujeito de boa apparencia. O estalajadeiro piscou o olho a frei Simão, como a recommendar-lhe silencio. O criado Agostinho deu o candeeiro ao hospede, e o estalajadeiro, após alguma pausa, disse quasi ao ouvido de frei Simão: —Este sujeito é de Lisboa, e dizem que veiu cá para vêr se salva um dos presos. —Qual preso? —Domingos Joaquim dos Reis, que é filho do capitão-mór de Cintra: muito rico. Veja Vossa Reverencia! uma creança de vinte annos! Mas parece que nem o dinheiro o salvará, porque consta que o ministro das justiças mandou ordem ao _Cabaças_ para activar as averiguações. Isto é uma grande desgraça! Bem faço eu que me não metto em politica: em primeiro logar, porque tenho de viver com todos; em segundo logar, porque não quero desgraçar a minha familia. Frei Simão estava fulminado pelas más noticias que lhe déra o estalajadeiro, e que foram confirmadas pela voz de todas as pessoas a quem poude ouvir sobre o assumpto. Recolheu ao Outeiro mergulhado em profunda tristeza, mas resolvido a contrafazer-se para que nenhuma de suas irmãs soubesse o que se tinha passado. Apenas se abriu com o Marques dizendo-lhe em segredo: —Pobre rapaz! está perdido! É certo que fugiu. Mas occultaremos a verdade. Nem uma palavra, entendes? Nem uma palavra. E nem Anninhas nem as outras irmãs de frei Simão tiveram noticia da tragedia do Cartaxinho. Ahi por abril, frei Simão disse que ia a Coimbra visitar José Maximo. Receiava que D. Anna notasse a falta de cartas d’elle. Ausentou-se por trez dias: esteve em Oliveira de Azemeis. Quando voltou, deu boas noticias de José Maximo: que se havia desculpado de não ter escripto por se aproximar o fim do anno lectivo, e estar muito sobrecarregado de trabalho. Mas que gozava perfeita saude. —O peior, pensava frei Simão, é quando o fim do anno lectivo chegar. Pobre Anninhas! A 16 de maio rebentou no Porto a revolução contra o governo de D. Miguel. Frei Simão estava no segredo do movimento. Fôra prevenido por Frederico Pinto, que a junta revolucionaria nomeára commandante da companhia dos _Matutos_ e officaes de tanoeiro de Villa Nova de Gaya. A revolução alastrou desde o Porto até Coimbra. Em Cezár, o frade, armado á frente dos seus criados, sahiu a proclamar a rebellião contra a auctoridade do regente. Ninguem ousou oppor-se-lhe. Todos os visinhos absolutistas trataram de esconder-se. Foi porém ephemero esse movimento, que terminou tristemente, e que teve a _Belfastada_ como vergonhoso epilogo. Esmagada a revolução, os absolutistas de Cezár sahiram da tóca, mas o frade esperou-os resolutamente. Não fugiu. Acceitou a sua posição de vencido, e preparou-se para resistir aos odios que, contra elle, se desencadeáram então aberta e ostensivamente. Preveniu-se andando de espingarda ao hombro e substituindo o habito por uma jaqueta, para não ser tão facilmente reconhecido de longe. Uma vez, em Pedra-Mar, frei Simão encontrou um dos seus adversarios. Iam ambos armados. Instinctivamente metteram a espingarda á cara um do outro. Estava de per meio uma arvore, um pinheiro, que ambos queriam aproveitar como resguardo. O absolutista, a tão pequena distancia do frade, receiou-o. Frei Simão não queria disparar senão em legitima defesa. E assim andaram por algum tempo á volta da arvore, dizendo um ao outro «Dispara tu», «Dispara tu primeiro», sem que nenhum dos dois disparasse. O frade não se acobardava, nem retraía. Ia aonde precisava ir. Tinha que fazer em S. João da Madeira, e foi. Demorou-se ali, no logar mais publico da povoação, conversando á porta do ferrador. Era na praça actual, agora modernisada pela construcção de um chafariz. S. João da Madeira faz muita differença do que então era. A egreja, por exemplo, tinha, n’esse tempo, voltada para o mar a porta, que actualmente olha para os montes escalvados de Macieira e Nogueira. Mas o alpendre do ferrador ainda lá se conserva, na praça. Pois bem. O frade, depois de ter tratado os seus negocios, recolhêra a Cezár pela estrada solitaria. No caminho, passou por uns trabalhadores, que andavam n’uma segada, e que se atreveram a resmonear, quando elle passava: «Frade fóra». Frei Simão saltou da estrada para o campo, correu para os trabalhadores, parou deante d’elles. Calaram-se, assombrados de tamanha audacia e coragem. Ignacio da Fonseca e os outros absolutistas de Cezár reconheceram-se pessoalmente impotentes para esmagar o frade. Recorreram, portanto, ao auxilio das auctoridades, sempre dispostas a perseguir os liberaes. Ainda assim, as auctoridades não foram d’essa vez tão audaciosas, que investissem logo com o frade. Começaram por fazer um rodeio. José Bernardo de Vasconcellos estava então na casa do Outeiral em Arouca, em companhia do filho Antonio. Maria Henriqueta, a filha mais nova, havia entrado no mosteiro d’aquella villa, a titulo de educar-se. As freiras não ousaram oppôr-se á admissão da filha do fidalgo do Outeiral, seu proximo visinho, e Maria Henriqueta de preferencia escolheu aquelle mosteiro attraida ali pela presença da mulher, que o tio, Joaquim Maria, tinha amado até á morte. Na tarde de 17 de setembro d’esse anno de 1828, José Bernardo de Vasconcellos foi procurado na quinta do Outeiral pelas justiças da comarca de Arouca. Sahiu a recebel-as na sala nobre do edificio. Disseram-lhe ao que iam: sequestrar os bens, que achassem pertencer a Frederico Pinto como implicado no mallogrado movimento do Porto, de 16 de maio. Serenamente, José Bernardo contrapoz que era verdade ter elle doado aquella quinta, e outras, a seu filho Frederico, mas que por contrato tinha reservado os rendimentos d’essa propriedade como alimentos seus, dos dois filhos mais novos, e de uma sua irmã. Para justificar o que dizia, apresentou o contrato assignado por Frederico Pinto. O juiz, ouvidas as declarações de José Bernardo, mandou proceder a sequestro na propriedade, de que constituiu depositario o proprio José Bernardo, com reserva dos rendimentos. Era o inicio das perseguições officiaes contra a familia Vasconcellos. XIX A caça ao homem Raiou a epocha dos caceteiros, dos delatores, das alçadas sanguinarias, das forcas, dos degredos, aos gritos do «rei chegou». Silva Gayo—«Mario». Ignacio da Fonseca foi á Villa da Feira dizer ao corregedor da comarca, Francisco Monteiro Mourão Guedes de Carvalho, que se o senhor D. Miguel era, desde o ultimo dia de junho, rei de Portugal, por vontade de clero, nobreza e povo, como se provára pelo voto unanime das côrtes geraes dos trez estados do reino, justo parecia que os mais encarniçados adversarios da politica triumphante não campeassem em plena liberdade vexando os vassalos fieis e dedicados. —Por que me diz Vossa Mercê isso? perguntou Mourão Guedes. —Porque frei Simão de Vasconcellos passeia livremente por Cezár, de arma ao hombro, pondo em risco a tranquillidade dos seus visinhos. —Ainda não é tarde, replicou o corregedor, para justarmos contas com os nossos adversarios, que não são poucos. Não se vae a Roma n’um dia, mas, caminhando sempre, lá se chega. Vossa Mercê sabe que a familia Vasconcellos já começou a experimentar a acção da justiça. —Se Vossa Senhoria se refere ao supposto sequestro feito na quinta do Outeiral, em Arouca, dir-lhe-hei que decerto José Bernardo se ficou a rir, por isso que lhe foi attendida a reclamação relativa a alimentos. —Mas a propriedade ficou sequestrada, e alvoroçado, pelo facto do sequestro, o espirito publico d’aquella villa contra a familia de José Bernardo, que ali suppunham superior ao alcance de qualquer represalia. Tanto assim foi que José Bernardo já retirou do mosteiro de Arouca uma filha, que lá estava a educar, reconhecendo d’esse modo que lhe era hostil o animo das pessoas gradas da villa, incluindo as freiras. Effectivamente, tinha sido assim. Depois do sequestro, as freiras de Arouca, vendo a familia de José Bernardo razoirada ao nivel commum de todas as outras familias perseguidas por liberaes, perderam o respeito á filha do fidalgo do Outeiral a quem não poupavam allusões pungentes e irritantes. D. Maria Henriqueta mandou dizer ao pai que a fosse buscar. José Bernardo foi; teve a filha alguns dias, poucos, em sua companhia, e resolveu transferil-a para o convento de Santa Clara no Porto. Do Outeiral, D. Maria Henriqueta escreveu para Cezár contando o que se tinha passado, e dando interessantes pormenores sobre a triste existencia de Margarida Candida no mosteiro de Arouca. Referia que a infelicissima freira lhe tinha dito em segredo: —Se algum dia a liberdade me puder abrir as portas d’este mosteiro, correrei a Aveiro para ir dizer a Joaquim Maria, sobre a lage da sua sepultura, que o amo na morte com a mesma dedicação e lealdade com que o amei em vida. Frei Simão leu isto, e commoveu-se. —Pois esteja Margarida Candida certa, exclamou elle, de que ha de cumprir a sua vontade, porque eu mesmo lhe abrirei as portas do mosteiro. Assim o prometti a Joaquim Maria; assim o farei. José Bernardo mandou o filho Antonio acompanhar ao Porto D. Maria Henriqueta, que, para completar a sua educação, entrou no convento de Santa Clara[2]. Ignacio da Fonseca replicou ao corregedor: —O que se faz em Arouca importa-me menos do que o que se passa em Cezár, onde vivo e tenho propriedades, e onde, portanto, a minha vida e haveres correm grande risco, vista a impunidade de que frei Simão de Vasconcellos está gozando com verdadeiro escandalo de todos os fieis vassalos d’el-rei nosso senhor. —Pois vá Vossa Mercê socegado, disse Mourão Guedes, que eu mesmo me encarregarei da prisão do frade. —Essa resposta agrada-me. Sr. corregedor, diziam os antigos portuguezes que quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre. Recebo as ordens de Vossa Senhoria. Mourão Guedes conhecia de sobra o frade do Outeiro para não reputar facil a tarefa de prendel-o. Acautelou-se, pois, requisitando, para ir a Cezár, uma partida de tropa de linha. E, tomada esta precaução, sahiu um dia da Villa da Feira com destino á casa do Outeiro. Fez cercar o edificio, e passou-lhe busca. Frei Simão não estava, por mero acaso, porque o frade olhava pouco á sua segurança individual. As irmãs ficaram muito assustadas com a presença do corregedor e da tropa. Quando frei Simão recolheu a casa, pediram-lhe, exoraram-n’o a que tivesse mais cuidado em si. O frade ria do mallogro casual da busca, mas, a instancias das irmãs, e para tranquillisal-as, prometteu lhes que d’ali em deante tomaria maior cautela. Mourão Guedes não gostou nada de ter espantado inutilmente a caça. Era de suppôr que, depois d’aquelle mau exito, frei Simão se preparasse para baldar uma nova tentativa de captura. Ou se entrincheiraria para resistir, hypothese consoante á sua tradição de valor, ou se homisiaria, o que daria em resultado o comico mallogro de uma segunda tentativa. Reflectindo, achou que era melhor renovar a diligencia, mas abster-se elle proprio de tomar parte n’ella. Chamou, portanto, ao seu gabinete o major do regimento de milicias da Villa, João Francisco Pinheiro, e encarregou-o de ir a Cezár, com um batalhão do seu regimento, capturar o frade. —Se frei Simão não apparecer, disse Mourão Guedes ao major, é preciso cobrir a infelicidade da sortida apprehendendo os papeis politicos e causando a maior somma de prejuisos, que fôr possivel. O major entendeu, e marchou com o batalhão para Cezár. A unica prevenção de frei Simão de Vasconcellos limitava-se a pernoitar na habitação do caseiro, proxima ao solar. O batalhão, que tinha sahido da Villa da Feira durante a noite, cercou ao romper da manhã a casa do Outeiro. Frei Simão viu a tropa, pegou na escopeta, e preparou-se para sahir. —Que faz Vossa Reverencia? perguntou-lhe, muito afflicto, o caseiro. —Pensas então que me hei de deixar apanhar como um coelho na tóca? replicou o frade aperrando a arma. —Mas podem matal-o, senhor! —Tudo leva as mesmas voltas. Elles, depois de terem dado busca a toda a casa, procurar-me-hão em todas as dependencias da quinta, e achar-me-hão aqui. Isto não falha. Ora da prisão á forca não dista mais d’um passo. Sei o tempo em que vivo, e a gente com que estou. Vou fugir, para salvar a vida. Se me matarem, tanto monta que seja hoje como ámanhã. Elles juraram-me pela pelle. Encommendo a minha alma a Deus, que espero perdoará os meus peccados. E abriu a porta. Dados alguns passos, encontrou dois milicianos, dos que constituiam o cordão do cêrco, e que se abrigavam, escondidos, detraz de um pequeno muro. —Quem se mexer, morre! gritou frei Simão, mettendo a arma á cara. Os dois milicianos ficaram tomados de assombro deante do frade, cujo valor conheciam. Frei Simão passou por entre elles, empurrando-os com violencia; e, saltando rapidamente o muro, desappareceu. Quando os milicianos se recobraram do assombro d’aquella resistencia heroica, já se não via o frade. Ouviram-se ainda alguns tiros, disparados pelos soldados, mas foram perdidos. O major Pinheiro ficou desesperado com a fuga de frei Simão, que o batalhão perseguiu, mas não encontrou. Tratou, ao menos, de cumprir a segunda parte do programma. Todos os objectos de valor, incluindo as alfaias da capella, e o proprio calix de que frei Simão se servia quando dizia missa, foram carregados n’um carro, e conduzidos para S. João da Madeira. N’um armario encontraram os soldados alguns pergaminhos de familia e titulos antigos, a que o major não reconheceu interesse politico. Por isso, limitou-se a mandal-os queimar n’uma grande fogueira, que se accendeu no pateo da casa. Os absolutistas de Cezár enraiveceram-se com o desastre d’esta segunda expedição. Ignacio da Fonseca foi ao Porto pedir ás justiças que promovessem uma terceira diligencia, que, por mais apertada, pozesse termo ás zombarias de frei Simão. D’ali a dias, o corregedor Mourão Guedes recebia na Villa da Feira ordem para colhêr ás mãos o frade de Cezár, _vivo ou morto_. Era quasi uma censura á inefficacia da sua perseguição. Estava-se em maio de 1829, no auge das represalias sangrentas. Um forte destacamento de policia do Porto foi mandado expressamente á Villa da Feira para proceder á captura de frei Simão de accordo com uma companhia de milicianos. O frade, sempre destemido, estava em casa no momento em que a policia e os milicianos a rodeáram. Vendo-os, saltou por uma janella para fugir. Uma cadellinha, muito sua predilecta, saltou após o dono. O frade, que vestia uma jaqueta de cotim azul e branco e levava uma arma na mão, deitou a correr. Os soldados fizeram sobre elle varios tiros, mas nenhum o tinha ainda alcançado. Na Serenada, uma das balas matou a cadella. Então frei Simão, indignado, voltou-se para traz, apontou a espingarda, e desfechou. Redobraram os tiros dos perseguidores, mas o frade, fugindo sempre, chegou a Villarinho. Ahi um dos tiros alcançou-o pelas costas. Frei Simão tentou proseguir na carreira, mas as forças faltaram-lhe. Estava ferido. Encostou-se a uma arvore para não cahir: o sangue repuxava a jorros da ferida, escorrendo pela jaqueta. Foi-lhe dada voz de prisão. O commandante do destacamento, que era um official de milicianos, mandou procurar um carro para conduzir o preso á Villa da Feira. N’este momento appareceram, correndo em grande afflição, D. Maria Albina e o criado Francisco Marques. Foi o Marques quem alvitrou ao commandante que, transportado em braços o ferido até á casa do Outeiro, poderia um carro da casa ir leval-o á Villa da Feira. Assim se resolveu. Pelo caminho, frei Simão ia perdendo muito sangue. Quando o ferido chegou ao Outeiro, onde as outras irmãs o receberam chorando angustiosamente, e emquanto se apparelhava o carro, frei Simão pediu um confessor. Julgava-se em artigos de morte. —Deixemo-nos de historias! respondeu desabridamente o commandante. O frade replicou com extranha energia: —Se me não derem um padre, confessar-me-hei a uma pedra. O official encolheu os hombros, e disse: —Isso de pressa, que não ha tempo a perder. Sahiram um criado e dois milicianos á procura do primeiro padre, que apparecesse. Nem o abbade nem o padre Antonio Pinheiro estavam em casa. Apenas appareceu o padre José Pedro, da Herdade, que era um dos adversarios politicos de frei Simão. Os milicianos, apenas o viram, intimaram-n’o a acompanhal-os. Frei Simão, quando o viu entrar, tornou a dizer: —Se me não dessem um padre, confessar-me-hia a uma pedra. Queria decerto significar, com a repetição da phrase, que não via no adventicio o adversario, mas unicamente o sacerdote. A confissão foi interrompida, porque, sendo muito abundante a hemorrhagia, frei Simão teve uma demorada syncope. —Sr. official, disse D. Maria Albina ao commandante, meu irmão, n’este estado, vai morrer pelo caminho. —Mas eu tenho instrucções para o levar vivo ou morto. —Morto de pouco pode servir á justiça, que o mandou prender, respondeu D. Maria Albina. —Tambem é verdade... disse o official. Vou mandar uma ordenança á Villa a pedir instrucções. Foi a ordenança e, passadas algumas horas, voltou com um officio em que o corregedor Mourão Guedes dizia ao commandante que guardasse bem o preso até ao dia seguinte, porque o doutor Pedro José Corrêa Ribeiro iria logo pela manhã a Cezár para informar do estado de frei Simão. Durante a noite, o frade, recostado n’uma cadeira, por não poder conservar-se deitado no leito, agitava-se em dolorosas convulsões, e tinha vomitos de sangue. A ferida, que, junto á columna vertebral, atravessava a região superior do thorax, sangrava copiosamente. A clavicula esquerda estava quebrada, e o braço paralysado. Frei Simão disse a D. Maria Albina: —Não me satisfez a confissão, que fiz ao padre José Pedro. Peço á mana que mande chamar o abbade ou o padre Antonio Pinheiro. E diga-lhes que tragam os sacramentos, que me quero preparar para morrer. O abbade Moreira Maia tinha ido n’esse dia pela manhã para Oliveira de Azemeis. Foi o padre Antonio Pinheiro que levou o viatico a frei Simão. Padre Antonio entrou muito pallido. Ordenou aos soldados que se affastassem, emquanto ouvia de confissão o ferido. Ajoelhou-se, muito trémulo, junto á cadeira de frei Simão, e inclinou o ouvido á bôca do frade. A confissão não durou mais de vinte minutos. Em seguida, padre Antonio ministrou a communhão ao ferido. Frei Simão disse-lhe com voz sumida pelo cansaço: —Muito obrigado, sr. padre Antonio. Na physionomia de padre Antonio Pinheiro lia-se, n’esse momento, um mixto de consoladora surpresa e de compaixão dolorida, que lhe dulcificava a pallidez da commoção. As irmãs do frade velaram toda a noite junto á cadeira do ferido, que já consideravam moribundo. Frei Simão arquejava, com os olhos fechados. O sangue manchava as compressas, logo que eram postas com mais dedicação do que sciencia pelas pobres senhoras. Alta noite, o frade poude reconhecer a voz de Anninhas como sendo de uma das pessoas que velavam a seu lado. Moveu, com difficuldade, o braço direito, unico que lhe restava illeso, e tocou com os dedos, muito ao de leve, a cabeça da irmã. —Minha pobre Anninhas! disse elle anciadamente. Minha pobre Anninhas! E cahiu por algum tempo em maior e mais atormentada prostração. Padre Antonio Pinheiro, entrando na abbadia de Cezár, ia tão pensativo, que Gertrudes Magna não ouzou perguntar-lhe logo se o frade do Outeiro já tinha morrido. O padre recolheu-se ao seu quarto, e fechou-se por dentro. A tia foi algumas vezes espreital-o pela fechadura da porta: ouvia-o rezar, se era que não estava fallando só. Á hora da ceia, Gertrudes Magna atreveu-se a chamar o sobrinho. —Não queres hoje cear, Antonio? perguntou ella. O padre abriu a porta, procurou ageitar um sorriso, que nasceu triste, e respondeu: —Não, minha tia; quero apenas um copo d’agua. A velha deu alguns passos no corredor, mas voltou atraz e perguntou: —O que me dizes tu de frei Simão? Corre por ahi que já morreu... —Não tinha morrido quando eu de lá vim, mas está para isso. —Acaba o seu tormento. Deus o vae julgar. —A justiça de Deus, replicou o padre, é menos cega que a dos homens. Não fallemos de frei Simão, não falle d’elle, minha tia, sobretudo para fazer côro com a demencia das paixões politicas. Padre Antonio estava visivelmente impressionado pela confissão do frade. Mas não nos é dado saber ao certo os motivos da sua commoção: só elle os conhecia, e não os podia revelar. Logo pela manhã chegou a Cezár o doutor Corrêa Ribeiro, que a muito custo poude suspender a hemorrhagia. Declarou elle por escripto que frei Simão não se encontraria em estado de ser transferido para a Villa da Feira antes de trez dias, pelo menos. A sua vida corria imminente perigo. A pedido das irmãs do ferido, o doutor Corrêa Ribeiro ficou em Cezár. E ao cabo de alguns dias, mais de trez, elle proprio e D. Maria Albina acompanharam o carro de bois em que o frade foi condusido á cadea da Villa. XX Nas garras da vingança O odio e a vingança de inimigos pessoaes punham um innocente a dois passos do patibulo ou ensinavam-lhe o caminho dos presidios africanos Latino Coelho—«Elogios academicos» tom I. A cadea da Villa da Feira subsiste ainda hoje tal como era no tempo em que ali esteve preso frei Simão de Vasconcellos. Fica na Praça, a meio da qual se levantava então o pelourinho, agora substituido pelo chafariz, que pertencêra ao convento dos Loyos. A cadea, certamente construida no seculo passado, é um casarão de dois andares, não contando as janellas lateraes á dupla escada de pedra, que dá accesso ao edificio. Em cada andar, quatro janellas por banda, gradeadas de ferro. O ultimo tem a meio o sino, e nivela-se com o predio contiguo, de que era então proprietario o irmão do conde das Antas[3]. A cellula que frei Simão occupou era a do ultimo andar, encostada ao predio visinho. Tinha, como as outras, um forte tecto de castanho, e solidas paredes. No dia da chegada do frade, toda a população da Villa da Feira se alvoroçou e reuniu na Praça para o vêr. Comquanto fosse rara a semana em que não entrasse na cadeia um preso absolutista, a lenda que se fizera em torno do nome de frei Simão de Vasconcellos excitava vivamente a curiosidade, dando ao facto da sua prisão um interesse excepcional. Toda a gente desejava vêr esse destemido frade, que tanto custára a cahir no laço, e do qual se contavam proezas de extraordinario valor. A população reuniu-se não só na Praça, em frente da cadeia, mas ainda se espraiava em grupos pela estrada de Cezár, até grande distancia. O aspecto da multidão, na Praça, chegava a ser pittoresco, posto que nos trajes das mulheres e dos homens uma côr unica predominasse,—o vermelho, côr garridamente festiva e, n’aquella occasião, triumphal. Era a côr symbolica do absolutismo, adoptada nos lenços das mulheres e nas gravatas e topes dos homens. O dia estava magnifico de sol, a primavera aquecia, illuminava a encosta viridente do Castello, que desde a Praça se avistava pela embocadura da rua Direita, como um bello panno de fundo. O alcáçar moirisco, todo afogado em héra, recortava sobre a frondosa matta, que o rodea, as suas quatro torres, de corucheos pyramidaes, muito elegantes, rematados em tulipas de granito. Nos grupos fallava-se a respeito de frei Simão e, comquanto se fizesse justiça ao seu valor, a impressão geral era d’alegria, por ter cahido nas garras da justiça um tão perigoso absolutista, que, além de preso, estava gravemente ferido, isto é, inutilisado. —Vocês, dizia, no seu grupo, um popular, conhecem o Ignacio Brandão, de Roussas? —Muito bem! —Pois o frade sempre era homem, que lhe metteu medo! Haverá agora trez semanas, passava o frade em Santa Marinha, uma legua de Arouca, pouco mais ou menos. Ahi vem o frade! disse o Brandão vendo-o a pequena distancia. E metteu a arma á cara, para lhe atirar.