The Project Gutenberg EBook of Ensaio sobre a inconstitucionalidade das
leis no direito português, by João Maria Tello de Magalhães Collaço

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Title: Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis no direito português

Author: João Maria Tello de Magalhães Collaço

Release Date: July 31, 2011 [EBook #36927]

Language: Portuguese

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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Julho 2011)




João Maria Tello de Magalhães Collaço


ENSAIO

SOBRE A

INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

NO DIREITO PORTUGUÊS




COIMBRA

FRANÇA E ARMENIO, Editores

Arco d'Almedina




ENSAIO

SOBRE A

INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

NO DIREITO PORTUGUÊS




João Maria Tello de Magalhães Collaço


ENSAIO

SOBRE A

INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

NO DIREITO PORTUGUÊS




COIMBRA

FRANÇA E ARMENIO, Editores

Arco d'Almedina




imprensa da universidade—1915



A MINHA MÃE


Dissertação para concurso a assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (III Grupo—Sciências Políticas).



INTROITO



Pode dizer-se com verdade que o problema da inconstitucionalidade das leis figura na ordem do dia do direito público contemporâneo. E, se a todos os escritores da especialidade êle deve interessar, entre nós, a circunstância de a Constituição haver adoptado o ótimo princípio de conhecerem os tribunais da inconstitucionalidade das leis tornou verdadeiramente indispensável o estudo da questão.

O que hoje apresento, não é decerto, o estudo desejado, nem o estudo necessário, mas apenas um
ensaio, que procurarei valorizar tendo sempre em contemplação o aspecto naciona.

O problema da inconstitucionalidade da lei porventura só o propôs a doutrina do constitucionalismo, só a aparição das Constituições? Decido-me pela negativa, e no primeiro capítulo do meu ensaio me esforço por demonstrá-lo. É certo que a significação do problema é diversa no regimen político dito absoluto? Mas justamente assim o considero.

[x] Há depois a colocar o problema perante o sistema monárquico constitucional e distrair das doutrinas da época quais as tendências esboçadas.

A constitucionalidade da lei surge, em certos termos, como uma condição do seu cumprimento, perante a actual Constituìção política da República? Impunha-se o exame dessa noção, a determinação do seu alcance, o estudo dos seus caracteres. Restava concluir afirmando a esperança de que o alargamento dêste princípio há de ter por certo uma influência normalisadora contra a imoderação do Parlamento? Fundada fica essa esperança e oxalá em boa hora.



ENSAIO

SOBRE A

INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

NO DIREITO PORTUGUÊS





CAPÍTULO I

BREVISSIMA NOTÍCIA DA NOÇÃO
DE LEIS FUNDAMENTAIS
ATÉ Á IMPLANTAÇÃO DO REGIMEN CONSTITUCIONAL



1.—A noção da lei fundamental
desde o começo da Monarquia até à Restauração.
As «leis do reino».


Da forma por que hoje é geralmente exposta poderia concluir-se que a distinção entre a lei constitucional e a lei ordinária data apenas do momento em que, pela primeira vez, e com solenidade, se formulou uma lei superior, um texto escrito fundamental. E, como a noção de lei constitucional tem sido modernamente referida à teoria da divisão dos poderes e sua organização, e às liberdades individuais—é vulgar imaginar-se que a noção de lei constitucional deriva do constitucionalismo. E, todavia, nada há tão pouco exacto... Na primeira fase da nossa história política que, desde a fundação da monarquia se estende até D. João II, o poder legislativo está nas mãos do Principe, em concorrência com o qual ninguem [4] o pode exercitar? É certo. Mas restringem-no os privilégios das classes e o conselho legal das côrtes, que, nessa época, mais do que um agrupamento dependente da vontade dos Principes, foi um autêntico estabelecimento constitucional, de que tanto dependeu a confecção das leis.