—Sou eu, respondeu o frade; atira. Pois não atiraste! Sabem vocês o que fez o Brandão? Largou a arma, e deitou a fugir! —E em S. João da Madeira o que aconteceu com os homens que andavam na segada! dizia outro popular. —E quando elle foi a Macieira de Cambra, sósinho, bater n’um homem! accrescentava ainda um terceiro popular. —O frade tinha o diabo no corpo, Deus me perdõe! exclamava uma mulher. —Tinha, mas foi apanhado, com uma chumbada na aza: é passaro que já não foge, apesar de bisnau. —Quem avisou agora o commandante do destacamento, de que elle estava com certeza na casa do Outeiro, foram as cunhadas do Jorge e o Canedo de Vermelhinho. —Ora adeus! quem lhe preparou bem o laço foi o Ignacio da Fonseca. —Olha! lá vem a madama, com uma bilha d’agua na mão. É para o quarto do frade, certamente. Referiam-se a madame Cadillon, mulher do carcereiro, Francisco Antonio das Neves, o da Travessa. Era uma franceza, que tinha ido para a Villa como criada de um juiz de fóra, e que depois casára com o carcereiro, estabelecendo no Rocio uma estalagem. Effectivamente madame Cadillon tinha sido encarregada, pela familia do Outeiro, de mobilar o quarto de frei Simão, não se poupando a despezas. Quando o carro que conduzia o frade appareceu no topo da estrada de Cezár, toda a multidão se condensou em tropel para esperal-o na passagem. O carro vinha coberto, de modo que frei Simão só poude ser visto na occasião de o tirarem em braços á porta da cadeia. —O homem vem por um fio! commentava-se. —Parece moribundo! Este já não chega a ir á forca... —Elle vem tão mal, que trouxe o medico comsigo! —E uma das irmãs para enfermeira! Olha! lá vae ella a subir agora as escadas. Effectivamente, o estado de frei Simão continuava a ser muito grave. Logo que elle chegou á cadeia, o doutor Corrêa Ribeiro mandou chamar o cirurgião Soares de Albergaria para conferenciarem sobre o tratamento a seguir. Combinou-se que, passados alguns dias de repouso, se sondasse a ferida com o estilête, o que até ali não tinha sido possivel fazer pelo receio de avivar a hemorrhagia. D. Maria Albina ficou na Villa, hospedada na estalagem da Franceza, para assistir ao curativo do irmão, uma vez por dia, o que o doutor Correia Ribeiro pudera conseguir, por o julgar indispensavel, segundo requerêra e attestára. Na casa do Outeiro passava-se, na ausencia de frei Simão e de D. Maria Albina, uma vida solitaria e triste, sempre alvoroçada pelo receio de provaveis aggressões e perseguições. Os visinhos estavam victoriosos, triumphantes. Todas as vantagens da occasião eram d’elles. Não se sabia quando frei Simão poderia recuperar a liberdade, nem mesmo se chegaria a recuperal-a. O futuro era, para aquella familia, uma duvida atroz. D. Anna e D. Antonia não sahiam de casa, nem fallavam com qualquer pessoa extranha. Francisco Marques cumpria pontualmente as ordens de frei Simão. Como um Cerbéro, um cão de guarda, vigiava, noite e dia, as duas senhoras que lhe haviam sido entregues. Sempre receioso de alguma investida dos visinhos, dormia sobre uma esteira, com uma escopeta á mão, no corredor sobre o qual abriam as portas dos quartos interiores. Os outros criados tambem não se deitavam nunca sem primeiro ter verificado a segurança das fechaduras e ferrôlhos, e se as espingardas, sempre carregadas, estavam no seu logar. Anninhas era a mais triste e apprehensiva das pessoas da casa. Comquanto continuasse a ignorar a desgraça de José Maximo, inquietava-se com a falta de noticias de Coimbra. Sentia-se fatigada, tinha de interromper muitas vezes a costura por lassidão nos braços. Lastimava-se. Perdêra o apetite e o somno. O Marques ouvia os queixumes da «sua querida menina» e dizia-lhe, por serenal-a, que sabendo naturalmente o sr. José Maximo o que tinha acontecido a frei Simão, não quereria escrever para o Outeiro na ausencia do chefe da familia, porque o fazel-o poderia parecer abuso de confiança ou falta de respeito. Ella ouvia-o melancolica, mas as palavras d’esse bom amigo não conseguiam apagar as suas apprehensões e duvidas, por igual inquietadoras. Um dia, pela manhã, a familia do Outeiro foi surprehendida por um agudissimo grito, de uma expressão de dôr dilacerante, que partira do quarto de D. Anna. Todas as pessoas da casa acudiram espavoridas, e foram encontral-a de pé, com o braço direito agitado por um tremor nervoso, os dedos da mão justapostos e ligeiramente curvos, a cabeça pendida mas firme, o olhar cadente e spasmodico, a physionomia paralysada n’uma immobilidade de estatua. No chão, a pequena distancia, viram um papel aberto. Apanharam-n’o, e leram-n’o. A lettra e a orthographia revelavam um disfarce grosseiro. O texto do papel dizia: «José Maximo foi um dos estudantes de Coimbra que mataram os lentes em Condeixa. Anda fugido e a sua cabeça vale muito dinheiro a quem o entregar morto ou vivo. Se não sabiam esta grande novidade ficam-n’a sabendo agora, para seu regalo, porque foi essa maldita raça de pedreiros-livres do Outeiro que o perdeu. Lá se foi um casamento pela agua abaixo. Deus escreve direito por linhas tortas.» Tratou-se de averiguar como esse papel fôra parar ás mãos de D. Anna de Vasconcellos. Quem lh’o entregou? como chegára até ali? Uma criada lembrou-se de ter visto pela manhã, quando ia soltar as aves, um pequeno papel entalado debaixo da vidraça na janella d’aquelle quarto. Pensou que a menina o deixaria ali por qualquer motivo ou que ali teria ficado casualmente, quando o deitasse fóra. N’uma palavra, não ligou importancia ao facto. Francisco Marques chegou a suspeitar da cumplicidade d’essa criada ou de qualquer outro serviçal. Mas, proseguindo em averiguações, descobriram-se as pégadas de alguem que tinha de noite saltado o muro para ir collocar o papel na janella. A honra dos criados estava salva, e era facil atinar com a origem do maldito bilhete. Viera de casa de Ignacio da Fonseca, o visinho que mais podia interessar-se n’uma vingança, que aliás representava a desgraça do sobrinho. Pouco lhe importaria isso: o prazer da vingança era indispensavel ao seu coração rancoroso. Se não bastasse esta circumstancia, que cabalmente explicava a proveniencia do papel, accresceria ainda a de serem os criados de Ignacio da Fonseca os que, por mais proximos visinhos do Outeiro, melhor conheciam os cantos á casa. Quem foi collocar o papel n’aquella janella, sabia perfeitamente que era ali o quarto de Anna de Vasconcellos. Muito afflictas, as pessoas da casa trataram de soccorrer a pobre menina, que, convulsionada na oscillação rythmica dos braços, não fallava: os labios premiam-se um contra o outro violentamente. Dir-se-hia que esse extranho grito, que estrugira como um silvo, fizera estalar todos os musculos da larynge, todas as cordas vocaes de D. Anna de Vasconcellos. Pediram-lhe que se deitasse para descançar algum tempo. Ella tentou andar mas hesitou, n’uma dolorosa perplexidade. Instaram, supplicaram. Deu então alguns pequenos passos, curtos e incertos. Depois precipitou-se n’um impeto de propulsão, perdendo o equilibrio. O Marques amparou-a a ponto, tomou-a amoravelmente nos braços, foi recostal-a no leito. Mas o tremor, o spasmo e a mudez continuavam ainda. Partiu um criado para a Villa da Feira a chamar o doutor Correia Ribeiro. Quando o medico chegou a Cezár, cahia a noite. Contaram-lhe o que se tinha passado. Correia Ribeiro, depois de ter observado attentamente D. Anna de Vasconcellos, disse que a causa da doença fôra a commoção moral. Diagnosticou de _tremor nervoso_. Tinha já visto outros casos na sua clinica. Mas notou certas differenças alarmantes. Expoz que em geral as pessoas atacadas eram maiores de quarenta annos; que a marcha da doença costumava ser lenta, progressiva, e terminar ou por complicação de uma affecção intercorrente ou, na velhice, por esgotamento nervoso; que os doentes fallavam ainda que com difficuldade, custando a pronunciação de cada palavra um esforço consideravel da vontade. Ora, no caso presente, declarou ás pessoas da casa que não podia deixar de extranhar as circumstancias da idade juvenil da doente, da invasão brusca e intensa, e da aphonia completa. Receitou um preparado de belladona, por ser um medicamento de reconhecida acção anti-convulsiva. E disse que voltaria no dia seguinte para acompanhar a marcha da doença, ainda na esperança de que D. Anna recuperasse a voz, por ser a aphonia, n’esta especie morbida, um caso novo na sua clinica. Eis o que a experiencia lhe dictava; sabia principalmente o que os factos lhe haviam ensinado. Se elle possuisse toda a sciencia do seu tempo, poderia ter justificado o diagnostico da _paralysia agitante_ com uma brochura que sobre o assumpto dera á estampa, onze annos antes, o medico inglez Parkinson. Os professores do protomedicato tinham-lhe ensinado o que Galeno dizia ácerca do tremor paralytico e do tremor clonico ou antes do _tremor_ e da _palpitação_; mais nada. Mas a experiencia guiara-o a conhecer praticamente os caracteres fundamentaes da doença, a sua marcha normal, e etiologia. Anna de Vasconcellos não readquirira a voz. Estava completamente privada de communicar, fallando, os seus pensamentos, em virtude da aphonia; e escrevendo, em virtude da convulsão e deformidade da mão direita. A sua vida era pois uma tortura horrorosa. Pensava, recordava, vivia o bastante para atormentar-se pela memoria; mas não podia sahir de si mesma para desabafar a sua dôr. A aphonia hysterica, como diria um medico do nosso tempo, privava-a de communicar pela palavra com o mundo exterior, se bem que D. Anna, no segredo do seu espirito, talvez agradecesse a Deus o ter perdido o uzo da palavra escripta ou fallada, que só poderia servir-lhe para insistir nas recordações cruciantes do passado. Chegou a inesperada noticia á cadeia da Villa da Feira, e frei Simão disse á irmã mais velha: —Vae tu para o Outeiro. Eu vou indo melhor. Melhorei o que podia melhorar. O resto não tem cura. A nossa infeliz Anninhas precisa mais de ti do que eu. Logo que me deixem sahir d’aqui ou que eu possa sahir, irei vêl-a. Cumpra-se a vontade de Deus; acceitemos resignados a desgraça com que experimenta a nossa fé. Padre Antonio Pinheiro, se tivesse ouvido estas palavras, não as extranharia. O virtuoso sacerdote, conversando com Ignacio da Fonseca, que bramia maldições contra a familia do Outeiro, especialmente contra o frade, disse-lhe serenamente: —Julgo frei Simão um crente, a quem as paixões humanas teem allucinado, mas cuja consciencia não conserva odios nem rancores. —Ora essa! sr. padre Antonio! observou, indignado, Ignacio da Fonseca. Não sabe que os pedreiros-livres não crêem em Deus, e que são capazes de mentir a Nosso Senhor por isso mesmo que não o temem?! —Sei. Mas Deus é misericordioso, e ouve os que lhe imploram a conversão das almas transviadas. Frei Simão seria favorecido pela misericordia divina. Não affirmarei que seja um bom catholico o frade que voluntariamente despiu o habito, mas cuido não errar dizendo que descubro n’elle a consciencia tranquilla de um bom christão. —Fraca consciencia a que não tem remorsos dos seu crimes! —Conheço de ha muito tempo os erros de frei Simão, mas desconheço os seus crimes. —Pois não foi elle que perdeu meu sobrinho? Não foi aquella maldita casa do Outeiro que o perverteu?! —Quem perdeu e perverteu seu sobrinho foram as idéas d’este seculo corrupto e impio; foi a corrente das paixões desenfreadas e loucas. Vossa Mercê, sr. Ignacio, falla da sua paixão, e eu comprehendo-o, e lastimo os seus desgostos. Tambem frei Simão se deixou tocar por essa desgraçada corrente, que lhe allucinou a cabeça, mas que não conseguiu, creio eu, minar-lhe ainda o coração. Ignacio da Fonseca não podia duvidar das crenças politicas de padre Antonio, mas ficou pensando que o espectaculo dos grandes crimes, que a liberdade tinha commettido em França, Hespanha e Portugal, lhe haveria escurentado a razão. Padre Antonio vivia muito concentrado, resando prostrado no oratorio, e teria enlouquecido de terror na meditativa solidão do presbyterio. O facto de ter sido chamado para confessar frei Simão de tal modo abalaria a sua debilitada intelligencia, pensava o tio de José Maximo, que não conservava uma limpida recordação d’esse facto. Não ouvira o frade, não soubera explorar-lhe a consciencia, estivera junto d’elle sob a commoção do terror. Ora a verdade era que padre Antonio fôra á casa do Outeiro muito constrangido pela supposta aproximação de um impio. A pallidez que levava nas faces o denunciava. Mas a impressão com que voltára era de grata surpresa, por haver encontrado uma consciencia honesta, até meticulosa, a par de um cerebro ardente, exaltado pelas paixões politicas da epocha. Frei Simão podia ser um desvairado, e era-o, mas tinha horror ao crime e ao sangue. Padre Antonio voltára do Outeiro com esta agradavel convicção. Quando D. Maria Albina chegou a casa, o estado de Anninhas não tinha soffrido alteração. O doutor Corrêa Ribeiro, reconhecida a inefficacia das applicações da belladona e do opio, limitava-se a evitar que sobreviesse o marasmo pelo confinamento no leito. Procedia de accôrdo com o parecer unanime de outros collegas, de muitas leguas ao redor, que tinham ido observar, por curiosidade, esse extranho caso de aphonia na paralysia convulsa. Obrigava a doente a levantar-se todos os dias. Vestida, não sem difficuldade, pelas irmãs, Anninhas erguia-se a custo, lentamente; hesitava durante alguns segundos, até que se resolvia a dar alguns passos, timidos a principio, rapidos depois, com o corpo muito inclinado para deante, como se fosse a cahir. Francisco Marques amparava-a na propulsão, receioso de a vêr perder o equilibrio; era a sua muleta. Um dia, Anninhas, depois de ter hesitado ainda por mais tempo que de costume, avançou, n’essas carreiras vertiginosas que a irmanavam a uma creança quando ensaia as primeiras passadas, na direcção do corredor, que conduzia ao pomar. Francisco Marques não quiz contrarial-a; acompanhou-a amparando-a. Como se subitamente se houvesse fatigada, Anninhas sentou-se no banco onde tinha estado com José Maximo no dia em que elle consultara a folha de trêvo. Mudava de posição a cada momento, voltando o tronco para o lado direito e para o lado esquerdo, com a cabeça erecta, o pescoço rigido. Com o olhar muito fixo, encarava nas arvores e no banco, onde parecia notar um logar devoluto junto a si. O Marques e as outras pessoas da casa, muito sobresaltadas, queriam tiral-a d’aquelle banco, comprehendiam o que se estava passando no seu espirito, mas não ouzavam compellil-a a levantar-se. Como porém o tremor dos braços augmentasse quando Anninhas rastejou os olhos pelas folhas verdes do trêvo, Francisco Marques soergueu-a delicadamente, e com affavel pressão a foi obrigando a entrar em casa. Mas reparou em que a propulsão era então menos violenta, e em que, pelo contrario, havia tendencia para a retropulsão, como tibia manifestação talvez do desejo que a doente provavelmente sentia de permanecer no pomar. Não era difficil adivinhar todo o pensamento de D. Anna de Vasconcellos: o trêvo, consultado no dia em que José Maximo e ella estiveram ali sentados no banco de cortiça, fallára verdade,—uma horrivel e irremediavel verdade. Se a pobre senhora tivesse lido algum dia as elegias de Camões, lá haveria encontrado este verso presago: O trevo, que é sentido apartamento. XXI O napoleão de ouro Perdi a minha Nize, a gloria minha, A minha liberdade: Remotos estes bens, que bem me resta? Bocage—«Ode á Fortuna». José Maximo, entrando em Hespanha, passou uma vida miseravel até chegar a Ciudad-Rodrigo. A ferramenta de caldeireiro apenas lhe servia para disfarce, pois que elle ignorava completamente o officio. Pensava em aprendel-o, acceitando a indicação do acaso. Mas faltavam-lhe recursos, que aliás podia ter, para os primeiros dias de jornada. Logo explicaremos este caso. Viu-se, pois, na necessidade de ir mendigando, pedindo pelo amor de Deus um bocado de pão. Seguira em direcção a Ciudad-Rodrigo por lhe parecer que a sua presença n’uma cidade daria menos nas vistas do que em qualquer das pequenas povoações fronteiriças, como Zarza ou Perales. Obedecendo a esta consideração, não queria comtudo affastar-se muito da raia portugueza. O coração—a saudade e o amor—prendia-o a Portugal. Receiava saber o que teria acontecido a sua mãe e a Anninhas, mas desejava sabel-o. Pobre mãe! teria talvez morrido de afflicção ao vel-o tão desgraçado. E Anninhas? Quem o podia saber! A fronteira de Portugal levantava-se agora entre o passado e o presente, impenetravel como a muralha da China. Chegando a Ciudad-Rodrigo, viveu na maior miseria os primeiros dois dias. Esmolava por portas. Foi, no terceiro dia, bater a uma, em cujo páteo uma creança bem vestida, e sentada ao sol, estava estudando em voz alta. Era um menino de doze para treze annos de idade. Quando o pequeno estudante deu com os olhos em José Maximo, teve um movimento de repulsão. Aquelle caldeireiro fez-lhe medo, tão feio era depois que queimara e retalhara o rosto. José Maximo comprehendeu a impressão que produzira, e disse ao menino, em correcta prosodia hespanhola: —Não tenha medo de mim, que não faço mal a ninguem. Sou um desgraçado caldeireiro, que, por falta de trabalho, se vê obrigado a pedir esmola. O menino deteve-se indeciso, e o caldeireiro disse ainda para captar-lhe a sympathia: —Vi que estava estudando latim. Custa-lhe a decorar as declinações? O pequeno ficou admirado da pergunta, achando, sem medir todo o alcance, que não fazia sentido a profissão d’esse homem com o facto de conhecer a existencia das declinações latinas. José Maximo, vendo a surpreza que causára, arrependeu-se do que dissera. Podia ter-se denunciado n’aquella hora. Mas conheceu tambem que, na alma do seu interlocutor, succedera á surpresa do primeiro momento um tal ou qual respeito pelo mendigo que parecia saber mais do que elle. Perguntou-lhe o menino se sabia latim. José Maximo, não querendo contradizer-se flagrantemente, disse-lhe que alguma coisa tinha aprendido em pequeno, mas que a sua má cabeça o levára a abandonar os estudos, pelo que se vira na necessidade de procurar um officio. Que pozesse o menino os olhos n’elle, e na sua desgraça, para estimular-se a estudar por amor do futuro. A mãe do menino, andando na sua lide domestica, ouviu estas ultimas palavras, e veiu vêr quem era a pessoa que tão acertado conselho estava dando a seu filho. Ficou tambem surprehendida ao vêr o miseravel caldeireiro, pouco menos de hediondo. A sua surpreza subiu de ponto, quando a creança noticiou á mãe que aquelle homem sabia latim. Mas, após um momento de reflexão, talvez de desconfiança, disse a hespanhola ao filho: —Que tonto que tu és! Elle sabe lá latim! José Maximo offendeu-se com estas palavras, e repetiu a breve narração que tinha feito momentos antes, quando estava só com o menino. E, rapidamente, declinou os nomes latinos que lhe occorreram, sem emperrar n’um unico caso. Mãe e filho começaram a interessar-se pelo mysterioso caldeireiro. A hespanhola disse-lhe que, se tinha fome, lhe daria de comer, a troco d’elle ensinar a lição ao filho. José Maximo confessou a verdade: tinha realmente fome. E, agradecendo á Providencia este soccorro inesperado, sentou-se no páteo a ensinar o menino. A breve trecho assaltou-o a ideia de que por aquelle caminho chamaria sobre si justificadas suspeitas. Mas logo se acalmou dizendo de si para si: —Se tal acontecer, foi Deus que me deparou esta creança para me punir. O caldeireiro, a pedido do menino, voltou no dia seguinte para tornar a ensinar-lhe a lição. A hespanhola queria que o seu filho soubesse muito bem latim, porque o destinava para clerigo. O pae do menino quiz d’ahi a dias vêr o caldeireiro. Fallou-lhe, observou-o, e disse á mulher: —Este homem teve educação. Aqui anda grande mysterio. José Maximo mostrava-se muito grato áquella familia, que lhe matava a fome, e que todos os dias lhe proporcionava occasião, durante algumas horas, de esquecer os seus dolorosos pensamentos. Estabelecida uma corrente de sympathia entre os hespanhoes e o caldeireiro, José Maximo julgou dever responder com lealdade ás repetidas perguntas que, com insistente curiosidade, lhe fazia o pae do menino. Contou a sua vida, as suas aventuras politicas, os seus infelizes amores, e a parte que tomara involuntariamente no assassinio dos lentes de Coimbra. A hespanhola chorava de o ouvir, e o marido mostrava-se muito interessado pela sincera narrativa. José Maximo revelou tambem o desejo de saber noticias de sua mãe e de Anninhas, bem como de conhecer o epilogo da tragedia do Cartaxinho. Explicou as razões por que não queria escrever a frei Simão de Vasconcellos: era, principalmente, a vergonha da sua propria infamia, e, secundariamente, a probabilidade de que a carta fosse interceptada e a justiça de Portugal viesse a conhecer assim o seu paradeiro. Por este motivo não queria tambem escrever a um amigo, residente em Evora, e ahi estabelecido como lettrado, porque receiava compromettel-o e comprometter-se. O hespanhol, que era negociante, prometteu a José Maximo valer-se das relações commerciaes que tinha em Portugal, na cidade da Guarda, para saber o que elle tanto desejava. Passaram-se mezes sem que viesse resposta. O hespanhol insistiu nas perguntas. O correspondente da Guarda respondeu que os estudantes presos pelo crime de Condeixa haviam sido enforcados em Lisboa no mez de junho. A isto poderia ter respondido já, mas esperava, para o fazer, pelas noticias que pedira para o Fundão e Oliveira de Azemeis, as quaes não haviam chegado ainda. Tornaria, porem, a escrever. Admirava-se, sobretudo, de que do Fundão, por ficar a menor distancia, lhe não tivessem respondido logo. —Enforcados! exclamou José Maximo ao ouvir a noticia. A morte com infamia, de baraço e pregão, talvez com a cabeça decepada e as mãos cortadas. Oh! é horrivel! é horrivel! Trez semanas depois, chegava a Ciudad-Rodrigo nova carta do negociante da Guarda. O seu correspondente do Fundão pedia desculpa de não ter respondido immediatamente por se haver esquecido da pergunta na azáfama dos negocios. Dizia que a senhora, de quem lhe pediam noticias, se apaixonára a tal ponto pela desgraça do filho, que morrêra um mez depois do assassinato dos lentes, justamente no mesmo dia e á mesma hora em que o crime havia sido commettido. Era uma coincidencia notavel, que tinha impressionado muito os habitantes do Fundão, os quaes se lastimavam de que dois patricios houvessem tomado parte n’aquelle horrendo crime. Dos dois, um, o filho d’aquella senhora, havia fugido para Hespanha, segundo constava; o outro, Neves Carneiro, fugira, acompanhado pelo pai, tambem para Hespanha, e a justiça por pouco que o não tinha apanhado no Fundão. José Maximo ficou profundamente impressionado com a morte da mãe, cuja responsabilidade a si proprio imputava, e com a extranha coincidencia, que a elle, mais do que a ninguem, por ser extremamente supersticioso, se affigurava acontecimento sobrenatural. A sua tristesa augmentou. Leccionando o menino, alheiava-se a espaços, muito abstracto, perdendo o seguimento das idéas. —Que estavamos nós dizendo? perguntava elle quando despertava das suas atormentadas abstracções. Sentia um recondito desejo de fugir para mais longe de Portugal, de ir procurar a morte em terra onde não fosse facil encontrar quem lhe podesse avivar memorias do passado. Mas prendia-o ainda á patria a agridoce curiosidade de saber noticias do Outeiro: queria averiguar se tambem ali seria despresado, ou esquecido. Essas noticias chegaram tardiamente, posto que pouco minuciosas, em junho de 1829: Uma das meninas da casa, que namorava um dos estudantes homisiados, havia sido atacada de paralysia ao ter conhecimento do crime do Cartaxinho. Perdêra, com grande surpresa dos medicos, o uzo da voz. Frei Simão havia sido preso, e estava na cadeia da Villa da Feira, sem que se podesse aventar que destino viria a ter: talvez a forca. Fulminado por este novo golpe, despenhado n’um inferno de remorsos, de angustias sobre angustias, dilacerados os ultimos laços que o prendiam a Portugal, resolveu abandonar a Hespanha, como se, affastando-se da fronteira portugueza, quizesse fugir ás chammas que esbrazeavam o inferno da sua tortura. Ia perder o auxilio que tão compassivamente lhe prestava aquella familia hespanhola. Mas entendia que merecia esse castigo a si proprio imposto: devia morrer na desgraça quem só desgraças havia semeado em torno de si. Procuraram os hespanhoes demovel-o d’esta resolução, que foi exposta com firmesa. José Maximo resistiu, e acabou por dizer: —Eu trago comigo o contagio do infortunio, e não quero que elle alcance uma familia, de quem tantas mercês tenho recebido. Se eu ficasse, isso viria a acontecer fatalmente, não sei como, mas aconteceria de certo. Esta consideração fez maior impressão á hespanhola do que ao marido. Quando José Maximo se despediu, toda aquella familia chorou, principalmente o menino. O hespanhol quiz entregar ao infeliz portuguez uma bolsa com dinheiro. José Maximo recusou-a, agradecendo. Toda a familia insistiu vivamente para que acceitasse. José Maximo quedou-se pensativo alguns momentos, e disse por fim: —Acceitarei, com uma condição. —Qual? perguntou o hespanhol. —Que _usted_ acceitará em troca, e como testemunho da minha gratidão, este napoleão de ouro, que me deu um dia frei Simão de Vasconcellos, e que eu sempre procurei conservar não obstante ter padecido fome. O hespanhol ficou a olhar para o portuguez, muito commovido. José Maximo pediu uma tesoura, descoseu o forro do casaco velho que vestia, tirou o napoleão que trazia escondido, beijou-o, com os olhos razos de lagrimas, e offereceu-o ao hespanhol, cuja mão beijou tambem. Depois acceitou a bolsa. Passado um anno, em 1830, quando constou em Ciudad-Rodrigo que um dos estudantes portuguezes, Neves Carneiro, havia sido preso em Zarza, e entregue ao cordão dos soldados de D. Miguel que o esperavam na fronteira, disse o hespanhol á mulher: —Isso mesmo aconteceria ao pobre Maximo, se não tivesse fugido. Coitado! O que será feito d’elle agora? XXII A paralytica La paralysie agitante n’est pas seulement une maladie des plus tristes en ce qu’elle prive le malade de l’usage de ses membres et qu’elle le réduit tôt ou tard à une inertie à peu près absolue: c’est encore une affection cruelle par suite des sensations pénibles qu’eprouve le malade. Charcot—«Œuvres complètes», tome I. Havia já quatorze mezes que frei Simão estava encarcerado na cadea da Villa da Feira. Graças á sua robusta compleição podera resistir a morte, mas o braço esquerdo ficára leso, e o ouvido correspondente perdera a audição. Não afrouxava, porem, com estes soffrimentos o valor do seu animo corajoso, e muito menos o incommodava a ideia das enormes despesas que tinha feito no carcere, onde, durante todo esse tempo, havia sido visitado, duas e trez vezes ao dia, pelo medico e cirurgião. O frade reagia, como um forte, contra a oppressão da desgraça, que teimava em perseguil-o. Pensava na maneira de subtrair-se ás garras do absolutismo, de fugir, para correr a Cezár, a abraçar a pobre Anninhas, victima de um destino crudelissimo, e a justar contas com os seus adversarios politicos, para vingar as desgraças que elles haviam acarretado sobre toda a sua familia. Arriscaria a vida? Pouco lhe importava isso. Em risco estava ella desde que o feriram e prenderam. Parecia até que uma extranha fatalidade o quizera salvar dos ferimentos que recebera, para lhe preparar um genero de morte mais affrontosa, na fôrca, ás mãos dos seus inimigos. Mas não queria agora morrer sem primeiro ter ido a Cezár: ao menos isso, já que não podia ir tambem a Arouca, libertar Margarida Candida, visto que a acclamação de D. Miguel havia estrangulado todas as liberdades publicas em Portugal. Entrou o frade de ponderar os meios que poderiam facilitar-lhe a evasão. Eram difficeis de encontrar, a não ser pela connivencia do carcereiro. Resolveu-se a preparar o terreno para subornal-o. Mas o carcereiro, sem repellir abertamente a proposta de uma transacção n’esse sentido, temia-se da severidade com que certamente seria castigado. —Para evitar esse perigo, ha um remedio, disse-lhe frei Simão. Vossemecê foge tambem comigo. O carcereiro pensou no caso, e acceitou o alvitre. Resolveu-se a fuga, mas reconheceu-se que não poderia realisar-se pela porta do edificio, sob qualquer disfarce, porque as sentinellas tinham instrucções muito severas. Foi frei Simão quem se lembrou de que a evasão só poderia effectuar-se pelo telhado, saltando os fugitivos para cima do predio contiguo. Esta operação seria facil, mas o abrir passagem pelo grosso tecto de castanho, seria difficil. Era precisa a intervenção de um carpinteiro. Adoptou-se o expediente de requisitar os serviços de um carpinteiro de confiança, com o pretexto de que se tornava urgente construir um armario na cellula do frade. O carcereiro, sob sua responsabilidade, chamou um carpinteiro de Milheirós da Feira[4], de quem era amigo intimo. Em vez de se fazer o armario, fez-se uma abertura no tecto. Frei Simão, cuja franqueza de caracter chegava ás vezes a ser imprudencia, foi visitado na cadeia, no dia destinado á evasão, por um visinho de Cezár, Manoel Francisco Relva, miguelista moderado, e excellente homem, muito respeitoso para com a familia do Outeiro. Á despedida, o frade disse-lhe sacudidamente: —Fujo hoje. —É impossivel! respondeu assombrado o Relva. —Vossemecê o saberá, replicou frei Simão. Effectivamente, o frade e o carcereiro fugiram n’essa noite, subindo ao telhado da cadeia, e passando ao da casa visinha. Privado do movimento do braço esquerdo, pode calcular-se que prodigios de equilibrio e de esforço não teria frei Simão operado para, n’essas condições, realisar a evasão. De telhado em telhado, pela viella de Rolães, foram os dois fugitivos descer á Eira. Ahi despediram-se um do outro. Frei Simão dirigiu-se para casa do capitão Varella, de Espargo, onde pediu abrigo por algumas horas. Contra o conselho d’este amigo, quiz mudar de escondrijo, e seguiu jornada, durante a noite, para S. João da Madeira, contando com a protecção de outro amigo não menos dedicado que o capitão Varella. Em S. João da Madeira soube que os seus adversarios politicos reclamavam que se galardoasse com o laço da forca a provocadora zombaria da evasão. Era á conta de provocação irritante que elles lançavam mais esse acto de audaciosa coragem. A casa do Outeiro fôra effectivamente cercada e revistada durante duas noites consecutivas. —Que infamia! exclamou frei Simão quando o seu amigo de S. João da Madeira lhe deu noticia do facto. Nem sequer respeitam a desgraça, a doença de minha pobre irmã! Ao cabo de quinze dias, constou-lhe que era no Porto que as justiças o procuravam; já haviam dado um assalto á casa de Frederico Pinto. Então achou que seria menos perigosa a sua ida a Cezár. Tomou um disfarce, que as barbas crescidas durante o tempo da prisão completavam, e metteu-se de noite ao caminho. Encontrou na estrada um homem, que, apesar da escuridão, fez reparo no frade. Era um vendilhão de peixe miudo, que costumava percorrer as povoações com grandes cargas de sardinha fresca de Espinho. Frei Simão conheceu-o, mas ficou duvidoso sobre se tambem teria sido reconhecido; notára apenas que o vendilhão o olhára com curiosidade. Tanto bastou, porém, para que pensasse em acautellar-se. Como? e aonde? Quanto mais se aproximava da sua terra natal, mais devia temer a perseguição. A noite ia alta, não tardaria a arraiar a primeira claridade da manhã. Não sabia a que porta podesse bater sem o perigo de uma denuncia, quando avistou as duas torres da egreja de Cezár. Lembrou-se então das palavras da Sagrada Escriptura: _pulsate et aperietur vobis_. O abbade era um absolutista moderado; mas frei Simão conhecia-lhe bem a alma incapaz de uma vingança politica; quanto ao padre Antonio Pinheiro, bastou recordar-se das doces palavras de charidade evangelica, que elle lhe havia dito quando o confessára. Resolveu-se a ir pedir abrigo á abbadia. E foi. Bateu á porta da Residencia na occasião em que o padre Pinheiro, na ausencia do abbade, estava fazendo as orações da manhã. Uma voz perguntou de dentro: —Quem está ahi? Frei Simão conheceu a voz de padre Antonio, e respondeu: —Um desgraçado. Sentiu dar volta á chave. A porta abrira-se. Padre Antonio achou em frei Simão um homem desconhecido; não sabia quem fosse. O seu primeiro movimento denunciou talvez alguma inquietação. Frei Simão disse-lhe, parado no limiar: —Vejo que o sr. padre Antonio me não conhece. Pois eu sou um desgraçado. Chamo-me frei Simão de Vasconcellos. —Ah! exclamou padre Antonio com o rosto subitamente illuminado de uma alegre tranquillidade. Seja bem vindo a esta casa. Se fosse um desgraçado, teria aqui o seu logar; mas não são desgraçados aquelles a quem não falta a misericordia de Deus. Porque a verdade é que, no meio das angustias que tem padecido, Vossa Reverencia recebeu do Todo Poderoso o favor da resignação ou da coragem, que jamais o desamparam. Frei Simão explicou o seu desejo de ir ao Outeiro vêr a pobre paralytica, e o receio de poder ser denunciado pelo vendilhão que encontrára no caminho. —Espreitaremos a occasião de realisar o seu justo desejo, respondeu-lhe padre Antonio. Vossa Reverencia deve considerar-se aqui em inteira segurança. Eu sou ministro de uma religião de misericordia: adoro o Deus do Calvario, que morreu perdoando. O sr. abbade, quando voltar do Porto, comprehenderá e desculpará o meu procedimento. Tambem não estão cá os criados, porque, segundo o costume, acompanharam seu amo. Minha tia é uma alma honesta e leal, incapaz de fazer aquillo que eu não desejar que ella faça. De modo que não deve Vossa Reverencia receiar da sinceridade dos hospedeiros, mas apenas desculpar-lhes a insufficiencia da hospedagem. Comtudo, quem está habituado a duros trabalhos não tem tamanhas exigencias de bem estar como aquelles que nasceram e teem vivido felizes. —O que eu não queria era incommodar o sr. padre Antonio, e muito menos compromettel-o no caso de uma denuncia. —Comprometter-me?! Pois acaso compromette-se um sacerdote quando exerce uma das obras de misericordia: dar pousada aos peregrinos? De mais a mais, toda a gente aqui suppõe que Vossa Reverencia, depois da sua fuga da Villa da Feira, tinha ido esconder-se no Porto. —A minha fuga deve ter causado grande indignação. Mas o instincto da liberdade é innato no homem. Obedeci a elle. —Assim é. As paixões politicas são por via de regra intransigentes; não poupam os adversarios. Era pois natural que a noticia da evasão causasse surpresa e até colera. Estamos n’uma epocha calamitosa, de sentimentos fogosos e cegos. Mas felizmente Vossa Reverencia dispõe de um animo forte para arrostar com todos os perigos. Agradeça-o a Deus. Se a historia da evasão, que aqui se conta, é exacta, o sr. frei Simão operou prodigios de perseverança na adversidade. O frade descreveu minuciosamente todos os episodios da fuga. Havia nas suas palavras um vivo colorido, que padre Antonio admirava, e que o impressionava muito. —Meu Deus! o que tem passado! exclamou padre Antonio quando frei Simão concluiu a narrativa. —O que eu tenho passado! repetiu com profunda tristesa o frade. E a minha pobre irmã paralytica, perdida talvez para sempre! A minha pobre Anninhas! Deus perdôe a quem lhe fez saber a ruim noticia, que a reduziu á vida de estatua. —Deus perdôe. Mas não façamos juizos temerarios. Deus tomará contas ao verdadeiro culpado. N’isto sentiu-se levantar o fecho da porta da cosinha. —É minha tia, que vem da horta, disse padre Antonio. Deixe-me Vossa Reverencia ir avisal-a do que tem de fazer. Entretanto, venha descançar ao meu quarto. Frei Simão ficou só no quarto de padre Antonio, onde a mobilia contrastava, pela humildade, com as cadeiras, contadores e tamboretes, que opulentavam a sala de recepção do abbade Moreira Maia. Parou um momento a olhar para um pequeno papel pregado na parede. Era uma tabella das missas que padre Antonio devia dizer n’aquella semana. Sob o titulo de _Vivos e defuntos_, frei Simão leu o seu proprio nome. Era o terceiro da lista, e coincidia com aquelle mesmo dia da semana. Foi grande a commoção do frade. —Que santa alma a d’este padre! disse mentalmente. E, como padre Antonio se aproximasse, frei Simão de Vasconcellos, quando elle voltou, cahiu-lhe aos pés, de joelhos, beijando-lhe a mão. Padre Antonio, muito surprehendido, abençoou-o, dizendo: Não tem Vossa Reverencia que agradecer. Buscae e achareis, diz a Biblia. O que Vossa Reverencia aqui tem, é Deus que lh’o envia e concede. Alludia á hospedagem; não suspeitando de que o frade houvesse lido a tabella das missas. —Agora, continuou, são horas de eu ir para a egreja. Ó minha tia, disse levantando a voz, faça favor de picar o sino. Vão sendo horas. E tornando a voltar-se para frei Simão: —Vossa Reverencia não pode ir á egreja, mas pode acompanhar-me em espirito. Deus está em toda a parte. —Ouvirei d’aqui, em joelhos, a missa que Vossa Senhoria vae celebrar. Estas paredes serão transparentes para a minha fé n’esta hora de gratidão fervorosa. Padre Antonio não comprehendeu o duplo sentido d’estas palavras. Quando o sino tangeu pela segunda vez, o coadjuctor de Cezár foi vêr á tabella a tenção da missa d’aquelle dia. Não denunciou no rosto o menor signal de surpresa pela coincidencia. Sahiu sem olhar para frei Simão, dizendo um affectuoso: _Até já_. Passado um quarto de hora, frei Simão, que estava de joelhos rezando com as mãos postas, voltado para a egreja, sentiu bater de rijo á porta da cosinha. Procurou concentrar-se na oração, quando ouviu fallar; não queria ser perturbado. Mas pareceu-lhe ouvir o seu nome, pronunciado por uma voz de mulher, e cedeu á tentação de escutar, apurando o ouvido direito, que restava illeso. —Era elle, sr.ª Gertrudes, dizia a interlocutora da tia de padre Antonio. Disse-me o Elias peixeiro que era elle, com umas barbas grandes, que até parecia um salteador. Arrenego eu o homem! —Não mettas a tua alma no inferno, mulher! respondia Gertrudes Magna. Trata de vender o teu pão fresco, e não andes a dar noticias que podem causar desgraças, e que tu não sabes se são verdadeiras. O Elias peixeiro pode ter-se enganado, e de certo se enganou. —Elle disse que se não era o frade do Outeiro, o diabo o jurasse. —Credo! mulher! que logo pela manhã começas a fallar no cão tinhoso! Tu encarregas a tua alma! O que consta é que o sr. frei Simão está escondido no Porto. Lá era elle tão pouco atilado que viesse metter-se na bôca do lobo! Olha que eu quero a minha sêmea mais leveira. Não sabes que já não tenho dentes?! Melhor tu olhasses mais pela vida! N’este momento o sino dava o signal de—_Levantar a Deus_. —Vai-te embora, mulher, disse a velha Gertrudes Magna. Deixa-me rezar um _Bemdito_ entre a hostia e o calix, já que não posso ir á missa para ter o almoço prompto a meu sobrinho. Frei Simão continuou acompanhando mentalmente o cánon da missa. —_Hoc est enim corpus meum_, pensára elle, e conservava-se recolhido como se tivesse nas mãos a particula sagrada. Na cosinha, Gertrudes Magna concluia em voz audivel a oração correspondente ao levantar da hostia. —...tão real e perfeitamente como está nos altos ceus. Augmentára, com o dialogo que tinha ouvido, a fé de frei Simão de Vasconcellos. Senão fôra o Passal, estaria, áquella hora, em perigo de perseguição. O peixeiro havia-o conhecido ou pelo menos suspeitava da sua chegada a Cezár. A faltar-lhe a protecção que encontrára na abbadia, o fugitivo seria recapturado e posto em maior segurança. Quando padre Antonio voltou da egreja, frei Simão saudou-o dizendo: —Foi, pode dizer-se, um _Te-Deum laudamus_ rezado. Padre Antonio illudiu a resposta observando: —Sempre temos motivo para louvar o Senhor. Que Elle se digne continuar a proteger os que carecem da Sua protecção. —E eu mais do que ninguem, replicou o frade contando ao coadjuctor o dialogo que tinha ouvido. —Não importa, disse padre Antonio. Vossa Reverencia pode considerar-se, debaixo d’este tecto, ao abrigo de perseguições. Ninguem se lembrará de o vir aqui procurar. E, ouvindo esse dialogo, já teve occasião de experimentar a lealdade de minha tia. Deixemos passar o vento da desconfiança, acalmar-se o mar das suspeitas. O peior é de Vossa Reverencia, que terá de permanecer alguns dias aqui. Quando julgarmos opportuno, irá ao Outeiro vêr a sua familia, onde aliás não convém que se demore. Aconselhado pelo coadjuctor, frei Simão de Vasconcellos cortou as barbas, que já tinham sido notificadas pelo vendilhão de peixe. O boato da apparição do frade em Cezár corrêra durante um ou dois dias, mas padre Antonio, a quem Ignacio da Fonseca e outros visinhos fallaram no assumpto, foi de parecer que, depois das duas buscas dadas pela justiça á casa do Outeiro, frei Simão não iria metter-se por muito tempo na bôca do lobo. Ou não teria vindo ou já se teria retirado. Ora o coadjuctor havia dito a frei Simão: —Se me communicarem a suspeita da vinda de Vossa Reverencia a Cezár, responderei, sem encarregar a minha alma, com a subtileza do franciscano, que enfiou uma das mãos pela manga da outra e affirmou que por alli não tinha passado certo criminoso. O meu dever é servir a Deus, e Deus manda dar pousada aos perigrinos. Vossa Reverencia, na situação em que se acha, não é senão um perigrino. Quando chegou a noite em que frei Simão tinha de ir a Cezár, padre Antonio disse-lhe com uma resolução que não estava muito nos seus costumes de malleavel brandura: —Eu vou com Vossa Reverencia, sem o menor intento de prejudicar o recato das suas expansões. Mas como hospedeiro, quero correr a mesma sorte do hospede. Frei Simão procurou demovêl-o do proposito; não conseguiu. —Figuraremos, insistiu o coadjuctor, ir levar o viatico a um moribundo; _quod Deus avertat_. Vossa Reverencia veste uma das minhas batinas e cobre um dos meus capotes; são andainas velhas, mas que servem para de noute. Preveniremos assim o caso de algum mau