Eram as côrtes instituições deliberantes, consultivas apenas, uma e outra natureza possuiram consoante as épocas denominadas do seu esplendor e da sua decadência? O problema está hoje ainda desprovido da solução que possa dizer-se única, tão glosado tem sido—e tão apaixonadamente (vid. a Deducção chronologica e analytica, §§ 669.º e seg.; Ribeiro dos Santos, nas Notas ao plano do novo codigo de direito publico de Portugal..., nas Notas ao título II, pág. 64 e seg.; Paschoal de Mello, na Resposta que deu... (incluida no volume das Notas acima) pág. 88 e seg.; Coelho e S. Paio, nas Prelecções de direito patrio publico e particular..., 1.ª e 2.ª parte, pág. 1-78; António Caetano do Amaral, Memoria (V) para a historia da legislação, e costumes de Portugal, na Historia e memorias da academia real das sciencias de Lisboa, t. VII, págs. 362-385; José Liberato, no Ensaio; Coelho da Rocha, no Ensaio, 2.ª ed. §§ 55.º a 67.º; Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal... t. I, págs. 537-577; Abel Andrade, Evolução politica em Portugal, t. I, págs. 129-155).

Poderá arguir-se que depois de D. João II, os reis começaram a exercer o poder legislativo fóra de côrtes, deixando estas de ser ouvidas e frequentes? Mas, até essa época, a «antiga forma» mantem-se.

[5] É certo que nem sempre os reis deferiam à matéria representada em côrtes? Sem dúvida.

Mas isso, nota-o habilmente Ribeiro dos Santos, não prova que os reis não dependessem do conselho legal das côrtes. Significa, diferentemente, que para se tornarem em leis os capítulos delas se carecia do concurso «da vontade e consentimento do Principe, que era o único, em quem residia o poder efectivo de legislar».

Não menos seguro, porêm, o afirmar-se que nesse período, em regra, toda a matéria deferida como objecto de lei geral e perpétua ficava constituindo direito estabelecido, direito do reino, contra o qual não devia exercer-se isolada a auctoridade régia. Daí a frase celebre de D. João II, ao exclamar que «se o soberano he senhor das leis, logo se fazia servo delas, pois lhe primeiro obedecia».

Essas limitações não surgiam apenas do direito estabelecido nas leis em que o rei deferia aos agravamentos, artigos ou capítulos apresentados em côrtes, porque sôbre «costumes, usos e foros antiquissimos da nação» se fundavam tambem outras restrições que de certa maneira modificavam o poder dos reis e lhes tornavam limitada a soberania (Ribeiro dos Santos, Notas ao título I, no op. cit., pág. 79). Estas, as duas fontes do direito fundamental que, é evidente, se não encontram num só texto solene, antes devem ser procuradas [6] através dos assentos de côrtes, das leis gerais, das proíbições dos forais, e coligidos com aqueles outros elementos, escritos uns, e tradicionais outros.

Tais seriam as normas relativas à sucessão do reino, à natureza e constituição, fins e privilégios das ordens, à natureza e representação das côrtes; ao estabelecimento das leis e ordenações gerais, à imposição de tributos, à alienação de bens da Coroa, à cunhagem e alteração da moeda, à feitura da guerra. E, ou se creia ou não no ajuntamento das velhas côrtes de Lamego a quem a versão seiscentista atribue as leis da sucessão definidas como a verdadeira lei de instituição do reino—bem certo é que a leis tais como essas se referia João das Regras quando, na oração famosa com que nas côrtes de Coimbra, arengou pelo Mestre de Aviz, ao expôr os motivos por que D. João I de Castela não podia suceder no trono, dizia «E que, estando por todos os principios vago o Reino, e os Portuguezes na posse de eleger Rei, que tambem lhe dava o Direito; e pelas primeiras, e principaes Leis d'elle, inhibido por ser estrangeiro, cujas disposições não podia alterar El-Rei D. Fernando...» (Memorias do Senhor Dom João I, liv. 1.º, cap. 4.º, in-fine).

São as leis, o direito do reino, aquele que o próprio rei, por si só, não poderá alterar—a noção [7] precursora de lei fundamental. Quando o século XVII vier, João Pinto Ribeiro terá uma expressão feliz designando o prestígio dêsse direito, ao dizer que os capitulos dos foros jurados tinhão de todo atado o poder dos reis.



2.—Necessária conformidade das novas leis
ao direito do reino.
O ofício do Chanceler mór do reino


Guarda-se e resguarda-se esse direito? Os cuidados com êle são, pelo menos, fervorosos. E, na história das altas magistraturas portuguesas, uma deve relembrar-se que não será êrro classificar de magistratura vigilante da conformidade das novas leis ao direito fundamental.