encontro, o que aliás não é de esperar. Mas, de passagem, ninguem poderá averiguar se Vossa Reverencia é o nosso sachristão ou algum ecclesiastico, que accidentalmente seja hospede do sr. abbade. E, receioso de que frei Simão podesse vêr n’estas involuntarias palavras alguma allusão pungente, accrescentou com promptidão: —E não se enganarão n’este ultimo caso, porque Vossa Reverencia, se deixou o convento, não deixou a Deus. Eu o sei. Frei Simão não conseguiu, mais uma vez, evitar que padre Antonio Pinheiro o acompanhasse. Sahiram ambos da abbadia, alta noite, caminhando em silencio. A distancia é pequena: os dois edificios, o Passal e o Outeiro, avistam-se um ao outro. A familia de frei Simão estava prevenida. Foi Francisco Marques quem veiu abrir, discretamente, a _Porta Vermelha_. E logo após elle correram pressurosas D. Maria Albina e D. Antonia[5]. As lagrimas d’estas duas senhoras diziam mais do que as palavras, n’aquelle lance solemne. Padre Antonio assistia, como em extasi, a esse commovente drama intimo, em que uma familia estreitava, no infortunio, os seus laços de extremoso affecto. E mais uma vez, depois que conhecia de perto frei Simão, o coadjuctor de Cezár lastimava a cegueira das paixões politicas, que fazem com que os adversarios se apreciem uns aos outros com revoltante injustiça. Ali estava elle no meio de uma familia de _malhados_, e não poderia encontrar outra mais respeitavel, nem mais exemplar na resignação christã. O frade encaminhou-se, seguido pelas irmãs, ao quarto de D. Anna. Padre Antonio quedou-se no corredor com delicado proposito; mas frei Simão, voltando-se, e vendo-o parado, disse-lhe amoravelmente: —Venha comigo, sr. padre Antonio. Todos somos familia. Anninhas estava sentada n’um canapé: os braços ligeiramente desviados do tronco; as mãos tremulas—com os dedos muito juntos, o pollegar sobreposto ao index—apoiadas na cintura; os joelhos tendendo um para o outro n’um movimento de adducção; os pés mettidos para dentro; a cabeça pendida para deante. Não viu frei Simão logo que elle entrou no quarto. Mas quando os seus olhos encontraram o vulto do frade, que, commovido, estacára deante do canapé, os labios da pobre senhora, ordinariamente cerrados e ás vezes franjados d’espuma, abriram-se n’uma indiscriptivel sensação de surpresa, e um grito, agudo, vibrante, como aquelle que se seguira á leitura da carta anonyma, eccoou no aposento, ouvindo-se em toda a casa. Frei Simão, chorando effusivamente, avançou abrindo os braços para a irmã, que procurava levantar-se do canapé, e padre Antonio Pinheiro, cahindo de joelhos, disse em voz alta, uma voz repassada de uncção religiosa, este versiculo de David: —_Domine, labia mea aperies: et os meum annuntiabit laudem tuam._ Senhor, abrirás os meus labios: e a minha bôca annunciará o teu louvor. XXIII Previsão do frade É um ensino efficaz o do infortunio. Julio Diniz—«Uma familia ingleza». Frei Simão, exultante de alegria, esquecera-se de si mesmo para só se lembrar da irmã, e dissera a padre Antonio Pinheiro: —Aqui tem a rasão por que eu queria vir a Cezár. Dizia-me o coração que a pobre Anninhas, se me tornasse a vêr, recuperaria a voz. E assim aconteceu! Deus louvado! Louvado seja o Senhor! —Louvado seja! respondeu padre Antonio Pinheiro. Anninhas estava ainda convulsa, não podia andar, mas fallava, fallava menos do que chorava, abraçando o irmão e as irmãs. —Foi um milagre! exclamava D. Maria Albina. —Deus, respondeu padre Antonio, não falta nunca aos que se lembram de recorrer á Sua misericordia infinita. Mas não queiramos mais do que podêmos receber. Esta senhora—indicando D. Anna—está fatigada da commoção extraordinaria por que passou; precisa descançar. E o sr. frei Simão, que deve julgar-se contente com a felicidade obtida, não deve demorar-se n’esta casa. É prudente voltarmos ao Passal, que não vá alvoroçar-se a freguezia com a noticia de que alta noite se ouviu gritar alguem na casa do Outeiro,—o que significa algum acontecimento importante. Frei Simão concordou e, abraçando as irmãs, despediu-se. —Até quando, mano? perguntou D. Antonia. —Eu sei lá?! respondeu frei Simão. Sou uma ave errante sem ninho certo. O frade e padre Antonio recolheram ao Passal, e estiveram conversando largamente durante o resto da noite. Frei Simão disse ao coadjuctor: —Agora, meu amigo, visto que minha irmã está salva de maior desgraça, Deus louvado! resta pensar em mim. Refiro-me, sr. padre Antonio, á minha liberdade individual, a esta miseravel liberdade, cheia de duvidas e de incertesas, que eu mesmo, se a quiz possuir, tive de rehaver violentamente por meio de uma evasão,—como um salteador ou como um assassino. Mas o meu egoismo não pode ser tão exigente e tão cego, que procure acorrentar as pessoas, que eu mais estimo, aos perigos da minha aventurosa existencia. Uma d’essas pessoas é, alem da minha familia e de um desgraçado que devia fazer parte d’ella, Vossa Senhoria. Por isso, beijando as mãos ao meu generoso hospedeiro, e certificando-o de que lhe serei eternamente grato, vou-me por ahi fóra, não sei se como um peregrino sem norte ou como uma féra, que tem de emboscar-se por selvas e juncaes para não ser perseguida pelos homens. O coadjuctor, com semblante mortificado, ficou-se a olhar para frei Simão. Ao cabo de alguns momentos de doloroso silencio, disse elle: —Pois que!? Vossa Reverencia, que obteve esta noute uma singular mercê, já descreu da misericordia divina!? Se os bens da terra não duram muito, porque a alma precisa purificar-se pelo soffrimento, os males não duram sempre. Sem esperança, a vida tornar-se-hia um fardo insupportavel. Mas a clemencia de Deus creou a esperança como lenitivo ás dores terrenas: é um raio de sol que adelgaça as trevas do soffrer humano. Todavia, para merecer as boas graças do Senhor, é preciso que o homem não desagradeça, por actos de desatino, os favores que a Providencia lhe quer dispensar. Sahir d’aqui, soffra Vossa Reverencia que eu o diga, é uma imprudencia sem justificação possivel. Para onde vai, para onde quer ir o sr. frei Simão? Está enfastiado da minha companhia? Tem razão. Mas o sr. abbade voltará do Porto ao cabo de alguns dias, e com elle poderá praticar e conviver com maior agrado. Entretanto, fique, eu lh’o peço, em nome da charidade christã, que sinceramente chorará se amanhã tiver noticia de que as paixões politicas fizeram mais uma victima... —Oh! sr. padre Antonio! como eu lhe agradeço essa terna piedade para com um desgraçado! Vossa Senhoria tem-me amparado na dor como um pai carinhoso, cuja imagem eu conservarei eternamente no coração agradecido. Mas o dever de um fugitivo é... fugir. Para onde vou? Dir-lh’o-hei com o coração nas mãos. Procurarei um grande centro onde a tempestade das paixões humanas menos se sente por ter maior terreno para espraiar-se. Vou para o Porto, onde os visinhos incommodam menos, e onde ninguem me enxergará para alvejar-me com os golpes da vingança. —E aqui? perguntou padre Antonio desconsoladamente. —Aqui, respondeu frei Simão, a minha tranquillidade seria absoluta se apenas dependesse de Vossa Senhoria e do sr. abbade. Mas um acaso, o proprio faro da vindicta politica podia descobrir um dia o meu escondrijo, amanheceriamos com o Passal cercado por um cordão de soldados, que viriam levantar a lebre, e eu teria contribuido para acarretar trabalhos e perseguições sobre esta abençoada casa, onde a virtude mora. —A virtude! repetiu com suave tristeza o coadjuctor. A virtude! A tão deshumana epocha chegamos, que já o não esquecer de todo a doutrina do evangelho parece virtude! Virtuoso, eu! Não, meu amigo (permitta-me que tambem lhe dê este nome) eu sou um conservador por amor da solidariedade das instituições sociaes, que são apenas o reflexo das instituições divinas, onde o principio da suprema auctoridade é a lei suprema de que depende a harmonia do universo. Não odeio a liberdade, mas temo-a, porque foi em nome d’ella que a republica romana se dilacerou e que a republica franceza se tornou sanguinaria. Se alguem me podesse asseverar que seria possivel a radicação de um regimen de liberdade moderada e sábia, tendo por base a egualdade christã, eu, sacerdote de Christo, abençoaria esse regimen como uma aurora de paz, que viria fazer a felicidade dos homens. Não defendo o rei porque é rei; o humilde Jesus nunca o foi, senão por irrisão na cruz do Calvario. Defendo, sim, a ordem, a obediencia indispensavel á manutenção das sociedades constituidas sobre o principio da auctoridade. Temo porem as demasias do povo, que, na sua cegueira, forçou a mão dos julgadores do proprio filho de Deus, e que não poderá ser mais clemente para com os filhos dos homens. A revolução franceza desacreditou-se pela loucura sanguinaria e impia, que não poupou o throno do Altissimo. Eu, indigno representante da Egreja Catholica, não posso pensar de outro modo, mas tambem, em nome da Egreja, não posso deixar de ser benigno para com os que, inspirados por um sentimento nobre, e até christão, o levam comtudo ás vezes aos ultimos excessos do fanatismo, condemnavel não só n’elles, mas em todos, vencidos ou vencedores... Vossa Reverencia desculpe. Eu precisava abrir-lhe a minha alma, porque ao hospede em quem se confia deve ser franqueado o coração e a casa, e eu não tinha honrado ainda inteiramente a sinceridade da hospedagem. Fil-o agora, porque a occasião ageitou a confidencia. E, porque peço a Deus que me não deixe cegar de todo o entendimento, nem endurecer o coração, aqui estou para continuar a offerecer a Vossa Reverencia, sob minha responsabilidade, a sombra d’este tecto, e a lealdade do meu peito. Frei Simão, muito commovido, olhava amoravelmente no coadjuctor, e chorava, pela segunda vez na sua vida. Dir-se-hia que as lagrimas, por tão longos annos represas, haviam tomado gosto a minorar os trabalhos de frei Simão. Facilmente poderia o frade responder á sincera mas vulneravel argumentação do coadjuctor. Não o quiz fazer, para não correr o risco de parecer ingrato. Estivera ainda tentado a dizer-lhe que as grandes commoções sociaes são, como os grandes cataclismos da natureza, o prologo da paz e da ordem, que não se estabelecem nunca sem reacção; que Deus tirára o mundo do cahos, e que precisára tempo para agrupar harmonicamente os elementos e regular as leis por que se regem os astros na sua eterna gravitação; que a obra dos homens não podia ser mais rapida que a de Deus, mas que os primeiros desatinos de uma instituição social seriam indispensaveis para tornar apetecida a ordem e pacificação, que lhes haviam de succeder, como a bonança succede á tempestade. O que frei Simão quiz ver, nas palavras do virtuoso coadjuctor de Cezár, não foi a sua sincera dialectica, mas principalmente a sua grande alma, santificada por nobres sentimentos, cheia de generosos impulsos;—alma ao mesmo tempo timida e forte, mas clara como o crystal. Abraçou-o, sentiu consolação em pôr o coração de padre Antonio d’encontro ao seu coração reconhecido; mas insistiu na ideia de partir, procurando um destino, que, embora fosse desgraçado, o fosse apenas para elle. Frei Simão deixou o presbyterio durante a noite seguinte. Padre Antonio veio despedil-o fóra da porta, n’um anceio de commoção, que lhe roubava, por momentos, a luz dos olhos e lhe embargava a voz. Gertrudes Magna, a respeitosa distancia do sobrinho, chorava limpando as lagrimas ao avental de sirguilha. Dir-se-hia que se ausentava n’aquella hora uma pessoa de familia, o pupillo querido de duas almas virtuosas. O coadjuctor, quando o vulto de frei Simão desappareceu por entre as arvores, disse com desalento á tia: —Decerto o não torno a vêr... —Cruzes! Longe vá o agouro! respondeu Gertrudes Magna, procurando reanimar o espirito do sobrinho. —Não fallo por mim, minha tia; mas por elle. Eu vivo aqui em plena paz; elle vai sem saber para onde e para quê, e os perigos gostam de experimentar a coragem dos fortes. Aos fracos, que lhes não offereceriam resistencia, despresam. Padre Antonio não poude pregar olho toda a noite. Revolvia-se, agitado, no leito; voltava-se de um lado para outro, inquieto. Ao entre-luzir da manhã poz-se a pé. Ajoelhou deante do oratorio, e esteve rezando longo tempo. Quando Gertrudes Magna veio perguntar se podia ir picar o sino, o coadjuctor, muito abstracto, disse-lhe: —Olhe que me parece que o não torno a vêr... —Deus ha de fazer tudo pelo melhor, respondeu Gertrudes Magna, porque elle ou não será pedreiro-livre ou não parece da laia dos outros. —Pedreiro-livre! Ha-os, decerto, mas frei Simão não o é. Uma cabeça de fogo, sim. Não estivesse ausente o sr. abbade, e veriamos o que eu faria. —E que havias tu de fazer, padre Antonio?! —Iria com elle por ahi fóra; buscaria livral-o dos perigos a que o seu animo ardido decerto o exporá. Gertrudes Magna largou a rir, a rir. —Ora não querem lá vêr! O padre Antonio feito peregrino por montes e valles, como uma ovelha desgarrada, que se tresmalhou do rebanho! E ria, ria. O sobrinho não a ouvia rir. Cerca das nove horas da manhã, quando o coadjuctor tinha acabado o frugal almoço, bateram á porta. Padre Antonio disse, com alvoroço, á tia: —Faça favor de ir abrir. Pensou de repente que frei Simão se teria arrependido, e voltado para traz. Mas conheceu a voz de Ignacio da Fonseca. —Que tolice! pensou então padre Antonio. Elle arriscava-se lá a voltar de dia, mesmo que resolvesse voltar! E foi receber á sala Ignacio da Fonseca. O tio de José Maximo vinha, disse elle, _visitar o sr. abbade_. —O sr. abbade, respondeu padre Antonio, não está cá; mas eu tenho muito praser em receber a visita e qualquer ordem de Vossa Mercê. Emquanto isto respondia, accentuava-se no espirito do coadjuctor uma justa extranhesa. Pois seria crivel que Ignacio da Fonseca não tivesse dado pela sahida do abbade, que, segundo o costume, partira com grande estrépito de cavallos, e cortejo de criados? Não era. Então havia qualquer motivo secreto n’esta inesperada visita. A breve trecho, notou padre Antonio que Ignacio da Fonseca não só não fallava de politica, que era o seu thema predilecto, mas parecia preoccupado em observar o que quer que fosse. —O sr. abbade, insistiu padre Antonio procurando esclarecer a suspeita que lhe assaltára o espirito, foi ao Porto visitar os seus parentes. Costuma sempre demorar-se alguns dias. Mas admira que Vossa Mercê não soubesse da sua ausencia... —Não sabia... —Vossa Mercê parece-me hoje muito distraido! Tem algum negocio grave, que lhe dê cuidado? Ignacio da Fonseca mostrou-se contrariado com esta pergunta do coadjuctor. —Eu!? Não tenho nada que me dê cuidado! E, levantando-se de repente, fingiu dar grande attenção a um retrato, em gravura, que pendia da parede. —De quem é este retrato? —Do grande Bossuet, bispo de Meaux, gloria da Egreja Catholica. —Ah! não sabia! Sempre o sr. abbade tem aqui cousas muito bonitas! Olhe que lindo contador! é o melhor que tenho visto! —Vossa Mercê já o tem visto, decerto, muitas vezes. É que não fez reparo... —E que lindas talhas da India! Sempre tenho ouvido dizer que o sr. abbade é quem, n’esta comarca, possue melhor serviço de louças finas. Nunca lh’as vi. Estão na sala do jantar? —Estão. E como Vossa Mercê é amigo dedicado do sr. abbade, e pessoa de confiança na casa, nenhuma duvida tenho em mostrar-lh’as, se lhe apraz. —Pois acceito, e estimo vel-as. Já não restava duvida, no espirito do coadjuctor, de que Ignacio da Fonseca ia ali com segundas vistas, tão extraordinaria era a ignorancia, que simulava, sobre as loiças do Passal, que mais de uma vez devia de ter visto. Quando se dirigiam para a sala do jantar, Ignacio da Fonseca, vendo entre-aberta a porta do quarto de padre Antonio, olhou, de passagem, para dentro do quarto. Não passou isto despercebido ao coadjuctor. O tio de José Maximo deu mediana attenção ás loiças da India, de que aliás nada entendia. —E como vai por cá sua tia, a sr.ª Gertrudes Magna? —Como velha, coitada! Ella ahi está na cosinha. Se Vossa Mercê quer vel-a, pode entrar. Ignacio da Fonseca aproveitou logo o offerecimento, e enfiou pela cosinha dentro. Mostrou-se jovial com a velha, dizendo-lhe: —Ora viva! viva! Parece mesmo uma rapariga! —Salvo o caruncho, que já não é pouco, respondeu a tia do coadjuctor. —Qual caruncho?! Mas para que trabalha ainda vossemecê? —Eu trabalho porque quero. Ahi está o sr. Ignacio com a mesma teima de meu sobrinho! A mim o que me pésa é que seja pouco o trabalho quando o sr. abbade cá está, porque então não falta por’qui criadage. Mas agora, que somos dois, faz-se todo o serviço com uma perna ás costas, e ainda sobeja tempo. —O peior é se vem por ahi algum hospede, cuidando que o sr. abbade está em casa. Padre Antonio ficou receioso da resposta que sua tia ia dar. —Isso sim! respondeu ella. São cousas que logo se sabem, porque o sr. abbade não vai em segredo p’ra parte nenhuma. Padre Antonio tranquillisou-se. —Pois muito estimei vel-a, sr.ª Gertrudes, tão bem disposta como parece! —Isso é dos bons olhos com que Vossa Mercê me vê... E, no corredor, Ignacio da Fonseca, parando de subito á porta do quarto de padre Antonio, perguntou: —Este é o seu quarto, sr. padre Antonio? —Sim, senhor. Se Vossa Mercê quer entrar? O tio de José Maximo entrou, e, n’um lance de olhos, viu tudo. —O sr. padre Antonio, disse elle, parece, mettido n’este quarto, um frade do Bussaco! —Porque?! —Porque é o aposento mais pobre da casa! —Cada um, replicou o coadjuctor, deve viver em conformidade com o seu nascimento. Eu nasci sobrinho da criada do sr. abbade, e assim quero viver para não vexar a minha propria familia. Que pensaria o sr. Ignacio da Fonseca a meu respeito, se eu me collocasse em affrontosa opposição com os habitos humildes de minha tia,—uma pobre criada do Passal? —Sim... lá isso! —O sr. abbade nasceu rico, e vive como nasceu, mas não tapa os ouvidos aos clamores da pobresa que generosamente soccorre. Eu nasci pobre, e pobre quero viver. Não invejo a felicidade dos outros, porque não sou, felizmente, cego do entendimento. A Deus o agradeço. Mas ha cegos, cegos do corpo, e tambem do espirito, que mettem a sua alma no inferno, aquelles porque se desesperam contra a miseria em que vivem; estes, porque não pensam senão em offender a Deus e em provocar a justiça divina. Ignacio da Fonseca não gostou da severidade com que padre Antonio pronunciou estas ultimas palavras. —Elle desconfiaria de alguma cousa? perguntava a si mesmo o tio de José Maximo quando sahia do Passal. E padre Antonio, fechando a porta logo que elle sahiu, foi direito á cosinha, e disse a Gertrudes Magna: —Que grande ousadia esta! Elle veio espionar-nos! Suspeitaria da estada de frei Simão aqui? Então é certo que eu sou um cego, um imprevidente, e que quem tinha razão era o nosso hospede. Está-me parecendo que os desgraçados são como as gaivotas, que presentem os temporaes. Bem fez frei Simão em voar para longe, em fugir para o Porto. Ignacio da Fonseca, chegando irritadissimo a casa, disse ao Manel Zarôlho, um rapazote vêsgo, de má cára, que costumava comprehender e executar todos os planos secretos do amo: —Tu és uma grande bêsta! Isso é que tu és! Vires dizer-me que «vistes» luz, fóra das horas do costume, por baixo da porta na sala da Residencia e que, escutando á fechadura, «ouvistes» a voz do coadjuctor e outra voz que era a de frei Simão! Logo me quiz parecer que tudo isso cheirava a asneira grossa! O padre Antonio recebia lá um pedreiro-livre, um’alma de chicharro, que tresanda a enxofre! E eu tão tôlo, que acabei por dar-te algum crédito, quando tu teimavas que uma das vozes era a do frade _malhado_! Eu já te devia conhecer, grande burro! E o Manel Zarôlho resmungou por entre dentes: —Quando me mandou ir pôr o papel na janella do Outeiro, com risco de lá deixar a vida, como já tinha deixado antes o chapeu, não me chamou elle grande burro! Deixa estar, meu patife, que eu, para outra vez, te mandarei bugiar. N’esse momento, o Zarôlho nutria no coração uma surda cólera contra o amo, que acabava de o insultar, esquecendo os seus damnados serviços. Mas contentou-se apenas com resmonear, porque, como todos os cobardes, era capaz de morder na sombra, posto fosse absolutamente incapaz de, no ataque ou na defesa, affrontar a luz do sol. XXIV A organisação da guerrilha Que me siga quem tem a vaidade De ouvir ballas sem nunca tremer; Que me siga quem quer liberdade, Quem não teme na lucta morrer. Luiz Augusto Palmeirim—«O guerrilheiro». A vida de frei Simão no Porto era a de um foragido sempre receioso. A celebridade tornava maior o perigo. Tinham soado ao longe as suas façanhas de liberal: principalmente, a resistencia aos milicianos em Cezár, e a aventurosa fuga da cadeia da Villa da Feira. Quando o frade ali chegou, Frederico Pinto andava escondido, por isso que, na qualidade de commandante dos voluntarios de Villa Nova, havia adherido, como sabemos, ao mallogrado movimento de 16 de maio de 1828. O governo de D. Miguel, além de lhe ter mandado sequestrar a propriedade do Outeiral em Arouca, privou-o da reforma que lhe havia sido concedida. Não tendo emigrado para a Galliza, como tantos outros, Frederico, abandonando a casa em que ultimamente morava na rua da Cruz, a Cedofeita, escondera-se, sem comtudo sahir da cidade. Foi um amigo commum dos dois irmãos quem tratou de acautelar a existencia do frade, fazendo-o esconder n’uma agua-furtada do Passeio das Virtudes, pequena mansarda onde morava uma cega protegida pela familia d’esse cavalheiro. Da janella da trapeira, sobreposta ao segundo andar do prédio, podia ao menos frei Simão distrair os olhos por um dos mais formosos panoramas da cidade. Avistava ambas as margens do Douro,—a direita, accidentada em pittorescos degraus na quinta das Virtudes, prolongando-se com as montanhas da Torre da Marca e da Arrabida até descer para a reintrancia do Ouro e tornejar pela estrada de Sobreiras á Foz; a esquerda, coroada de