É assim que o Chanceler mór do reino—antiquissimo cargo cujo provimento se devia fazer em quem andasse pelas cumiadas nas condições de sciência, virtude e nascimento e a quem a Ordenação exigia «que seja de boa memoria, por se acordar das Cartas, que tever em guarda. Outro-si das que mandar fazer, que nam sejam hũas contra as outras...»—pelo regimento que lhe dava a Ordenação afonsina, deveria cuidar «que nom sejam dadas contra direito» as cartas assignadas pelo rei e que, «se achar, que hi ha alguma, que non fosse feita como devia» a não deverá «grosar nẽ cancellar», antes a todas «deve-as [8] trazer a Nós pera nos dizer as duvidas que, em ellas tem...» (Ord. Aff., liv. I, tit. II).

Ele evitaria assim as leis «contrarias ás Ordenações, e Direitos do Reino, e prejudiciais ao Estado...» e isto porque «os nossos Monarchas, embaraçados com infinidade de negocios, podem muitas vezes não se lembrar de todas as Leis do Estado, e por isso determinarem cousas contrarias ao Direito estabelecido. Para ocorrer a estes prejuizos elles crearão este Magistrado maior, para vigiar sobre as Provisões dos seus Tribunaes, e sobre as suas mesmas Leis...» (Coelho e S. Paio, op. cit., págs. 74, 75 e 76, em nota).

Do rigor e alcance dêste preceito tão pouco deve duvidar-se se certo é que êle foi ardilosamente mutilado pelo código filipino. Quanto ás cartas assinadas pelos desembargadores do paço, védores de fazenda, etc.; quanto às provisões assinadas pelo rei mas de cousas despachadas pelos ditos desembargadores, ou outros oficiais da côrte; e quanto às cartas ou provisões de graça—manteve-se o rigor da ordenação. O Chanceler investigaria se elas eram contra o direito estabelecido.

Mas quanto às cartas passadas e assinadas por el Reie esse era o grande escrupulo da Ordenação antiga—o código filipino emudeceu, e as cartas de lei todas passavam, sem que o Chanceler Mór tivesse o dever de as não glosar nem cancelar logo que fôssem contrárias ao direito do reino.

E, tão util e tão... constitucionalisador era o velho preceito da Ordenação que, quatro séculos decorridos, Ribeiro dos Santos o invejaria para um novo código político como «providência tão sábia, e tão capaz de nos preservar de muitos males» (cit. Notas ao título I, nas Notas cit., pág. 100).




[9]
3.—As leis contra o direito do reino. O direito
de representação das côrtes.


Uma vez cometida, porêm, a violação do direito estabelecido, selada e assinada, promulgada e publicada uma lei assim, algum direito de recurso havia contra ela? Havia—e, «quando se frequentavam as côrtes, era facil e seguro praticar êste direito...» As côrtes usavam nessas circunstâncias do direito de representação e «...se aggravavão ao Principe e requerião o que cumpria ao bem dos povos; as suas representações eram feitas segundo todas as leis da ordem, como se vê nas de Lisboa de 1455, em que se requereo ao Principe contra as cartas passadas em prejuizo das leis e capitulos estabelecidos em côrtes...» (Ribeiro dos Santos, Notas cit., pág. 99). O próprio Paschoal de Mello, no seu O novo Codigo de direito publico de Portugal (tit. II, § 9.º), permitindo aos «fieis vassalos» não só a liberdade de «representarem modestamente» os inconvenientes de alguma ordenação em particular, ou lei geral em prejuizo do povo, como mandando-lhes que «positivamente o façam», se autorisava com o facto de essa liberdade não implicar «com as razões da soberania», e de ser muito própria da justiça e boas intenções dos Principes—tanto mais que era certo haver em Portugal muitos exemplos destas representações (nas Provas de [10] O novo Codigo cit., pág. 182). De facto, muitos requerimentos ha dos povos para que «as leis e assentos, que se fazião em côrtes, se guardassem exactamente; para que se confirmassem de novo; para que não valessem as cartas, que em contrario se dessem á chancellaria; para que se não dispensassem, mudassem ou revogassem, senão em côrtes...» (Ribeiro dos Santos, Notas cit., págs. 67-8), assim como de representações contra certas leis que os reis houveram por bem revogar (Gama Barros, op. e loc. cit.).



4.—A noção comum da lei fundamental nos teóricos da Restauração.
As doutrinas da soberania popular. O conceito de pacto.