pinheiros no alto, povoada, sobre o caes, de grandes armazens ribeirinhos e do convento umbroso de Val-Piedade, recortada salientemente na curva que, junto á Furada, bója para o rio. Ao fundo, o mar, a amplidão infinita da agua e do ceu esbatendo-se n’um azul longinquo de saphyra embaciada para alem da barra. Do meio da salêta, que era o seu unico aposento, podia frei Simão abranger esse vasto panorama, tão bello como melancolico, sem comtudo se expôr a ser visto por quem andasse passeiando no paredão das Virtudes. Entretinha-o muito o espectaculo que diariamente lhe offerecia o convento de Val-Piedade, por cuja calçada transitavam a toda a hora os frades mendicantes, que sahiam em peditorio, e recolhiam com grandes esmolas, muitas d’ellas em fructos e cereaes, pesadas cargas que os donatos, vestindo a sua roupeta de saragoça, transportavam após os frades, de quem eram criados. Ao fim da tarde desciam rio abaixo as lanchas dos pescadores de Valbom e paravam em frente do convento, d’onde o padre porteiro as abençoava para que tivessem abundante pescaria. Quando as lanchas recolhiam do mar, tornavam a parar junto ao convento, acostando ao caes para dizimar o peixe que, em retribuição da benção recebida, era repartido com os frades. A egreja de Val-Piedade, virada ao nascente, encimando uma extensa escadaria, comquanto fosse uma das melhores do Porto, não tinha torre, mas os sinos, collocados n’um campanario sobre a portaria, passavam por ser dos mais sonoros e afinados da cidade. Sempre que os ouvia, frei Simão de Vasconcellos sentia rebates de vaga saudade pelos dias que em Alcobaça vivêra contrariado, porque esses dias da mocidade, se os cotejava com os trabalhos do presente, chegavam a parecer-lhe felizes. Algumas vezes, alta noite, o frade, sedento de liberdade, sahia á rua para exercitar as pernas, que a reclusão entorpecêra. A solidão era ali profunda, quasi sepulcral. Frei Simão podia, sem perigo, dar alguns passeios em frente das casas. Mas quando sentia os passos de algum raro transeunte, que vinha dos Fogueteiros ou subia a calçada da Esperança, recolhia-se, por cautela, dentro do portal. Depois recomeçava o hygienico passeio, até que o ceu principiava a dealbar-se no oriente, por cima da casaria da cidade. Não recebia noticias do Outeiro senão por intermedio de Francisco Marques, que de tempos a tempos, e não sem algum risco, ia levar-lh’as pessoalmente. A correspondencia escripta poderia, ainda que houvesse disfarce no endereço, ser aberta no correio e denunciar a residencia do foragido. Por isso fôra supprimida. Todas as noticias eram verbaes, transmittidas pelo dedicado Marques,—um postilhão audaz. Por elle sabia o frade que D. Anna, comquanto houvesse recuperado a voz, continuava a soffrer as convulsões nervosas de que tinha sido atacada, e que se n’uns dias a agitação era menor, n’outros dias recrudescia. Fallava pouco, e nunca para fazer referencia ao incerto destino de José Maximo. O doutor Corrêa Ribeiro, que uma vez por outra ia a Cezár, dizia que D. Anna era um phenomenal exemplar pathologico, uma caprichosa organisação hysterica, vibratil a todas as commoções, e que um medico não podia fazer prognostico seguro, visto que só as commoções occasionaes tinham absoluto imperio sobre aquella organisação. E citava, como prova, a subita aphonia, que tambem subitamente desapparecêra. Mas não desesperava da cura completa, antes a esperava, se José Maximo voltasse. Comtudo uma ruim noticia poderia exacerbar a doença e conduzil-a rapidamente ao seu periodo terminal, ao total esgotamento do systema nervoso. Todo o arrazoado do dr. Corrêa Ribeiro vinha a resumir-se n’uma formula hoje geralmente acceita pelos pathologistas modernos: que a paralysia estabelece a transição entre as doenças do espirito e as do corpo. D. Anna passava longas horas silenciosa, muitas d’ellas encostada a uma das janellas da casa, com o olhar triste perdido nos pinheiraes sombrios. Contára Francisco Marques a Frei Simão, com as lagrimas nos olhos, que «a sua rica menina» tinha dito um dia: —Não sei se Deus me favoreceu mais quando me tirou a voz se quando m’a restituiu... E frei Simão, muito pensativo, respondêra: —Entendo... Os visinhos de Cezár, segundo tambem Francisco Marques contava, pareciam satisfeitos com as desgraças que tinham chamado sobre a casa do Outeiro, especialmente com a ausencia de frei Simão. Só uma coisa mostravam desejar ainda: era haver ás mãos o frade para mandal-o pendurar na forca. E como o suppunham refugiado em Arouca, para lá mandavam instantes solicitações reclamando a prisão do fugitivo. Assim foram decorrendo os mezes até que principiaram a correr incertas noticias de que D. Pedro, finalmente resolvido a reivindicar os direitos da Rainha, ia arregimentar os emigrados para invadir Portugal. Estas informações, a principio dubias, foram-se accentuando, correndo com insistencia. Constou depois que o imperador estava na Terceira, onde assumira a regencia, e preparava uma expedição com dinheiro que podéra levantar nas praças extrangeiras. O boato fôra confirmado. A expedição liberal viria, mas não se sabia ao certo se desembarcaria na Madeira ou no continente. Finalmente, na noite de sete de julho de 1832, eccoou no Porto uma noticia de grande sensação: a esquadra de D. Pedro estava á vista. No dia seguinte, a noticia irradiou por muitas leguas em roda do Porto: chegou até Cezár. Francisco Marques não poude contêr a sua impaciencia e metteu-se ao caminho para ir saber se o boato era verdadeiro ou não. Entrou na cidade mais facilmente do que suppunha. A confusão no exercito miguelista era enorme. O Marques encontrou já na estrada muitas familias absolutistas, que por cautela fugiam. Na madrugada do dia nove batia elle á porta da mansarda de seu amo. A cega, muito agitada, cheia de medo, disse-lhe que o sr. frei Simão tinha sahido, doido de alegria, ainda com de noite. O Marques subiu á Cordoaria, onde encontrou alguns curiosos, que o informaram do que se passava. Disseram-lhe que a expedição tinha desembarcado na vespera junto a Villa do Conde, e que estava em marcha para a cidade. O Marques não quiz ouvir mais nada. Metteu pela rua de Cedofeita adeante, para seguir a estrada de Villa do Conde ao Porto. Cêrca das oito horas da manhã encontrou no Carvalhido a guarda-avançada do exercito liberal. Deu-lhe vivas, gesticulando como um possesso. Não sabia se havia de voltar para traz, se proseguir até encontrar o grosso do exercito. Adoptou este ultimo expediente. Foi andando. Á medida que avistava as tropas libertadoras, uma nova vibração de enthusiasmo lhe sacudia os nervos. Perguntou pelo imperador. Responderam-lhe que não tardaria muito. Com effeito viu apparecer D. Pedro, seriam umas onze horas da manhã. O imperador vinha mal montado, mas ao Marques pareceu que jamais um general apertára sob os joelhos um cavallo de maior preço. E ficou n’uma allucinação de jubilo quando viu frei Simão, de jaqueta, cruz ao peito, chapeu emplumado de hydranjas, e escopêta ao hombro, dando vivas a D. Pedro, cujo cavallo o frade seguia a pequena distancia. Atravessou de um salto para junto do amo, que lhe disse muito excitado: —Ah! és tu?! Ha novidade? —Nenhuma. Vim ver isto. —Chegou a nossa hora, finalmente! exclamou frei Simão. E logo continuou a gritar: —Viva o imperador! Viva a rainha! Viva a Carta! D. Pedro tinha ficado muito surprehendido quando frei Simão de Vasconcellos correu a beijar-lhe a mão na estrada, levantando enthusiasticamente no ar o chapeu florido das côres constitucionaes. Sabia que os frades lhe eram adversos, e a extranhesa do caso fizera-lhe agradavel impressão. Um movimento de sympathia brilhára nos olhos expressivos do imperador. Frei Simão, acompanhando sempre D. Pedro, seguira-o até á Praça Nova, onde o principe apeiára para entrar na Casa da Camara. N’essa occasião era estentorosa a voz do frade, quando gritava: —Viva o imperador! Viva a rainha! Viva a Carta! Viva a liberdade! D. Pedro sahiu do palacio municipal para se dirigir ao dos Carrancas, onde ia hospedar-se. Tudo isto se realisára n’um triumpho pacifico: o exercito de D. Miguel tinha retirado inexplicavelmente. O frade acompanhou D. Pedro á Torre da Marca, e ahi continuou a vozear, em frente do palacio, gritos atroadores. O imperador viera a uma das varandas para agradecer a ovação com que alguns grupos, frei Simão á frente, continuavam a acclamal-o. Dando com os olhos no frade, tornou a reparar n’elle, que gesticulava freneticamente com o braço direito, agitando o chapeu, e com a cara no ar, muito afogueadas as faces. Momentos depois, o marquez de Loulé, cunhado do imperador, dava ordem a um criado para vir á rua chamar um frade, que tinha hydranjas no chapeu, e estava dando vivas. Frei Simão galgou dois a dois os degraus da escadaria de pedra. D. Pedro não tardou a recebel-o, de pé, a meio da sala grande de entrada. O imperador, esvelto, moreno, queimado do sol dos tropicos, com a barba crescida, o olhar incisivo e luminoso, denunciava comtudo na physionomia um certo cansaço e o que quer que fosse de amargurada expressão. —Como te chamas? perguntou D. Pedro ao frade. —Frei Simão de Vasconcellos. —A que convento do Porto pertences? —A nenhum, meu senhor. Sahi ha dezeseis annos de Alcobaça por um breve pontificio. Desde então não tenho feito senão amar a liberdade e soffrer por ella. Mas estou prompto a dar a vida por Vossa Magestade e pela causa da Rainha, que é a causa da liberdade e da patria. O imperador, em cujos olhos passára um relampago, que lhes augmentou o brilho, mostrava-se cada vez mais surprehendido e interessado. —Bem está! disse D. Pedro. O que tiveste n’esse braço? perguntou reparando que o frade movia com difficuldade o braço esquerdo. —Fui ferido pelas costas quando tentava escapar ao destacamento que cercou a minha casa, e que me perseguiu a tiros. —Mas, apesar de ferido, podeste fugir? —Cahi e apanharam-me. Da segunda vez não fui tão feliz como da primeira, em que consegui salvar-me. —Estiveste então na cadea? —Sim, meu senhor, na da Villa da Feira, mas evadi-me e tenho estado escondido desde então. O imperador trocava com o marquez de Loulé um olhar de profunda surpresa. —Tens então, meu frade, passado muito? —Nem Vossa Magestade pode imaginar! A minha familia está desgraçada. Malvados! Um só de meus irmãos, frei José, prégador geral da ordem de S. Bento, foi realista, mas esse, em vez de perseguir alguem, morreu de desgosto em Lisboa, o anno passado, quando soube que tinha entrado no Tejo a esquadra franceza, e que o barão de Roussin havia sido mandado a Portugal para calcar aos pés o direito das gentes e vexar uma nação, cujo governo, cobarde perante o extrangeiro, apenas sabia ser tyranno com os naturaes que politicamente o hostilisavam. —Frei José, teu irmão, replicou o imperador, podia ser um realista, como tu dizes, mas era principalmente um portuguez, que zelava a honra da sua patria. —É certo, meu senhor. Ao menos resgatou pela morte o erro das suas opiniões politicas, aliás inoffensivas. —Quero ouvir-te com mais vagar. Volta cá ás sete horas da manhã. —Ás sete horas?! perguntou frei Simão espantado de que um principe lhe marcasse uma hora tão matutina. —Sim, amanhã ás sete horas. Adeus. Durante o dia, D. Pedro tornou a lembrar-se do frade, com essa agudeza de memoria, que é peculiar aos Braganças. Apesar das graves preoccupações que lhe agitavam o espirito, o imperador pediu novas informações a respeito de frei Simão de Vasconcellos. Contaram-lhe a historia, muito conhecida, da resistencia á escolta, da prisão e da fuga. Descreveram-lhe o energico perfil moral do frade já legendario pelo seu valor, e dedicação á causa da liberdade. D. Pedro, que via enublado o futuro apesar da facilidade com que entrára no Porto, consolou-se até certo ponto com a certeza d’essa dedicação pessoal, que podia valer muito como exemplo. E, no dia seguinte, cumprindo a sua promessa, recebeu frei Simão, que, ás sete horas da manhã, já encontrou as salas do palacio cheias de officiaes superiores. Estavam ali, entre outros, o marechal conde de Villa Flor, commandante em chefe do exercito, o coronel de cavallaria D. Thomaz de Mascarenhas, que se dizia ia ser nomeado governador militar da cidade, o tenente-coronel José Baptista da Silva Lopes, chefe do estado-maior, o tenente-coronel Diogo Thomaz de Ruxleben, director da intendencia geral de viveres e transportes, e alguns officiaes extrangeiros, taes como o sr. de Saint-Léger, ajudante de campo do imperador, e o sr. de Lasteyrie, neto do general Lafayette. Quiz D. Pedro ouvir a narrativa das perseguições soffridas pelo frade e sua familia. —Apenas posso conceder-te vinte minutos, mas desejo ouvir-te, disse o principe. Frei Simão resumiu as violencias politicas de que seu irmão Joaquim Maria fôra victima, e impressionou o imperador, quando contou como havia promettido ao moribundo ir arrancar Margarida Candida ás grades do mosteiro de Arouca no dia em que a liberdade resurgisse. —Chegou essa hora, disse-lhe D. Pedro. Pois não crês que a nossa causa ha de triumphar? —Creio, meu senhor, mas é preciso não poupar nem deixar em descanço o inimigo. Elle é poderoso pelo numero. Não se illuda Vossa Magestade com o dia de hontem. O imperador, visivelmente triste, ficou a olhar no frade, muito fito. Depois frei Simão bosquejou os infelizes amores de José Maximo, o liberal exaltado, com Anninhas, cuja doença descreveu tambem a traços largos. —Pobre senhora! disse commovido o imperador. Eu tive na minha familia um triste exemplo do que são as doenças nervosas. Minha avó... Mas não sabes—perguntou com subita transição—o que é feito do estudante? —Não sei, meu senhor. Comtudo José Maximo era tão brioso, que receio não lhe soffresse o animo resistir á nodoa do roubo feito aos lentes. —Foi effectivamente um desatino, disse D. Pedro, que nada aproveitou á nossa causa. Melhor elles viessem agora defendel-a com as armas na mão. Ahi trago eu um dos estudantes, o Solano, que é alferes de caçadores 5, e que procura resgatar pelo arrependimento e pelo valor a memoria do passado. Frei Simão roçou muito de alto pelos seus proprios soffrimentos e trabalhos, mas voltou a fallar no juramento que tinha feito ao irmão moribundo. —E como pensas em cumpril-o? —Com os meios que Vossa Magestade se dignar fornecer-me. —Quaes? —Dezoito ou vinte homens á minha escolha para organisar uma guerrilha. Nós não temos guerrilhas, e comtudo são um excellente meio de propaganda para levantar a opinião nas provincias. —Tens rasão. Vou dar ordem para que te sejam concedidos os homens que escolheres. Mas lembro-te que não podêmos distrair muita gente. —Poucos me bastam, meu senhor, comtanto que eu os escolha. —Concedido. Até á vista, frei Simão, e boa fortuna. Enthusiasma-me bem essas aldeas. Vou dar ordem. Espera, que te será entregue agora mesmo. O frade sahiu, e D. Pedro veio á porta, chamando para fóra: —Ó Villa Flor! vem cá. N’esse mesmo dia, frei Simão principiara a recrutar os seus companheiros de aventura pelas boas informações, que a respeito d’elles podera colhêr. Dois, como que lhe cahiram do ceu. Um era o Marques, que por caso nenhum se dispensou de seguir o destino do amo. O outro era José de Oliveira, que já conheciamos da casa do Outeiro, e que as irmãs de frei Simão, inquietas pela demora do Marques, tinham mandado ao Porto para saber noticias. No dia 15 de julho a guerrilha estava prompta a marchar. O desejo do frade seria dirigir-se logo a Cezár, para tranquillisar as irmãs e justar contas com os seus adversarios, seguindo depois para Arouca a cumprir o juramento que fizera. Chegára a dizer a Francisco Marques: —Vamos n’um pulo ao Outeiro socegar as senhoras. Se encontrarmos a geito Ignacio da Fonseca, pedir-lhe-hei que restitua a saude a minha irmã Anninhas... Mas frei Simão foi despedir-se do imperador na noite d’esse dia. D. Pedro, que, como sabemos, se levantava muito cedo, jantava tarde, nunca antes das oito horas, porque primeiro cuidava dos negocios da guerra que de si mesmo. A vida trabalhosa do Porto veio a ser a principal causa da sua morte prematura. O imperador recebeu frei Simão quando acabou de jantar. Estava no Paço o conde de Villa Flor, que assistiu á audiencia. Então D. Pedro lembrou ao frade a conveniencia de se demorar algum tempo pairando nas cercanias do Porto para facilitar a passagem dos fornecimentos e limpar do terreno as pequenas guerrilhas, que se entregassem á pilhagem. Teremos occasião de vêr que esta indicação era previdente; mas podêmos saber desde já que ella contrariou a impaciencia do frade. Pouco antes da guerrilha partir, Francisco Marques perguntou a frei Simão: —Sempre vamos então a Cezár? O frade respondeu de mau humor: —Fica sabendo que não tens d’aqui em deante o direito de fazer perguntas. És soldado, cumpre-te obedecer-me, como eu tambem obedeço aos meus superiores. E mais nada, ouviste? XXV José Maximo Eu, que esgotei tão cedo, até as fezes, O calis da amargura; Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado De quanto ha vil no mundo... Alexandre Herculano—«A tempestade». José Maximo da Fonseca não se julgou seguro em Hespanha, onde a seita apostolica, protegida pela Princeza da Beira, poderia perseguil-o, se descobrisse a sua identidade. Depois de ter passado enormes trabalhos, dos quaes o menor seria a fome, metteu-se aos Pyreneos, caminho de França. Singular apêgo parecia ter á vida este desgraçado homem, a quem ella pesava como um infortunio irremediavel. Só a esperança alimenta a existencia dos infelizes, e José Maximo havia perdido a esperança. Por isso acho eu singularissima a energia com que fugia aos algozes um homem, que fôra o primeiro algoz de si mesmo. Em França, como em Hespanha, vivia famintamente do seu officio de caldeireiro ambulante. Se ganhava dois ou trez _sous_, não ambicionava mais, e aturdia-se interessando-se pelos acontecimentos politicos que prefaciaram a queda de Carlos X e o advento de Luiz Filippe ao throno. José Maximo odiava Carlos X, que fizera correr o sangue do povo, e via no duque de Orleans o salvador da França constitucional. A accidentada odyssea d’este principe, que tinha abraçado os principios de 1789 e applaudido a tomada da Bastilha, o seu alistamento no exercito republicano, o seu exilio na Suissa, a necessidade de vender os seus cavallos e de desempenhar o logar de professor de geographia, os seus longos errores pelo norte da Europa, a sua viagem ao Novo-Mundo, todas as aventuras politicas d’este principe liberal, que conspirava ao lado dos constitucionaes e de Lafayette, faziam com que José Maximo encontrasse affinidades biographicas entre o destino do duque de Orleans e o seu. A 29 de julho de 1830, José Maximo bandeou-se com o povo, que invadiu o Louvre e as Tulherias, e que saudou com enthusiasmo a reapparição da bandeira tricolor, proscripta havia quatorze annos, sobre o zimborio do palacio real. Viu o general Lafayette occupar o _Hotel de ville_, convertido em quartel-general da insurreição. Quando soube que Carlos X havia retirado as _Ordenanças_ e demittido o gabinete, sorriu de desdem, repetindo a phrase de Schonen, que desde logo se tornára celebre: «_Il est trop tard!_» Parava ás esquinas das ruas de Pariz e commentava com fervorosa adhesão os pasquins que proclamavam o duque de Orleans como _un roi-citoyen_ escolhido pelo povo e baptisado pela revolução. Um legitimista, que o ouviu sustentar estes principios democraticos, não lhe reconheceu a qualidade de extrangeiro, tão bem José Maximo fallava o francez, mas foi reflexionando comsigo mesmo: —A canalha quer a Carta, embriagada pelo poderio de fazer e desfazer reis! O futuro esmagará a canalha. Estas palavras bem as podia ter pensado algum absolutista portuguez em 1826. No dia em que o duque de Orleans entrou em Pariz, como logar-tenente general do reino, o espirito de José Maximo delirou de jubilo quando viu representado o ideial de uma realeza democratica, meio republica e meio monarchia, na pessoa de um principe que se apresentava aos seus subditos como um burguez patriota: de chapeu baixo e rozêta tricolor na botoeira. Na proclamação em que o duque de Orleans fallou aos habitantes de Pariz havia uma phrase, que recordava a José Maximo outro ideial já para elle consagrado pelo sêllo angustioso das suas proprias lagrimas. Era esta: «_Une Charte será désormais une verité_». Parecia-lhe ser traducção fiel do grito constitucional que Saldanha tinha levantado no Porto para fazer jurar a Carta de D. Pedro. Confundido com a multidão, José Maximo viu o duque de Orleans apparecer a uma das janellas do Hotel-de-Ville desfraldando a bandeira tricolor. N’esse momento a monarchia, personificada em Luiz Filippe, recebia da republica, representada em Lafayette, o baptismo da democracia; surgia, segundo a propria expressão de Lafayette, um throno popular, em nome da soberania nacional, rodeado de instituições republicanas. A onda de liberdade, que inundava a França, chegava até ao coração de José Maximo. A fogosa imaginação do infeliz portuguez acreditava mais do que devia na sinceridade da politica. Elle, um exaltado, enganou-se, o que aconteceu tambem a Lafayette, porque a monarchia de Julho não foi a melhor das republicas. Mas José Maximo, cabeça enthusiastica, ardente de ideiaes generosos, cria na redempção da França pela liberdade, e na sua influencia como elemento modificador do velho regimen politico de toda a Europa. Assim como o ébrio entrevê, atravez dos fumos da embriaguez, as imagens confusas da vida real, José Maximo, recebendo directamente as impressões da «grande semana de Julho», enxergava ao longe, perdido nos nevoeiros do passado, o vulto de D. Anna de Vasconcellos,—a sombra querida que povoava todo o seu mundo de recordações dolorosas. Em seguida á tragedia do Cartaxinho, José Maximo, julgando-se irremediavelmente perdido, apenas pensára em apagar em si mesmo o labéo de um crime monstruoso, a que involuntariamente se associara. Até a physionomia desfigurou n’um momento de desespero. Agora, ainda que novos acontecimentos politicos viessem absolver o criminoso, tudo estava perdido para o homem que já não poderia voltar sobre o passado. Dado que chegasse a realisar-se a hypothese de D. Anna de Vasconcellos resistir á commoção do primeiro momento, elle não ouzaria apparecer-lhe na hediondez do seu disfarce. Por isso procurava embriagar-se com o primeiro vinho que encontrava á mão, e a liberdade era ainda, como sempre fôra, a melhor embriaguez para um espirito que tanto amava a liberdade. Proclamado rei Luiz Filippe, a revolução de julho foi como uma corrente electrica que immediatamente poz em vibração a Belgica, oppremida pela Hollanda. A 24 de agosto são destruidos em Bruxellas os preparativos das festas publicas, que deviam realisar-se em honra do soberano hollandez. Era o prologo da independencia, o cartel de desafio arremessado por um povo oppremido contra os seus dominadores. A Belgica sublevava-se para quebrar o jugo que a prendia á Hollanda; de novo se insurgia, sedenta de liberdade como no tempo do dominio dos romanos, dos hespanhoes e dos austriacos. José Maximo foi attraido por esse sympathico movimento de toda a Belgica; precisava continuar a embriagar-se politicamente para supportar a vida com menos enfado. Não vacillou, pois, um momento. Com a sua ferramenta de caldeireiro ambulante, metteu-se ao caminho, dirigindo-se para o norte, procurando a fronteira. Seguindo a estrada de Lille, ladeada por campos abertos, que de nenhum modo representam qualquer divisão natural entre os dois paizes, José Maximo, chegado á fronteira convencional da França e da Belgica, esperou que anoitecesse para illudir a vigilancia do posto de registo de Hertuin, onde os passaportes costumavam ser visados. Ao transitar de paiz para paiz, o pobre foragido precisava recorrer aos processos de que se valem os contrabandistas e os salteadores, porque nenhum documento legal podia apresentar para ter direito ao livre transito. Foi encontrar em Bruxellas um espectaculo mais dramatico ainda do que aquelle que havia presenceado em Pariz, porque em França, Carlos X tinha abdicado logo que soube que quinze mil parisienses, commandados pelo general Pajol, se aproximavam de Rambouillet, mas em Bruxellas, nos ultimos dias de setembro, quinze mil hollandezes incendiavam a cidade com balas ardentes e foguetes de Congreve. E ao chammejar sinistro dos incendios, o povo belga defendia-se heroicamente, como um leão. José Maximo largou os seus utensilios de caldeireiro, e pegou n’uma arma para sustentar a resistencia de um povo escravisado contra as prepotencias do rei dos Paizes-Baixos. N’um dos mais calamitosos dias da sublevação, quando Bruxellas parecia uma fornalha atiçada pelos hollandezes, José Maximo encontrou-se na barricada da porta de Hal com um voluntario extrangeiro, que immediatamente reconheceu. O tiroteio era vivissimo, a lucta desesperada, mas os hollandezes foram rechaçados, e trataram de vingar-se atirando para dentro da cidade as bombas incendiarias, os Congreves destruidores. Na primeira hora de descanço após a refréga, José Maximo chegou-se ao voluntario, e disse-lhe abruptamente em francez: —Não esperava vir encontrar aqui outro portuguez a defender, como eu, a independencia da Belgica! O voluntario mediu de alto a baixo, com surpresa e desconfiança, José Maximo, cuja physionomia lhe devia ter produsido repulsão. —Engana-se! Eu não sou portuguez, respondeu, no mesmo idioma, o voluntario. —Prouvera a Deus que me enganasse, replicou José Maximo, porque então não teriamos occasião de reconhecer-nos um ao outro como victimas de uma grande fatalidade... —Senhor! exclamou o voluntario, avançando para José Maximo. —Francisco Cesario Rodrigues Moacho! bem vês que te conheço. Não receies atraiçoar-te, porque estamos n’um paiz que ama a liberdade até o ponto de querer conquistar a sua independencia com as armas na mão. E, quanto a mim, fica sabendo que nada tens a temer, tambem. Somos dois emigrados, pelo mesmo motivo... Rodrigues Moacho ficou surprehendido com as palavras d’esse extranho homem, que não conhecia. José Maximo percebeu o que se passava no espirito do antigo presidente da sociedade dos _Divodignos_. —Não me conheces, disse elle, e tens razão. Do homem que eu fui não resta senão a tormentosa memoria de mim proprio. Na matricula da Universidade chamava-me José Maximo da Fonseca; mas entre a academia talvez que não esteja ainda apagada a lenda portuense do _Fresca Ribeira_... —Tu?! —Eu mesmo. —Mas essas queimaduras e cicatrizes?! —São o disfarce de um criminoso ou, antes, a mascara do foragido, porque Deus sabe se estou innocente. Rodrigues Moacho ficou horrorisado com a narrativa dos soffrimentos e trabalhos de José Maximo. Combatendo um ao lado do outro, como voluntarios, pela independencia da Belgica, a antiga amisade dos dois academicos de Coimbra renascia e retemperava-se na adversidade de um destino commum. O baterem-se pela liberdade, posto que em terra extranha, era para elles um lenitivo que a coincidencia de se haverem encontrado tornava ainda maior. Mas o exercito hollandez, repellido em Bruxellas e outras cidades do Brabante, havia-se refugiado em Antuerpia, seu ultimo reducto no territorio belga. Rodrigues Moacho e José Maximo tiveram, pois, que depôr as armas, ainda antes do mez de novembro, que foi quando, intervindo a diplomacia, as potencias tomaram conta da questão e reconheceram, na conferencia de Londres, a independencia da Belgica. Não permittiu Rodrigues Moacho que José Maximo continuasse a vestir a sua blusa de caldeireiro ambulante, e a exercer esta profissão, mas José Maximo parecia contrariado de ter que obedecer a tão dedicada exigencia. Juntos davam longos passeios pelo campo, conversando memorias e tristesas de sua vida commum. Mais de uma vez metteram pela linda estrada que de Bruxellas vai ao bosque de Soigne e fizeram, sem quasi dar por isso, um passeio de cinco leguas. Duas suggestões, por igual attractivas, os chamavam para aquelle sitio: a belleza do bosque, pelo meio do qual passa a estrada, e a recordação historica da batalha de Waterloo, onde o colosso napoleonico desabára. José Maximo, que detestava os tyrannos,—e assim classificava elle Napoleão—ligava, comtudo, ao vencido de Waterloo uma saudosa memoria da sua propria existencia: o _napoleão de oiro_, que frei Simão lhe havia dado, que elle conservára nas maiores privações, e que offerecêra aos seus dedicados hospedeiros de Hespanha. Um velho camponez explicou aos dois portuguezes, n’um d’esses passeios, que a batalha não terminára precisamente ali, em Waterloo, aldea onde estivera o quartel-general inglez, mas á distancia pouco mais ou menos de uma milha, em Haiesainte. —Aqui ou ali, pouco importa, respondeu José Maximo, o que é certo é que este ceu viu despenhar-se o monstro, que devorava nações e despedaçava exercitos. Napoleão cahiu porque acima da sua ambição pessoal não havia um ideial de justiça, um principio de philosophia social. Os principios triumpham sempre; é questão de tempo. Os homens succedem-se, e passam. Por muitas vezes Rodrigues Moacho notára que José Maximo parecia constrangido com a cordeal hospedagem, que lhe dava; e até o ouvira referir se vagamente a sahir da Belgica. —Mas onde queres tu ir? perguntava-lhe, admirado, o ex-presidente da sociedade dos _Divodignos_. —Eu sei lá! Pergunta tu á folha sêca, que o vento despegou da arvore, onde ella irá parar! Não sabe! E encolhia melancolicamente os hombros. Na primavera de 1831 chegou á Europa a noticia da revolução do Brazil e da abdicação de D. Pedro. Este acontecimento pareceu produzir uma grande impressão no espirito de José Maximo. Um dia, Rodrigues Moacho, ao accordar pela manhã, deu pela falta do amigo. Não o encontrou, mas achou uma carta, que explicava a sua ausencia: «Meu querido Moacho. «Deste-me, durante muito tempo, uma cordealissima hospedagem, de que eu conservarei gratidão eterna. Mas não era digno de um homem consciencioso e válido viver indefinidamente dos favores da amisade. Parto, sem saber para onde. Voltando á miseria em que vivia antes de te encontrar, continuo a justa expiação dos meus erros passados. José Maximo.» Rodrigues Moacho exclamou ao lêr esta inesperada carta: —Sempre digno, até mesmo nas mais temerarias resoluções. Loucura da honra, a sua! Moacho, que nunca mais sahira da Belgica, não tornou a vêr José Maximo da Fonseca. D. Pedro desembarcou em Cherbourg a 12 de junho. Mas o brigue francez, que conduzia a rainha de Portugal para a Europa, teve mais demorada viagem, só a 11 de julho aportou a Brest. Era a segunda vez que essa linda princesinha, ainda na infancia, sahia do Brazil, onde nascêra, para vir correr aventuras politicas no Velho Mundo. Em 1828 partira do Rio de Janeiro destinada a educar-se na côrte de seu avô em Vienna até que chegasse á idade de desposar o infante D. Miguel. Em Gibraltar, o marquez de Barbacena, que acompanhava a jovem rainha, sabendo da usurpação realisada pelo infante em Portugal, mudou de rumo e levou D. Maria da Gloria para Londres. Na côrte de Jorge IV, aquella linda menina, que contava apenas nove annos, foi recebida com honras reaes, mas nada tão falso e illusorio como essas honras, porque a filha de D. Pedro IV começou por onde alguns reis teem acabado: perdeu a corôa, de que o tio se apossára. Em agosto de 1829 D. Maria voltava para o Brazil, acompanhada pela princesa de Beauharnais, que ia ser sua madrasta. Agora, dois annos depois, voltava á Europa como filha de um principe desthronado, sendo ella mesma desthronada tambem. D. Pedro, que de Cherbourg tinha ido para Londres, tornou a França, ao encontro da filha. Celebrava-se em Pariz o primeiro anniversario da revolução de Julho. Os animos estavam ainda muito agitados, os legitimistas não tinham perdido occasião de provocar tumultos, mas as festas do anniversario deram aos parisienses um espectaculo alegre, que é a coisa que elles mais apreciam. Ao lado de Luiz Filippe apparecêra n’esses dias festivos o desthronado imperador do Brazil: D. Pedro atirava o seu chapeu ao ar, quando ouvia vivas aos polacos, que a Russia estava absorvendo pela força, e apertava, como Luiz Filippe, a mão ás deputações de operarios. José Maximo da Fonseca viu isto, esta confraternisação de dois reis democratas com o sentimento popular, e tambem atirou ao ar enthusiasticamente o seu velho chapeu de caldeireiro ambulante, á semelhança do que tinha feito no Porto nos dias felizes de 1820. D. Pedro voltou, com D. Maria da Gloria, a Londres, e ahi, sob o tecto de um _hotel_, essa jovem, mas desditosa rainha, recebeu das mãos dos seus partidarios emigrados a offerenda de um sceptro de oiro, quando era certo que ninguem n’essa hora era menos rainha do que ella. José Maximo, em Pariz, evitava os emigrados portuguezes, alguns dos quaes reconhecêra. Á volta da Belgica, como antes, vivia só, no seu humilde mistér de caldeireiro, não se aproximando de ninguem. Era, como elle tinha dito a Rodrigues Moacho, a fôlha sêca varrida pelo vendaval. Em agosto, D. Pedro, sempre a braços com as incertesas e fluctuações da sua complicada situação, voltou a Pariz. Luiz Filippe fez honra aos seus hospedes e offereceu-lhes o castello de Meudon, pondo á disposição da familia de D. Pedro cavallos e carruagens, e ás suas ordens uma guarda de capitão. A nove kilometros de Pariz, perto da margem esquerda do Senna, Meudon, com o seu outeiro, o seu castello e o seu bosque, é um sitio delicioso, que os parisienses adoram, especialmente os namorados e os poetas. D. Maria II parecia uma fadasinha, branca e loira, destinada a povoar harmoniosamente aquelle bosque encantado, onde os castanheiros e os carvalhos deixavam cahir a doce sombra dos dias calmosos do estio. Tinha então apenas onze annos, mas era um formoso esboceto de mulher: carnação feita de leite e rosas, olhos castanhos e vivos, cabeça altiva, bôca a que o beiço grosso dos Braganças não prejudicava a graça nem a firmesa. Apezar de creança, havia na sua plastica a redondez de formas que desabrocham correctas, e no seu porte um cunho de reflexiva e consciente nobresa, que ia bem a uma princesa desthronada em plena infancia. José Maximo, sempre solitario, galgava de proposito a estrada de Meudon para vêr a jovem rainha de Portugal. Algumas vezes encontrou no caminho, á ida ou á volta, o cura Dupanloup, um padre de cerca de trinta annos, novo mas virtuoso e illustrado, que D. Pedro havia escolhido para director espiritual de sua filha[6]. E José Maximo ia pensando comsigo mesmo: —Que este padre consiga firmar no coração da pequenina rainha as raizes da fé christã, porque ella, que parece ter nascido para soffrer, precisa encontrar no naufragio da sua mallograda realesa alguma tabua de salvação,—a melhor. José Maximo sabia já as horas a que a rainha de Portugal costumava passeiar de carruagem em Meudon, quasi sempre acompanhada pela sua preceptora D. Leonor da Camara. Um dia, em pleno outomno, a receita do caldeireiro ambulante excedeu o orçamento ordinario: ganhou mais alguns _sous_ do que o costume. Correu a comprar um ramo de margaritas, atou-o com uma pequena fita azul, e caminhou para Meudon. Era a hora em que a rainha passeiava no bosque, cujas folhas o outomno começava a varejar. José Maximo aproximou-se da caléça, estendeu o braço direito, offereceu o ramo. A jovem princesa teve um momento de hesitação, mas D. Leonor da Camara disse-lhe que acceitasse o _bouquet_. A carruagem continuou rodando, e José Maximo seguiu-a com os olhos, pensando, não já na rainha, mas em D. Anna de Vasconcellos, que a rainha tanto lhe fazia lembrar na côr das faces e na dignidade graciosa do porte. Em fevereiro de 1832, D. Pedro partiu de Belle-Isle com a expedição para os Açores. José Maximo ficou. —Eu associei-me a um crime—raciocinava elle—em nome da liberdade do meu paiz; deshonrei-a e deshonrei-me. Acceito o horror da expiação, e a consciencia não me accusa de cobardia, porque ainda não vai longe o tempo em que senti assobiar as balas dos hollandezes n’uma terra extranha. Um soldado deve poder combater de rosto descoberto, e eu tenho vergonha de mim proprio. Se algum dia a saudade da patria apertar tanto comigo que lhe não possa resistir, entrarei no meu paiz com o mesmo disfarce com que fui obrigado a sahir de lá. Sou um anonymo; envileci o meu nome. Já não sou ninguem. XXVI Deus escreve direito por linhas tortas ...confia em Deus; que é o mesmo que não fundar em areia movediça, mas em penha viva: nem defender-te com escudo de cêra, mas de aço. Padre Manuel Bernardes—«Luz e calor». Quando a expedição liberal desembarcou, as tropas miguelistas que tinham acampado junto a Villa do Conde, calculando que era impossivel a sua juncção com as do Porto, retiraram sobre a estrada de Amarante; e as que estavam postadas em Leça, avançaram para a cidade, passaram o Douro de madrugada, cortaram a ponte, e alojaram-se nas alturas de Villa Nova. Assim deixaram o campo livre aos recemchegados! Para responder ao tiroteio que de Villa Nova era dirigido contra a cidade, algumas embarcações da esquadra de D. Pedro, subindo o Douro, estacionaram defronte das posições occupadas pelos miguelistas e obrigaram-n’os a desalojar. Uma divisão liberal, passando o rio em barcos, foi em perseguição do inimigo. Assim tambem perderam os miguelistas uma excellente occasião de fortificar-se logo em Villa Nova, e o mêdo foi tamanho que Santa Martha, não se julgando seguro em Grijó, retirou sobre Oliveira de Azemeis. Frei Simão ficou pairando, com a sua guerrilha, nas visinhanças do Porto, em cumprimento das ordens do imperador. Não tinha um momento de descanço. Umas vezes combatia contra as guerrilhas miguelistas, como aconteceu na tarde de 11 de agosto, em Avintes, onde perseguiu alguns homens do visconde de Montalegre, atravessando o rio em seguimento d’elles até ás portas da cidade, em S. Cosme; outras vezes, como na noite d’esse mesmo dia, em Espinho, batia os piquetes, de soldados ou de paisanos armados, que pretendiam impedir a passagem de fornecimentos para o exercito liberal. A _Chronica constitucional do Porto_ commemorava estes feitos de frei Simão, noticiando no seu numero correspondente a 14 de agosto: «Sabemos com certeza que a guerrilha constitucional commandada por frei Simão, surprehendeu no dia 11 do corrente ás 10 horas da noite, no logar chamado _Espinho_, uma guarda de 20 paisanos ali postada para impedir o fornecimento d’esta cidade. A nossa gente lhe matou 4, prendeu 6, e o resto fugiu dispersado. «O mesmo commandante perseguiu em Avintes na tarde de 11 alguns ladrões da força do visconde de Montalegre, e veiu batendo a estrada até ás portas de S. Cosme n’esta cidade.» No fim de agosto ainda a guerrilha de frei Simão pairava sobre a margem esquerda do Douro, vigiando a cidade. A _Chronica_ de 28 d’esse mez publicava a seguinte informação datada do dia anterior: «Hontem pelas nove horas da noite pegou em armas toda a guarnição da Serra, porque os rebeldes se haviam aproximado das nossas linhas. A guerrilha de frei Simão retirou algum tanto, porque a força inimiga, dividida em duas columnas, mostrava apparencias de a querer flanquear. Em consequencia da parte dada por frei Simão, foram immediatamente reforçados todos os nossos pontos; a força commandada por frei Simão matou trez guerrilheiros, e ao romper da manhã o campo estava limpo de inimigos. Soube-se que a força que está nos Carvalhos consiste em duas peças de artilheria, alguma cavallaria, parte do regimento 24, e guerrilhas.» Frei Simão, impaciente de ir a Cezár, aproveitou a evolução que fôra obrigado a fazer na noite de 26 de agosto, para affastar-se do Porto. Salvava-se ao mesmo tempo de ser flanqueado pelas duas columnas inimigas, e realisava o seu mais ardente desejo. Muitas vezes tinha elle pensado em que uma bala miguelista o poderia matar antes de justar contas com os perseguidores da sua familia e de arrancar Margarida Candida ao carcere conventual de Arouca. Essa ideia atormentava-o, mas, no momento em que o perigo era imminente, quando chegava a hora de combater, frei Simão arremessava-se, destemido, contra os seus adversarios, e o receio da morte apagava-se completamente no seu espirito. Os adversarios detestavam-n’o, porque o temiam. Esse representante do clero liberal, tão valente como guerrilheiro e tão celebrado pela sua já lendaria dedicação á causa da Rainha e da Carta, irritava os miguelistas a ponto que julgavam um grande triumpho o poder surprehendel-o e aniquilal-o. Frei Simão apenas dispunha de um braço, como sabemos. Mas na destresa da pontaria não o excediam nem igualavam os melhores atiradores. Todas estas circumstancias avultavam a lenda da sua heroicidade, e chamavam sobre elle a attenção e o odio dos adversarios. Desde o mez de agosto que no Porto deixaram de receber-se noticias de frei Simão. O imperador, que de nada se esquecia, pensava algumas vezes no seu famoso guerrilheiro, e respondia aos que lhe fallavam d’elle: —Frei Simão deve estar a caminho de Arouca, se já lá não estiver. Houve quem perguntasse a D. Pedro: —Mas que razão poderia elle ter para tão aventurosa marcha? D. Pedro respondeu laconicamente: —Um juramento... O que é certo é que, na _Chronica constitucional do Porto_, se fez um longo silencio sobre o destino de frei Simão no decurso de agosto a setembro. Mas nós, que temos presentes os autos de summario e a respectiva devassa rapidamente instaurados mais tarde contra frei Simão, e que podêmos, por outras noticias fidedignas, corrigir o que ha de invenção facciosa n’esses documentos judiciaes, vamos encontrar a guerrilha no dia 8 de setembro em caminho de Cezár. Não podêmos comtudo explicar a demora da marcha, a não ser pelas difficuldades do transito provenientes do encontro e das escaramuças com numerosas guerrilhas miguelistas. Diz a devassa que frei Simão tinha sahido do Porto na noite de sete de setembro. Não é exacto. O silencio da _Chronica constitucional_ abona a negativa. Frei Simão não tornou a entrar na cidade, o que seria contradictorio com os fins da sua missão. Tambem diz a devassa que a guerrilha se compunha de cêrca de quarenta homens. Pode ser que tivesse augmentado em numero pela adhesão de alguns voluntarios, mas quando sahiu do Porto não excedia vinte homens. O que é certo, porém, é que frei Simão, com a sua gente, appareceu em Cezár no dia 8 de setembro pela manhã. Toda a guerrilha, incluindo o commandante, vestia jaqueta de policia, como então se dizia, com boné listado de azul e branco. Pelo que respeitava á sua pessoa, parecia a frei Simão que o uniforme militar era mais decente do que o habito arregaçado, a calça justa, as botas de montar, a banda e a espada á cinta, o bacamarte a tiracol com que ordinariamente os frades miguelistas se exhibiam no commando das suas respectivas guerrilhas. Frei Simão apenas trazia, como distinctivo do estado ecclesiastico, a cruz peitoral entalada entre a camisa e a jaqueta. A devassa, no seu proposito de aggravar as responsabilidades de frei Simão, diz que elle entrára em Cezár dando tiros, matando, incendiando. Não foi assim. Logo que chegou, o frade deu voz de descanço á guerrilha, e foi, elle só, bater á porta do Passal. Alguns timidos camponezes, que se metteram em casa cheios de medo quando avistaram o frade do Outeiro á frente de um bando de homens armados, julgaram que era chegado o seu ultimo momento. Mas, depois que elle passou, espreitaram-n’o com olhos de lynce, não sem alegre surpresa por a guerrilha não ter incommodado ninguem. Viram-n’o dirigir-se ao Passal, e conjecturaram que o abbade e o coadjuctor seriam, por sua categoria, as primeiras victimas da vingança de frei Simão. O povo, tendo sempre ouvido dizer a Ignacio da Fonseca e outros absolutistas