Mas a noção de lei fundamental será incomparavelmente mais bem expressa pelos nossos teoristas famosos do período da Restauração. Está já desdobrado todo o largo século XVI, onde mal cabem as lutas formidáveis do movimento da Reforma e do movimento contra-reformista. As suas conseqùências estão estudadas, superiormente estudadas e, neste passo, só tenho logar para transcrever as palavras em que, recentemente, Saitta resumia todo o tremendo conflito. No primeiro período da Reforma—o catolicismo e o papado haviam-se resignado a uma atitude de inactividade perante os progressos crescentes do protestantismo, e ter-se-ia anunciado a hora [11] derradeira para aqueles se em sua defeza não surgissem Suarez—Doctor Eximius—Bellarmino e Marianna que entraram denodadamente no conflito intelectual renovando por completo as doutrinas politicas comuns, sôbre as quais exerceram uma influência só comparavel, segundo Saitta, aos doutores da Edade-Média.

Dão aos Estados, não uma base em leis de revelação divina: mas uma base racional e humana. Os poderes que os organisam estão na própria comunidade—que os defere aos seus magistrados, sem a eles renunciar contudo. Á tése de que os reis reinam por graça de Deus de quem imediatamente derivam o seu poder—os doutores Jesuitas opõem tenazmente a afirmação de que todo o poder dos reis vem diretamente do povo, da comunidade.

Com que intuitos o sustentam? Meramente religiosos—diz Saitta. Meramente políticos—dir-se-á com igual verdade, porque afinal tudo conduzia à solução política de fazer que dos povos dependessem os reis e contra estes os primeiros pudessem levantar-se, porque, caso o Principe governasse mal, lhes admitiam o direito de recuperar o poder que só eles possuiam e que nos reis apenas haviam delegado. O Principe aparece assim vinculado ao povo, e êste mais elevado e mais forte que ele (superior et potentior).

[12] A teoria dos Jesuitas proclamando a soberania popular é ditada por autenticos sentimentos democráticos? De forma alguma! Ela apenas visa a justificar o direito de rebelião contra os reis que favoreciam o movimento da Reforma, aproveitando a doutrina em favor do Papa (vid. Giuseppe Saitta, La scolastica del secolo XVI e la politica dei gesuiti, a pag. 170-201, e Stahl, Filosofia del Diritto, trad. de Pietro Torre, pág. 320 e seg., aí citado).

Dentre os doutores do seu tempo Suarez foi o mais privilegiado talento e o de mais prodigiosa influência na sua época e nas seguintes. A audácia das suas proposições leva os Papas, que o haviam apelidado de Doctor Eximius, a proíbir os seus livros, a coloca-los no Index? E, todavia, sem embargo o continuam saudando como luminar e amparo da igreja católica.

Vinte anos regeu Suarez em Coimbra—e eis por que, entre nós tambêm, são os teoristas da Restauração que melhor exprimem a noção perfeita da lei fundamental. As doutrinas da soberania popular e de que uma lei existe vinculando o rei ao povo hão-de ter na época o mais oportuno cabimento—se é certo que só elas vão justificar perante o «Summo Pontifice da Egreja Catholica, Reys, Principes, Respublicas e senhores soberanos da Christandade» (ofertorio do livro de Velasco de Gouvea, Justa Acclamação...) que aos Filipes, por [13] estrangeiros, faltava condição para no trono português poderem suceder segundo a lei fundamental de Lamego—assim como, depois de apossados dele, dele podiam ser desapossados se é certo que, por injustos, se haviam tornado indignos de reinar. O poder dos reis—dizem—só os povos lh'o transferiram. Só eles o detinham. Só a comunidade o possue. Porquê?

«Por que como se não ache concedido em particular a pessoa algũa, nem a muitas juntas; antes proceda daquella razão natural da conservação», resulta que «está originalmente nos Povos, e Respublicas; e que deles o recebem imediatamente». Para que foi transladado esse poder? «Para se poderem conservar» os povos, porque «para viverem em Republica, e Povo, que constitue como hum corpo, não podia ser sem terem cabeça; aliàs ficaria monstro, e sem quẽ os governasse e dirigisse, vivendo em confusão, sem entre elles haver paz, concordia ou justiça...» (Velasco, op. cit., págs. 27, 28 e 31; a mesma ideia em Villa Real, e no Anticaramuel..., pág. 37).

Foram os poderes transladados para o rei. Mas significa isso que os povos se tenham abandonado, numa renuncia, às suas mãos? Não. Severamente há-de escrever Velasco que, «conforme às regras de direito natural, e humano, ainda que os Reynos transferissem nos Reys todo o seu poder, e imperio para os governar, foy debaixo de hũa tacita [14] condição de os regerem, e mandarem com justiça, e sem tyrannia...» (op. cit., pág. 13-14).

Por expressões diferentes, João Pinto Ribeiro,—o mesmo revolucionário intemerato de 1640, na obra verdadeiramente maravilhosa da redenção de Portugal—haveria de exprimir que «...O titulo, e nome de Rey teve principio, na boa administração da justiça, no bem, e utilidade publica, na conservação da terra, pera cujo governo era cada Rey eleyto. Sogeytavão-se a hum homem seu natural, pera que como tal amasse os seus, pera que com prudencia, e valor os compuzesse em suas duvidas, e segurasse os menores, e de menos força da soberba dos mayores, e mais poderozos...» (Usurpação, Retenção, Restauração de Portugal, pág. 47).

O soberano tem assim um oficio e, nele, conhece leis a que atende e se submete? É certo. Não é então, por direito, rei absoluto? Não deve se-lo. Como diz Villa Real «el epiteto absoluto se toma siempre del que gobierna segun su gusto» (op. cit., pág. 43) e não foi para que governassem por tal forma que os povos instituiram rei. «Os Reys não forão criados, e ordenados pera sua utilidade, e proveyto, se não em beneficio, e prol do Reyno...» (João Pinto Ribeiro, op. cit., pág. 11 v.).

Essa foi a tácita condição, de que escrevia Velasco, aludindo ao fim com que era designado o rei. A tácita condição foi como que um autentico [15] compromisso que, ao receber o poder, os reis tomaram. Como, por que forma se estabeleceu? Com uma singela naturalidade, Velasco exprime que, como disse talvez Santo Agostinho; «A translação do poder se fez entre os homens per modo de pacto; transferido nelles o poder, com pacto, e condição de os governarem e administrarem com justiça, e tratarem da defensão, e conservação e augmento dos proprios Reynos...» (op. cit., pág. 30).

Esta noção assim expressa é a indicação de toda uma doutrina. Ela significa que antes dêsse pacto—não existe a autoridade régia, não existe o poder de reinar nem a própria magestade ou soberania. Por esse pacto ela se transferiu ao rei primeiro eleito: será guardando-o que os sucessores usarão o mesmo poder. Dir-se-ía hoje que esse pacto fôra o acto creador de tal poder.



5.—O pacto e o rei. O rei não pode alterar
o govêrno da república


A ideia do pacto torna fácil um limite à autoridade régia. Se o poder dos reis e a forma do seu govêrno derivaram dum pacto, nem contra, nem alêm dêste, aquele poderá exercer-se. A noção de lei fundamental derivará por essa forma do próprio acto que nos reis creou o poder de reinar, e, assim, isoladamente, não podem êles [16] revogar, dispensar ou alterar o que duma convenção proveiu. É nesse sentido que, num belo trecho João Pinto Ribeiro dizia que «nega todo o direyto poder o Principe revogar, nẽ quebrantar o pacto, e contracto celebrado com seus vassallos, sem algũa justa, e conhecida utilidade publica desse Reyno, com cujos vassalos contratou» e que «assi grita todo o direyto, que nos ensina nam poder haver causas justas, que obriguem a alterar e mudar o governo da republica, sem que se offenda o bem publico, que sempre se deve preferir ao gosto e vontade dos Principes; principalmente nas materias, que pertencem a seu officio, conforme ao uso do Reyno...» (Usurpação... págs. 14 e 15).

E, como se dest'arte não ficasse ainda bem assinalada a intangibilidade do pacto em face ao arbítrio régio, e houvesse necessidade de alargar o domínio que o rei não pode perturbar, o nosso jurisconsulto Villa Real diria que «no es del poder del Principe, el variar las leyes, ó los privilegios de un Reyno; pues aunque por la força coactiva, no esten sugetos, alas leys, lo estan siempre por la directiva; y no se llaman absolutos, sino los que son tiranos. Como no obedecen a la raçon, siguen solo las leys de su Voluntad...»

Porquê resguardadas as leis e privilégios?