que o frade era maçon, julgava-o inimigo irreconciliavel do throno e do altar. Frei Simão, sem fazer reparo nas flores e estatuetas do jardim, subiu a escada de pedra e entrou na Residencia, não como um adversario, mas como um pacifico e agradecido amigo. Padre Antonio Pinheiro não estava. Tinha ido a Oliveira de Azemeis confessar, por dedicação, um velho entrévado, antigo parochiano de Cezár, que mudára de terra, e não quizera mudar de confessor. Mas o abbade Moreira Maia, que era, como sabemos, um miguelista tolerante, e que por padre Antonio havia sido informado de tudo o que se passára com frei Simão, recebeu delicada e bondosamente essa inesperada visita. —Não quiz passar aqui, disse-lhe o frade, sem vir agradecer o hospitaleiro acolhimento com que o padre coadjuctor me deu asylo, quando d’elle careci. Agradeço em primeiro logar ao sr. abbade, porque estive sob o seu tecto, e á sombra da sua tolerancia; mas desejo mais uma vez testemunhar a minha gratidão áquelle que, na ausencia do sr. abbade, tão bem comprehendeu e honrou a hospitalidade christã. O abbade explicou o motivo da excepcional ausencia de padre Antonio; e frei Simão mostrou sincero sentimento de o não poder vêr e abraçar. —Vossa Reverencia, apostrophou, de golpe, Moreira Maia, veio só?! Não vê que soou a terrivel hora de uma guerra fratricida, e que, portanto, se expõe a novos e grandes perigos?! —Vejo, respondeu o frade, mas tenho plena confiança na minha guerrilha. —É pois certo o que constava! Vossa Reverencia vem a Cezár em som de guerra!? Vae então correr sangue! Oh! que desgraça! que desgraça! —Os meus homens estão acolá em descanço, com as suas armas ensarilhadas, respondeu frei Simão indicando o sitio onde a guerrilha fizera alto. Bem vê Vossa Senhoria que não tenho pressa de fazer correr sangue, comquanto tenha fome e sêde de justiça. —Mas, por Deus! sr. frei Simão, se as minhas supplicas podem valer de alguma cousa, supplico-lhe que seja generoso e magnanimo. O sangue não remedeia as desgraças consumadas, antes as aggrava, porque atiça os odios e clama vingança. —Vossa Senhoria, que sempre tem sido tolerante, e cujo coração padre Antonio conhecia melhor do que eu quando me offereceu segura hospedagem, afere os sentimentos alheios pelos proprios, e não poderá comprehender, por isso, quanto os meus adversarios teem ferido, esmagado o meu coração, quanto as minhas desgraças, devidas a elles, e as de toda a minha familia me teem feito soffrer ha tão longo tempo! —Pelo amor de Deus! sr. frei Simão! lembre-se de que Jesus Christo perdoou aos deicidas que o crucificaram. Tem soffrido, é certo, não o negarei eu, mas pague-se da sua desgraça deixando que os outros, errantes agora e foragidos, soffram igual tormento. Não exagere a sua desforra, não appelle para o morticinio. —Vossa Senhoria sabe que eu não sou uma féra, mas esperei, soffrendo, a hora da justiça, da justiça apenas, sr. abbade, e essa hora acaba de soar. Acceitarei as resoluções da Providencia. Foi Deus que assim o quiz. Os designios da Providencia acceitam-se, não se discutem. Esteja Vossa Senhoria tranquillo. Eu vou ali ao Outeiro vêr minhas irmãs, que não sabem o que é feito de mim. —Só isso? perguntou o abbade tremulo de commoção. N’este momento, frei Simão viu a cabeça branca de Gertrudes Magna espreitando avidamente a meio do corredor! —Venha cá, disse-lhe o frade, venha cá, santa e boa mulher, a quem devo muita dedicação. É digna do virtuoso sobrinho que tem,—concluiu frei Simão voltando-se para o abbade e abraçando a velha. Mais uma vez, ao sr. abbade, a padre Antonio, a esta boa creatura renovo a expressão de um eterno reconhecimento. E sahiu, saudando respeitosamente o abbade. Gertrudes Magna, petrificada a meio da porta do corredor, exclamou soluçando: —Deus tenha piedade d’elle, que grandes perigos anda correndo! —Nem eu sei, replicou commovido o parocho, como elle poude chegar até aqui são e salvo! —E logo o meu padre não estar cá hoje! Bem dizia elle que não tornava a vêr o sr. frei Simão! Tambem me parece agora que padre Antonio dizia a verdade! O frade foi d’ali direito, com a sua guerrilha, a casa de Ignacio da Fonseca. Dispoz em cordão os guerrilheiros, e elle mesmo quiz bater á porta. Ninguem veio abrir. Tornou a bater. O mesmo silencio. —Ou abrem ou metto a porta dentro! gritou, com colera, frei Simão. Então, um criado, tremendo como varas verdes, veio abrir. Era o Manel Zarôlho. Frei Simão, acompanhado apenas por dois homens, entrou altivamente. —Dize a teu amo, ordenou elle ao Zarôlho, que lhe quero fallar. —Meu amo, respondeu muito gago o criado, não está em casa. —Veremos isso, respondeu frei Simão entrando. E começou a revistar minuciosamente a casa. N’um dos quartos interiores encontrou a mulher de Ignacio da Fonseca, que estava de joelhos, com os olhos fechados, rezando deante de um oratorio. —Não tenha Vossa Mercê receio, disse-lhe o frade. Devo suppol-a isenta de toda a culpa. Ninguem ousará maltratal-a. Mas seu marido onde está? —Meu marido, respondeu a pávida mulher, abrindo a custo os olhos, meu marido fugiu de casa. —Ah! fugiu! Era a consciencia do crime! Elle bem sabe que na casa do Outeiro ha uma pobre creatura, que lhe não tinha feito mal nenhum, e a quem elle condemnou a um soffrimento atroz. —Meu Deus! meu Deus! —Se seu marido temesse Deus, não haveria feito o que fez. Fugiu? Pois bem, a justiça de Deus o alcançará onde quer que elle esteja. Frei Simão continuou a revistar todos os compartimentos do predio. Ignacio da Fonseca não apparecia; devia effectivamente ter fugido. Voltando ao quarto onde a dona da casa estava ainda ajoelhada, o frade disse-lhe com intimativa: —Senhora, os seus criados não lhe fazem falta, e eu preciso augmentar a minha guerrilha. Leval-os-hei comigo. Devem estar bem armados. E a vida de Vossa Mercê responderá pela segurança da familia do Outeiro. Ella por ella. Tendo fugido o dono da casa, não são precisos aqui os criados, porque não ha quem os dirija. E na ociosidade poderiam lembrar-se de praticar algum maleficio. Previno assim novas calamidades. Para o serviço de Vossa Mercê cá ficam as suas criadas, que devem chegar. Dito isto, pode Vossa Mercê ficar tranquilla, porque não correrá risco algum, se a minha infeliz familia não fôr aggravada. Os criados de Ignacio da Fonseca não offereceram resistencia a entrar no meio da guerrilha. O frade distribuiu-lhes as armas e petrechos que encontrou na busca a toda a casa. —O que tentar fugir, disse elle mandando marchar a guerrilha para o Outeiro, será fusilado como desertor. De todos os criados, o que mais tremia era o Manel Zarôlho. Frei Simão pouco se demorou no Outeiro. Anninhas, que se alvoroçou ao vêl-o, sentiu-se mais convulsa, mas o frade procurou aquietal-a dizendo-lhe que a liberdade triumphava, e que o futuro compensaria todos os trabalhos e desgostos do passado. Era um meio indirecto de lhe dar uma vaga sensação de esperança. D. Maria Albina informou á puridade o irmão de que Anninhas continuava no mesmo estado, umas vezes peior, outras melhor, mas sempre concentrada e melancolica, fallando pouco. Tinha dias em que o tremor quasi cessava. Mas n’aquelles em que recrudescia, D. Anna passava muito mal as noites, apenas dormia somnos curtos, queixando-se de calor excessivo. Desde que ella tornára a vêr o frade, quando fugiu da cadeia, a doença entrára n’um periodo irregular, caprichoso, que principalmente parecia depender das modalidades psychicas, e das variações da atmosphera e da temperatura. Não era já a marcha franca da paralysia agitante, mas uma irritabilidade nervosa, extremamente susceptivel, que mantinha, comtudo, visiveis affinidades com essa terrivel enfermidade no seu mais exacto diagnostico. Frei Simão disséra a D. Maria Albina: —Aqui só a inesperada apparição de José Maximo nos podia valer. —E o mano não sabe nada a esse respeito? —Nada! respondeu com funda tristeza frei Simão. Sahindo do Outeiro, o frade disse ás irmãs, principalmente a D. Anna, que estivessem tranquillas, porque ninguem as incommodaria, e accrescentou, mostrando-se alegre e confiante, que não tardariam muito os dias felizes da victoria e da paz. Anninhas ouviu-o sem parecer acredital-o. E frei Simão sahiu com o coração amargurado por comprehender a impressão que as suas palavras deixáram no espirito da irmã. Poz em marcha a guerrilha, e abalou com ella, internando-se no pinhal. A breve trecho mandou fazer alto. Ordenou aos criados de Ignacio da Fonseca que dessem quatro passos á frente. —Quero saber, intimou elle, quem foi que poz aquelle maldito papel na janella do Outeiro. Fez-se um silencio profundo. O Manel Zarôlho batia o queixo n’uma sezão de mêdo, quasi terror. —Foste tu, poltrão? perguntou o frade. —Fui eu, meu senhor, por ordem de meu amo. O Marques ia a metter a arma á cara. —Não quero que o mates! gritou o frade. Não faltarão balas para elle. Não ha maior castigo para os poltrões do que prolongar-lhes a tortura do mêdo. E, voltando-se para os fieis camaradas que o tinham acompanhado desde o Porto, disse: —Muita vigilancia com este canalha, e com os outros. Vamos acampar aqui, porque eu quero observar se, suppondo-me já longe, ha novidade em Cezár. Receiava o frade de alguma represalia contra as irmãs. Estabelecidas sentinellas no improvisado acampamento, frei Simão adormeceu. Estava fatigado physica e moralmente. Dormiu cêrca de trez horas, e foi accordado á voz de alarme pelas sentinellas, que tinham avistado um forte destacamento de milicias. O frade ergueu-se de um salto, esfregou os olhos, cresceu na grandeza do seu vulto, como se o odio o agigantasse. Dispoz a guerrilha em linhas de atiradores. Na frente, os criados de Ignacio da Fonseca. O Zarôlho, mettido na fileira, batia os joelhos um contra o outro, tremendo de medo. —Cara p’ra frente, cobarde! gritou-lhe frei Simão. O Zé de Oliveira, que tinha boa vista, disse ao commandante: —É um destacamento de milicias da Feira, que vem de Oliveira d’Azemeis. E era. Tendo chegado a esta villa a noticia da aproximação da guerrilha, o destacamento de milicias da Feira, que ali estava, sahiu em marcha forçada á procura de frei Simão. Assim conseguiu vencer cêrca de trez leguas em pouco mais de duas horas. Ignacio da Fonseca, que por cautela se tinha ausentado para Oliveira d’Azemeis, quando soube o motivo por que sahia o destacamento, resolveu acompanhal-o. Julgava facil o destroço da guerrilha, e não quiz perder por isso o ensejo de completar a sua vingança. —Olha! exclamou um dos criados do Fonseca, o nosso amo tambem lá vem! —Tambem?! rugiu frei Simão. Fogo, rapazes! fogo! O destacamento respondeu logo á fusilaria. O frade obrava prodigios de valor, commandando a guerrilha, e carregando elle proprio, apezar de quasi lhe faltar o braço esquerdo, a sua espingarda. Logo aos primeiros tiros, o Marques, como o Zarôlho recuasse, empurrou-o para a frente com um pontapé. O tiroteio foi cerrado, vivo. A primeira linha da guerrilha tinha cahido quasi toda. O Zarôlho ficára de costas com uma bala no peito. —Que o diabo te leve! praguejou o Marques. Frei Simão disse: —Foi a justiça de Deus!... Como a fusilaria começasse a afroxar por parte do destacamento, o frade comprehendeu que lhe tinha causado grandes perdas. —Avancemos, rapazes! gritou elle. E a guerrilha, enthusiasmada, avançou carregando. O resto do destacamento, muito dizimado, recuou. Frei Simão estimulava os seus guerrilheiros gritando e correndo: —A elles, rapazes! a elles! Os milicianos começaram a dispersar-se, fugindo. O fogo da guerrilha perseguia-os; varria-os a saraivada das balas. Na debandada, alguns dos milicianos cahiam, outros fugiam á morte com desesperada velocidade. Quando o terreno ficou varrido, frei Simão foi reconhecer os cadaveres e apossar-se das armas que jaziam com elles. —Olá! apostrophou o Marques, que grande patife aqui está dormindo a sua somneca! Era Ignacio da Fonseca, que tinha o craneo esmigalhado. —Justiça completa! exclamou frei Simão. Deus fez justiça completa, e nós combatemos honradamente em campo aberto. Quedou-se o frade, encostado á espingarda, a olhar para o morto. Um turbilhão de pensamentos remoinhava no espirito de frei Simão. —A pobre Anninhas, pensava elle, estava vingada. Fôra a Providencia, parecia, que preparára aquelle desenlace. Ignacio da Fonseca, o auctor do bilhete, ali estava morto, a pequena distancia do Zarôlho, que fôra pôr na janella esse maldito papel. Como a mão poderosa do destino combinára os acontecimentos, de modo que fosse feita justiça simultanea e completa! Os outros criados de Ignacio da Fonseca, que tantas vezes, por ordem de seu amo, tinham vexado a familia do Outeiro, ali tinham tambem morrido, á voz do chefe d’essa familia, varados talvez pelas balas do proprio amo! Frei Simão mandou tocar a descanço. Mas elle não descançou, esteve recordando todas as extranhas circumstancias, todas as notaveis coincidencias d’aquelle rapido combate. XXVII Os fusilamentos de Vizeu A guerra assoladora, a guerra infausta. Pᵉ. José Agostinho de Macedo—«Newton». O desejo de frei Simão era, atravez de todos os perigos e contrariedades, marchar logo sobre Arouca. Mas, dentro do termo da Villa da Feira, tinham-se levantado guerrilhas miguelistas, que todos os dias iam engrossando, e que importava bater. Assim lh’o representaram alguns influentes constitucionaes, que enthusiasmados com a derrota inflingida aos milicianos, correram a pedir auxilio ao frade libertador. Uma d’essas guerrilhas era de Santo Izidoro de Romariz, e frei Simão voou ao seu encontro. Depois de uma ligeira escaramuça de meia hora, a guerrilha miguelista foi destroçada, os chefes fugiram. A fim de evitar que reapparecessem no dia seguinte, o frade quiz dar-lhes caça. Informaram-n’o de que um dos chefes, o mais perigoso, tinha ido esconder-se na casa do Boiz. Frei Simão dirigiu-se ali, e encontrou, dominadas de grande terror, muitas senhoras que se haviam refugiado n’aquella casa. —Estejam Vossas Mercês tranquillas, disse-lhes gentilmente o frade, que nós não vimos a perseguir as damas, mas apenas a saldar contas com os nossos adversarios, que nos perseguem a ferro e fogo. A melhor defesa do sexo feminino é a sua propria debilidade: respeitamol-a, como devemos. E, n’um rasgo de cavalheirismo medieval, desandou pela porta fóra sem querer effectuar a busca. —Rapazes! disse frei Simão aos seus guerrilheiros, eu sei o que é a angustia d’uma mulher attribulada. D’isso tenho exemplo na minha propria familia. Aqui está a razão por que não teimei em entrar na casa do Boiz. Se ali encontrassemos um marido, um filho, um irmão de qualquer d’aquellas pobres mulheres, matal-a-iamos de desgosto. Achei, pois, que o melhor era não procurar, por tal preço, inimigos nossos, que não deixaremos de encontrar em barda com as armas na mão, sejam esses mesmos ou sejam outros. Os liberaes de Cezár, que aliás não eram muitos, enthusiasmados com a victoria de frei Simão, e considerando-a já um definitivo triumpho, tiveram a sua hora de embriaguez politica, depois que o frade se ausentou. Incendiaram e saquearam algumas propriedades, de preferencia as dos mais encarniçados adversarios de frei Simão. Eram movidos pelo desejo de vingal-o, e á sua familia. A devassa imputa pessoalmente ao frade todas essas represalias, chegando a dizer que elle, em Cezár, _lançou por terra uma imagem de Christo, quebrando-lhe um braço_. Esta nota tornava-se precisa no processo para fazer acreditar que frei Simão era effectivamente pedreiro-livre. Não apparece na devassa noticia do combate em que a guerrilha venceu as milicias, junto a Cezár. Percebe-se. Os miguelistas occultaram o desastre, por ter sido completo e esmagador; mas afeiaram o procedimento do frade para o condemnar em saldo de contas. Todavia um homem de pé descalço foi, a correr, levar a noticia da victoria de frei Simão ao alferes commandante da guarda da Farrapa, e dizer-lhe que o frade, depois de alguma demora, mettera pela estrada da Venda da Serra. O alferes tratou logo de levantar as suas ordenanças, enviando ao mesmo tempo o alviçareiro a Arouca com aviso ao capitão-mór para que lhe acudisse com reforço. Foi no sitio do Soutello que o alferes alcançou o frade, cerca das trez horas da tarde. Travou-se encarniçado combate, que frei Simão demorou propositadamente até ao escurecer, com o fim de aproveitar a noite para seguir caminho de Arouca. Effectivamente, só ao lusco-fusco foi que o frade se retirou sobre o rio Arda, que atravessou a vau, dirigindo-se pela serra de S. Martinho ao monte da Corugeira. A esse tempo chegava, em reforço, o capitão-mór de Arouca, que a guerrilha recebeu com uma descarga. Diz a devassa que n’essa occasião, respondendo as ordenanças com muita fusilaria, frei Simão fôra ferido. Não é exacto. O frade passou incolume, seguindo em direcção a Arouca, a coberto dos montes e da escuridão da noite. Descendo pela serra da Mó, foi, muito fatigado pelos trabalhos d’aquelle dia, pernoitar na casa da sua familia, no Outeiral. Frei Simão suppoz que as ordenanças lhe teriam perdido o rasto, e que ninguem saberia da sua chegada ao Outeiral: planeava, pois, dar ao romper da manhã um assalto ao convento, aproveitando a ausencia das ordenanças. José Bernardo de Vasconcellos, quando viu o filho entrar na quinta, com a guerrilha, cheios de fadiga, derreados de cansaço, teve uma exclamação de profundo desalento: —Ah! meu filho, que te vens metter no meio dos nossos inimigos! Frei Simão sorriu e disse: —Quiz a todo o custo chegar a Arouca, porque tenho a cumprir um juramento, e receei que o tempo me faltasse. O tempo ou a vida... Mas ainda de madrugada já a quinta do Outeiral estava cercada por todas quantas ordenanças poderam reunir-se. Não obstante, frei Simão deu ordem á guerrilha para que forçasse a passagem. Pediu-lhe o pae que tal não fizesse. —Meu querido pae, respondeu frei Simão, aqui não ha outra cousa a fazer. As ordenanças apontaram armas contra a guerrilha, quando a viram assomar audazmente ao portão da quinta. Soou a primeira descarga, e o fumo ennovelou-se no ar toldando, como uma grande e espessa nuvem, o azul purissimo da manhã. Frei Simão, respondendo ao fogo, poude fazer recuar um troço das ordenanças, e abrir caminho. Debaixo de uma chuva de balas, dirigiu-se para a serra da Freita, onde queria tomar posição. Mas as ordenanças perseguiram-n’o em tanto numero e com tanto desespero, que a guerrilha se desconcertou: uns fugiram para a banda de Alvarenga; outros, com frei Simão, foram correndo sobre S. Pedro do Sul pela serra de Bustello e Cabreiros. Sempre perseguido, cada vez com maior encarniçamento, frei Simão julgou que poderia desnortear as ordenanças escondendo-se para deixal-as passar. Diz Soriano que o frade se metteu n’um côrrego da ribeira de Raques.[7] Era, diz a devassa, um barrôco da ribeira de Adaufe. O ardil não dera o resultado que frei Simão esperava. As ordenanças descobriram o escondrijo e atacaram-n’o. O frade conhecia toda a desvantagem da sua posição, logo que o ardil falhasse. Mas não desanimou. Estimulou, com energicas palavras, a coragem dos guerrilheiros, e organisou de prompto a defesa. O resto da guerrilha bateu-se com assombrosa bravura, apesar de muito castigado pelo fogo dos miguelistas. Foi longo e renhido o combate, e as munições de frei Simão eram já escassas. A devassa, para engrandecer a victoria, diz que os guerrilheiros presos eram vinte e um, e que tinham os boldriés ainda municiados de cartuxame. Seria preciso não conhecer frei Simão para acreditar que elle não luctasse até esgotar as suas munições. Francisco Marques disse ao frade: —Sr. frei Simão, eu vou atar o lenço na espingarda para acabarmos com isto, que já não pode durar muito. —Não! nunca! replicou, indómito, o frade. A inimigos encarniçados não se pede paz. Quando se nos acabar o ultimo cartuxo, que nos matem ou que nos prendam, pouco importa. Tanto monta morrer hoje como amanhã. E até gastar o ultimo cartuxo, a guerrilha de frei Simão sustentou, com heroico denodo, o tiroteio. A derrota estava prevista; era certa. As ordenanças cercáram a guerrilha, cada vez mais redusida pelo morticinio. Eram onze horas da manhã. Frei Simão e seis dos seus valorosos companheiros foram presos, condusidos a Arouca, onde entraram ao som festivo dos sinos do mosteiro, que repicavam em triumpho. As freiras, engalanadas com laços de fita escarlate, davam vivas a D. Miguel I, nas janellas do edificio. Na cella da abbadeça houve beberete de vinho fino do Porto, esponjado em pão de ló de S. Bernardo, guloseima lendaria n’aquelle mosteiro. Margarida Candida chorava, abraçada a um crucifixo, na hora em que o frade de Cezár, irmão de Joaquim Maria, passava, entre as ordenanças, caminho da cadeia. Frei Simão, na attitude de um vencido que tem a consciencia de haver cumprido o seu dever, atravessava por entre a multidão, que o cobria de injurias, sem baixar a cabeça nem o olhar. Mas ao passar em frente do mosteiro, a cabeça descahiu-lhe, o olhar rastejou no solo. Uma onda de tristesa inundou-lhe o forte coração. Tudo estava perdido. Ia morrer, sem ter cumprido o seu juramento, realisado o seu ideial. Via a Terra Promettida, sem poder entrar os seus muros, transpôr as suas portas. E, de subito, lembrou-se da inexplicavel melancolia que o acommetteu, annos antes, a ultima vez que ali estivera. «Era um aviso de Deus!» pensou o frade. As madres, parecendo-lhes que frei Simão ia succumbido, esganiçaram-se em redobrados gritos de alegria, vivas a D. Miguel I, ao corregedor, e ás ordenanças, que tambem festejavam com palmas. Após curta demora em Arouca, foram os presos condusidos a Lamego, e d’ahi para Vizeu, onde entraram no dia 19 de setembro, atravessando por entre os apupos, os insultos, as pragas da multidão, que enchia as ruas. Frei Simão e os seus companheiros tinham feito toda a jornada a pé, com inquebrantavel coragem. Caminhavam para a morte com a firmesa de verdadeiros heroes. Em Vizeu estava funccionando o _tribunal de terror_, a commissão mixta, composta de trez magistrados civis e de quatro vogaes militares, que os ia julgar e que, fatalmente, os condemnaria. Este sanguinario tribunal já havia mostrado o seu implacavel rigor na sentença que, em agosto, pronunciára contra trez sacerdotes liberaes. Eram elles os padres Lauriano Antonio Pinto de Noronha, Caetano José Pinheiro e Antonio Alberto Pereira Pinto Monte-Roio, que foram presos quando navegavam Douro abaixo com o proposito de reunir-se á expedição libertadora no Porto. Ia tambem com elles frei Joaquim dos Santos Pereira, mas esse, por haver sido ferido gravemente no peito com uma bala, não foi logo julgado, e assim logrou salvar a vida, porque o tratamento não tinha ainda acabado quando a liberdade triumphou[8]. Menos felizes, os seus trez companheiros foram arcabusados no Campo da Ribeira em Vizeu, no dia 23 de agosto. Só em dezembro, a _Chronica constitucional do Porto_ tinha noticia relativa ás primeiras victimas d’aquelle tribunal de terror. No numero do dia 3 dizia o orgão official do governo de D. Pedro: «Já se contam trez individuos espingardeados por estes monstros. As primeiras victimas, segundo nos consta, foram trez clerigos; esses apregoados defensores do altar e throno folgam de banhar as mãos no sangue dos ministros da Religião, quando estes fieis á legitima Rainha, e inimigos do perjurio e da usurpação, recusam tornar-se cumplices do crime de seus algozes!» Frei Simão, cuja importancia politica era maior que a dos outros ecclesiasticos até ahi julgados pelo tribunal de Vizeu, sabia que seria condemnado á morte, mas essa certesa em nada lhe quebrantava a hombridade de caracter, que sempre conservou. —Para mim, rejeitaria a generosidade dos usurpadores, se elles podessem ser generosos alguma vez, dizia frei Simão; mas só eu devo ser responsavel pelo levantamento da minha guerrilha, e pelos seus actos. Repugna, por inverosimil, a affirmação da devassa quando diz que frei Simão declarou ter acompanhado a guerrilha forçadamente. Ao contrario, elle procurava salvar da morte os seus homens de armas, inculcar-se como unico e verdadeiro culpado. De nada valeu, porém, essa nobre tentativa. No dia 16 de outubro reuniu-se a commissão mixta, e summariamente condemnou á morte, dentro de vinte e quatro horas, frei Simão de Vasconcellos com os seus seis companheiros de guerrilha. Eram elles: Antonio Joaquim, natural da cidade do Porto, furriel do batalhão de caçadores n.º 12. Joaquim Gonçalves, natural da freguesia de Casaes, concelho e comarca de Penafiel, soldado do mesmo batalhão. Francisco José Marques, natural do logar e freguezia de Sanfins, comarca da Villa da Feira, soldado do batalhão da Serra, organisado no Porto. José de Oliveira, natural do logar de S. Geão, freguesia do Souto, lavrador, soldado do batalhão de Villa Nova, organisado no Porto. Joaquim José da Silva, natural do Porto, freguesia de Santo Ildefonso, soldado de caçadores 2. Luiz Ferreira da Costa Sant’Anna, natural de Ranhados, proximo a Vizeu, residente no Porto, e hortelão dos Loyos. Frei Simão julgava que eram esses os seus unicos guerrilheiros que tinham sobrevivido ao combate na ribeira de Adaufe; mas um d’elles, José Ferreira, natural de S. Martinho de Argoncelhe, termo e comarca da Villa da Feira, podera escapar-se no caminho, sendo, porém, recapturado pelos miguelistas, e tambem, mais tarde, condemnado á morte. Immediatamente á leitura da sentença, frei Simão e os seis guerrilheiros foram introdusidos no _oratorio_ em uma das aulas nos claustros do Seminario. O frade, muito sereno, pediu que lhe mandassem um confessor, papel e tinta. Confessou-se ao religioso que lhe enviaram, e que, depois da confissão, se lhe mostrou muito affeiçoado. Em seguida tomou apenas um caldo, e sentou-se a escrever tranquillamente. Começou por uma carta a seu irmão Frederico Pinto. Tenho-a deante dos olhos: a lettra é firme, clara; nem uma entrelinha. Diz assim: «Vizeu em o Oratorio, 16 de outubro Mano do C. Ámanhan vão pôr termo aos meus trabalhos, estimarei seja o ultimo sangue que se verta: por outra via te escrevi que creio ahi te será entregue, pessoalmente. Peço-te me ajustes contas com todos os acredores, e me desencarregues a minha alma: visitas á Mana, pequenos e mais familia e que me encommendem a minha alma ao Creador; peço-te se o meu sangue te servir de alguma cousa ajudes as Manas com especialidade Maria e Anna que muito tem soffrido. Adeus. Este religioso a quem sou muito devedor fica com as minhas declarações que te enviará ou ás Manas de ellas ter resposta. (_Sic._) Adeus. Teu mano affectivo F. Simão.» Dobrou o papel, e sobrescriptou: Ill.ᵐᵒ Sr. Frederico Pinto Pereira de Vasconcellos. —Agora, disse elle voltado para o religioso que estava rezando, vou fazer as minhas declarações. Mas é trabalho que requer mais vagar, porque não desejo que me esqueça nada. Escreveu seguidamente duas folhas de papel almasso, que tambem tenho deante dos olhos. A mesma firmesa de lettra; e uma só entrelinha, apenas. São, effectivamente, declarações sobre negocios domesticos, menção de quantias que lhe deviam ou de que era devedor. A sua placidez de espirito era tamanha, que não se esqueceu de mencionar pormenores sobre a administração da casa. Refere-se escrupulosamente ás missas que deixou por dizer, e que quer sejam ditas sem falta. Torna a recommendar as irmãs, especialisando Maria e Anna, aconselhando aos seus que «vivam bem e sejam amigos.» Depois de ter escripto por mais de uma hora, frei Simão sentou-se de fronte do crucifixo, que tinham posto no oratorio, e assim se conservou meditando durante toda a noite. Ao romper da manhã tomou outro caldo, e ajoelhou largo tempo em oração. —Irmão, disse-lhe o religioso, creio que se avisinha a hora tremenda. Veja se quer mais alguma cousa de mim. —Sim, meu padre, quero entregar-lhe as minhas declarações; mas ainda me falta escrever mais alguma cousa. Tinha apenas traçado duas linhas, quando a porta se abriu. Era o momento fatal. Frei Simão entregou as declarações e a carta ao religioso, a quem abraçou e beijou a mão. Depois sahiu serenamente e assim se dirigiu, no meio da escolta de milicias de Bragança, para o terreiro contiguo, chamado de Santa Catharina. Ahi abraçou os seus companheiros de desgraça, pedindo-lhes perdão, e agradecendo-lhes a sua lealdade. Ao Marques abraçou por duas vezes. Não chorou. Tornou a abraçar e a oscular o religioso, que lhe havia assistido. Firmemente foi collocar-se em alvo na linha dos condemnados. Ouviu-se então a voz de apontar. Frei Simão, erguendo o braço direito como para deixar o peito bem a descoberto, gritou: —Viva Deus! Viva a liberdade! Viva a Rai... A voz de fogo cortou, nos labios de frei Simão, a sua ultima palavra. Sete homens cahiram varados pelas balas. Vizeu estava em festa. A infima plebe dançava á roda dos cadaveres, tripudiando n’um festim selvagem, que durou todo o dia. Alguns dos cadaveres ensanguentados foram levados de rojo até ao fosso onde costumavam lançar os animaes mortos. O religioso impediu que o de frei Simão tivesse igual destino: elle mesmo o acompanhou á capella de S. Martinho. _A Chronica constitucional_, continuando a referir-se ás sentenças do sanguinario tribunal de Vizeu, noticiava no dia 8 de dezembro a morte de frei Simão, e no dia 15 renovava o assumpto, dizendo: «Foi espingardeado a 19 de outubro passado (aliás 17, como se prova pelas declarações e carta que examinamos) o patriota frei Simão, cuja severidade de alma e firmesa, no meio dos tormentos que padeceu, chegou a assombrar os proprios algozes que o condemnaram.» E era verdade. O frade constitucional de Cezár morrêra como um heroe, christã e politicamente encarado. Sobre este e outros exemplos de grandiosa dedicação architectou a liberdade a sua conquista. Esquecel-o é um crime, e comtudo, ás vezes, completamente o esquecemos! XXVIII Epilogo Estes são os espelhos, em que nos devemos todos vêr, e n’elles ver-se a luz, e guia que deante vai. Luiz de Souza de Lima—«Avisos do céu». Em agosto de 1833 Margarida Candida teve occasião de recuperar a liberdade, e recuperou-a. Frei Simão não poude chegar a abrir-lhe as portas do mosteiro, mas a sua familia, na primeira hora de triumpho, logrou não só cumprir a promessa do frade, mas até vingar por um acto publico a morte d’elle. Segundo a informação publicada pela _Chronica_ no seu numero correspondente ao dia 31 d’aquelle mez e anno, o capitão-mór de Arouca, sabendo que se tratava de acclamar ali a senhora D. Maria II, mandou prender o capitão d’ordenanças, por suspeito de proteger a conspiração, e com o fim de o enviar á commissão mixta de Vizeu. «Este acto de violencia, diz a _Chronica_, despertou o brio dos conjurados, e por diligencias de Antonio Pinto Pereira de Vasconcellos, que com zelo incançavel fez deliberar o resto dos amigos apalavrados, no mesmo dia se dirigiram á cadea, soltaram o preso, e concluiram depois o acto solemne da acclamação da senhora D. Maria II.» Antonio Pinto Pereira de Vasconcellos era, como se sabe, o irmão mais novo de frei Simão. Mas um documento de familia diz-nos que o pae, apesar de velho e doente, tambem se associou á conspiração planeada pelo filho mais novo. «O capitão-mór fugiu—prosegue a _Chronica_—com os abbades de Santa Eulalia e S. Salvador, bem como as freiras do convento, excepto quatro. D’estas tem voltado algumas, sabendo que reina a boa ordem, e que não se commettem as violencias com que o partido da usurpação intimida os povos, fazendo-lhes crer que as vinganças e a desordem é ao que aspiram os constitucionaes.» Margarida Candida foi das freiras que fugiram, e não voltaram. Teve razão, porque a hydra do absolutismo não ficára ainda esmagada em Arouca. O capitão-mór fugitivo requisitou forças que fossem prender José Bernardo Pereira de Vasconcellos e seu filho Antonio, motivo por que ambos emigraram para o Porto. A dentro das trincheiras liberaes, no Porto, Antonio Pinto, no empenho de fazer triumphar a causa que lhe tinha victimado dois irmãos, tomou sobre si a tarefa de organisar um batalhão de voluntarios de Arouca, que se lhe foram reunir. Saibamos o destino de Margarida Candida, depois que fugiu do mosteiro. Restaurada a liberdade, appareceu em Aveiro uma senhora vestida de preto, e acompanhada por uma criada, sua unica familia. Alugou casa n’aquella cidade, e ali se domiciliou. Todos os dias, pela manhã, visitava a egreja de Santo Antonio, e orava longo tempo ajoelhada sobre a sepultura de Joaquim Maria de Vasconcellos. Esta senhora era a sobrinha de André Pinto. O tio vivia ainda, mas estava refugiado em Hespanha, temendo-se principalmente dos seus adversarios politicos de Traz-os-Montes. Constava que tinha feito testamento deixando a pessoas extranhas algumas propriedades que tinham escapado á voragem de grandes despesas politicas. Mas, vindo a morrer em Hespanha, não se lhe encontrou o testamento, pelo que Margarida Candida se habilitou á herança. Em Aveiro suppunha-se que a familia Vasconcellos de Cezár tinha estipulado a Margarida Candida uma mesada, que ella receberia em quanto os tribunaes a não reconheceram como herdeira do tio. Ninguem revelou a D. Anna de Vasconcellos o fim tragico de frei Simão, mas é de suppôr que ella suspeitasse o que tinha acontecido, porque os seus padecimentos aggravaram-se desde 1833. A enfermidade de que soffria pareceu retomar o seu antigo curso, por algum tempo interrompido, ou pelo menos attenuado. Sobreveio a difficuldade dos movimentos, a atrophia gordurosa dos musculos, a inercia, a cerrada tristesa que obscurecia o espirito, mas o tremor nervoso tinha diminuido. Quando, porem, o periodo terminal da paralysia agitante tendia a accentuar-se, uma doença intercorrente, em 1837, apressou a morte. D. Anna de Vasconcellos foi sepultada na egreja de Cezár. O pai, acompanhado por alguns amigos, trouxe, uma noite, o feretro da filha para a capella de familia, onde se acha depositado. Do fim de José Maximo da Fonseca sabemos pelo livro do sr. Martins de Carvalho, intitulado _Apontamentos para a historia contemporanea_. «No dia 15 de dezembro de 1865—diz este livro, a pag. 102—falleceu em uma casa da misericordia de Lagos, no Algarve, um individuo com o nome supposto de Manuel do Nascimento, e conhecido pela alcunha de _Fresca Ribeira_. «Este individuo, que tinha por profissão habitual concertar pratos e outros objetos de louça, e que se apresentava como caldeireiro ambulante, tinha o rosto desfigurado com polvora e com algumas cicatrizes. «Era em todo o Algarve, em Beja e outras povoações do Alemtejo, voz geral que este homem fôra um dos que tomaram parte no crime commettido no dia 18 de março de 1828. «Via-se que não era o que inculcava, porque mal podia comprehender-se que, sendo elle o que dizia, fallasse com correcção as linguas francesa e hespanhola, e tivesse conhecimento muito regular do latim.» Os ultimos annos da existencia de José Maximo foram a suprema miseria de um desgraçado. Quando em Beja apurou discretamente que D. Anna de Vasconcellos tinha morrido, torturada por tão longos soffrimentos, começou a embriagar-se, o que até ali jámais havia feito. Os curiosos, explorando o ébrio, faziam-lhe perguntas, a que elle então respondia, dizendo inconscientemente a verdade: Que tinha sido estudante de um e outro direito em Coimbra; que tivera parte no crime do Cartaxinho; que fugira e andára emigrado pela Belgica, França e Hespanha; e que ainda durante o governo de D. Miguel viera por algumas vezes a Portugal a vender _matala-uva_, sem que ninguem o reconhecesse, graças ao seu completo disfarce. Apesar de embriagado, José Maximo chorava, n’uma funda tristeza, quando fazia estas revelações. Mas nunca pronunciou uma unica phrase allusiva a D. Anna de Vasconcellos. Esse segredo era para elle tão instinctivamente inviolavel, que nem a «verdade do vinho» lh’o podia arrancar. O sr. Martins de Carvalho completa as suas informações escrevendo: «Dizia-se em Beja e no Algarve que este homem era natural d’uma terra do Alemtejo, onde tinha familia. «Em Beja ensinava aos estudantes do lyceu, quando com elles se encontrava no largo d’este edificio, latim, logica, e outros preparatorios, recebendo por isso o que lhe queriam dar. «Conta-se que um seu contemporaneo do Alemtejo, fallando com elle, o reconhecêra; que instara para que deixasse a vida em que andava, e que até lhe dera facto novo para vestir. Apesar d’isso, continuou sempre até morrer no seu modo de vida.» Faremos ligeiros commentarios a estas informações. O dizer-se que o Fresca Ribeira era natural do Alemtejo proviria do facto de elle, no tempo em que no Porto adoptou aquella alcunha, se inculcar como natural d’essa provincia. A circumstancia de José Maximo, no regresso a Portugal, onde certamente o attrairia a saudade da patria que refina nos desgraçados, não sahir das provincias meridionaes, a mim mesmo a explico pelo horror que experimentaria em tornar a vêr as regiões do norte do paiz, onde a felicidade lhe tinha sorrido no amor. Era-lhe dolorosa consolação poder erguer os olhos ao ceu da patria e pisar terra portuguesa, sem comtudo ter animo para transpor a linha ideal, que na carta geographica de Portugal separava o seu passado do seu presente. Para atormental-o, bastavam-lhe as dilacerantes recordações que levava em si mesmo para toda a parte. Mas aclarar a memoria de tantos logares conhecidos, visitando-os, reconstituir scena a scena o drama da sua existencia pela exacta renovação do proscenio e do scenario, seria sacrificio superior ás forças de quem já tão quebradas as trazia pelos embates e conflictos de um amargo destino. O contemporaneo que, fallando com elle no Alemtejo, o reconhecêra, devia ter sido talvez Jayme de Carvalho, o marido de Ernestina. Assim acabou no catre de um hospital, ultimo paradeiro de todos os desgraçados, aquelle enthusiasta poeta da liberdade, que, melhor orientado, poderia haver prestado ao seu paiz relevantes serviços e occupado os mais honrosos cargos na gerencia dos negocios publicos. Mas, na miseria em que viveu, a morte foi para elle um beneficio da Providencia. Desde 1828, José Maximo da Fonseca não era senão o epitaphio ambulante de si mesmo: epitaphio em que não se lia um nome, nem uma data, mas apenas, como acontece algumas vezes, uma simples invocação á piedade dos viandantes. Quem em Beja ou no Algarve via passar o caldeireiro, coberto de remendos e cicatrizes, e sabia que elle preleccionava aos estudantes varias disciplinas, teria porventura dó d’esse mysterioso homem, que, apesar de redusido a tão humilde mister, denunciava haver tido mais alto nascimento e uma selecta educação litteraria. A piedade que elle inspirava era como que o _Pater noster_ do viandante ao passar pela cruz negra das encruzilhadas sinistras. Havia ali uma victima, cujo nome se ignorava. «Emquanto ao seu verdadeiro nome—perora o sr. Martins de Carvalho com referencia ao _Fresca Ribeira_—e á sua naturalidade, nem mesmo embriagado o revelava.» Os restos mortaes de frei Simão de Vasconcellos foram em 1836 trasladados, com os dos seus guerrilheiros e outros martyres da liberdade, por iniciativa de uma commissão patriotica, para um mausoléo de honra levantado nos claustros da Sé de Vizeu. A trasladação realisou-se com grande pompa religiosa e apparato civico. A tradição refere que o corpo de frei Simão estava ainda incorrupto quatro annos depois do fallecimento, quando o transferiram da capella de S. Martinho, que já não existe, para o moimento da Sé. Tambem em Cezár me asseverou um contemporaneo de frei Simão, e seu intimo, que elle costumava trazer cilicios por baixo do habito monastico. A inscripção lavrada no mausoléo dos liberaes arcabusados em Vizeu consta de texto latino e respectiva traducção, que diz assim: «_Pela adhesão á liberdade, carta e rainha Maria II, por iniquas sentenças foram innocentemente condemnados e fusilados no anno de 1832 e 1833_, (Seguem-se os nomes dos liberaes portugueses, incluindo o de frei Simão, e de alguns hespanhoes). «_Descançam suas cinzas n’este monumento, o qual em detestação da execranda tyrannia d’aquelle tempo, e para memoria perpetua de varões tão benemeritos da patria os cidadãos de Vizeu religiosamente e por commum subscripção lhes dedicaram no dia 26 de agosto de 1836._ Esta glorificação pósthuma explica o motivo por que, na capella de familia, em Cezár, falta o cadaver de frei Simão de Vasconcellos. Frederico Pinto, que, durante o cêrco do Porto, voltou, espontaneamente, ao serviço militar, sendo ajudante do batalhão de voluntarios de Santa Catharina, foi mais tarde empregado publico ao serviço da fazenda nacional. Casou em segundas nupcias com D. Anna Clementina Pereira Berredo, da illustre familia dos Berredos de Gaya. Morreu desastrosamente no sitio das Barrancas, estrada dos Carvalhos, por se ter empinado a égua que montava, ficando elle esmagado na quéda, sob o peso do animal. O cadaver de Frederico Pinto foi condusido á capella de familia, onde jaz. Um filho de Frederico Pinto, o major Augusto Cezár de Vasconcellos, morreu tragicamente, cumprindo o seu dever de militar, ás mãos dos soldados que o desrespeitaram na revolta de Braga, em 1862. Tambem os seus restos mortaes estão na capella de Cezár. O primogenito de Frederico Pinto teve o nome do pai, e já não existe. Foi elle que forneceu ao dr. Henriques Sêcco as ligeiras informações que a respeito de frei Simão este professor agrupou no primeiro volume das _Memorias do tempo passado e presente_. Na casa de Cezár vive actualmente, como representante da familia do Outeiro, outro filho de Frederico Pinto, o sr. Alfredo Praça de Vasconcellos, engenheiro civil, que ha alguns annos abandonou a engenheria pela vida agricola. Foi elle, mais uma vez o direi, que teve a paciencia e a bondade de me dar muitos esclarecimentos que lhe pedi sobre a vida e morte de seu tio frei Simão. FIM NOTAS [1] O sr. Joaquim Martins de Carvalho. [2] Esta senhora, tendo tomado gosto á vida conventual, veio, mais tarde, para as Commendadeiras de Santos, em Lisboa. Sahiu d’ahi, velha e doente, para ir residir n’um predio da Travessa do Convento de Jesus, onde falleceu ha cinco annos, como consta do obituario da freguezia de Santa Catharina. [3] Este predio pertence hoje ao sr. conselheiro Francisco de Castro Mattoso Pereira Côrte Real. [4] Este carpinteiro de Milheirós da Feira ainda vive. Chama-se Antonio Joaquim Corrêa Paes. [5] Esta irmã de frei Simão veiu a casar, mais tarde, na casa do Bairro, em Arouca. [6] Monsenhor Dupanloup foi depois uma das glorias do episcopado francez. [7] «Historia da guerra civil», terceira epocha, tomo IV, pag. 4. [8] Frei Joaquim morreu conego da Sé de Lisboa, cêrca de 1874. ERRATAS MAIS IMPORTANTES Nota do transcritor: Corrigido; e alguns erros adicionais também foram corrigidos. Pag. 13-14, onde se lê—o rendimentos—leia-se—o rendimento. Pag. 16, linh. 21, onde se lê—monsenho—, leia-se monsenhor; linh. 22, onde se lê—portuguer, leia-se—portuguez; linh. 23, onde se lê—cardeaz, leia-se—cardeal. Pag. 17, linh. 21, onde se lê—accontecimentos, leia-se—acontecimentos. Pag. 43, linh. 4 e 6, onde se lê—tres, leia-se—trez. Pag. 174, linh. 16, onde se lê—a fim, leia-se—o fim; linh. 17, onde se lê—secreto, leia-se—occulto. Pag. 213, linh. 8, onde se lê—Villa da Freira, leia-se—Villa da Feira. Pag. 219, numeração do capitulo, onde se lê—XIX, leia-se XX; mesma pag. linh. 1.ª, onde se lê—Villa da Freira, leia se—Villa da Feira. Pag. 225, linh. 22, onde se lê—está salva, leia-se—estava salva. Pag. 227, linh. 9, onde se lê—um um, leia-se—um. Pag. 272, linh. 34, onde se lê—le, leia-se—e; linh. 35, onde se lê—as, leia-se—las. [Illustration] End of Project Gutenberg's A guerrilha de Frei Simão, by Alberto Pimentel *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 62574 ***