Porque o pacto constituem-no não apenas as leis solenemente estabelecidas por fundamentais, [17] mas tambêm os fóros e liberdades, privilegios e graças ganhas por direito antiquissimo, e que, nem por não serem guardadas em leis como as acima, deixavam de ser consideradas como direito inviolável do reino, e a que o rei, na época que estudo, devia jurar guarda antes de ser aclamado e jurado: «...Isto he, o que significa fazerem os Reys primeyro juramento aos povos de lhes goardarem seus foros, usos, e costumes, de lhes administrar justiça, e de pois se obrigarem esses povos per juramento a lhes obedecer e goardar fidelidade...» (João Pinto Ribeiro, Usurpação, pág. 42 v. e 43).

João Pinto Ribeiro presentia assim a lei de 12 de abril de 1642 pela qual D. João IV, deferindo aos capítulos 1 e 35 dos estados eclesiástico e da nobreza das côrtes de 1641 determinava que os reis que nos reinos houvessem de suceder «jurassem, (antes de serem levantados,) todos os privilegios, liberdades, foros, graças, e costumes, que os Reys seus predecessores lhes concederam e juraram...» Mas a lei não bastára, parece, e para que todos «os Vassallos... possam pedir aos Reys meus sucessores o juramento da confirmação das graças e privilegios, antes de entrarem na sucessão» mandava passar o alvará de 9 de setembro de 1647, renovando a determinação da lei e prevenindo que «fazendo elles, ou algum delles o contrario (que não creio nem espero), serão malditos da maldição [18] de Nosso Senhor, e de Nossa Senhora, e dos Apostolos, e da Corte Celestial, e da minha, que nunca cresção, prosperem, nem vão adiante...»



Não o devem: mas se os Reis faltarem ao pacto ou o atingirem—que se seguirá daí? Ha de obedecer-se ao rei que violou o pacto? Unanimes, os teoristas da restauração resolvem-se pela negativa. Por quê?

Porque só está nos povos «a eleyção, e creação de seus Reys, e nella contratão com elles haverem-nos de administrar em sua conservação, e utilidade. Todas as vezes, que os Reys lhes faltão com a obrigação do officio, que lhes derão de defensores, e conservadores da republica, os podem remover, como pessoas que lhes faltão á condição do seu contrato, e ficão os vassallos dezobrigados de lhes obedecer, ou a cudir a seu serviço, e lhes podem como a tiranos negar a obediencia...» pela simples razão de que «não he mayor o poder nos Reys, pera condenarem por traidores, aos que em menos cabo deste contrato, lhes faltarão com a fidelidade prometida, que nos mesmos povos, pera lhes removerem a obediencia coando esquecidos da obrigaçam, com que se lhe deu a curadoria da republica, elles lhes faltão com a palavra dada, e quebrantão o juramento de sua promessa» (João Pinto Ribeiro, Usurpação, pág. 42 v.).

Podem assim os povos negar obediência ao rei—remove-lo [19] mesmo, como diz João Pinto Ribeiro? Podem. Mas como? Reassumindo o poder que neles primitivamente estava ou consistia, usando a expressão de Velasco.

Mas esse poder não o haviam os povos transladados nos reis? Haviam. Mas tudo foi «com pacto, e condição de os governarem, e administrarem com justiça, e tratarem da defensão, e conservação e augmento dos proprios Reynos». Renunciaram por ventura os povos ao poder que só eles possuiam? Não, pois «posto que...transferissem nos Reys seu poder, e imperio, não foi abdicandosse totalmente delle, se não ficandolhe ao menos in habitu, para o poderem reassumir, e exercitar in actu em alguns casos, e com certas circunstancias...». Em que casos então? Em todos aqueles em que assim o peça «a razão da sua natural conservação e defeza», e esses «se hão de entẽder, e praticar sómête em hũ de dous termos...».

Um deles é justamente o caso em que, por não cumprir o pacto, o rei põe em risco a conservação do reino. Foi-lhe dado o poder «debaixo da tacita condição de o conservar e governar justamente e sem tyrannia», e se é a própria conservação e defeza do reino que o rei põe em risco pela fórma de tirania com que governa—a república não pode arriscar a sua vida exatamente pelos [20] meios com que se propoz perpetua-la. E então é em nome do direito de defeza, do «poder natural, concedido a todos, de se defenderem», que o reino póde eximir-se da sujeição ao rei—faculdade de que nunca o povo se privou «nem podia privar na translação que fez». E, então, usa do meio mais adequado «que he privallo do Reyno, tirando-lhe o poder que lhe deu...» (Velasco, op. cit., págs 32, 33 e 38).

Mas é a rebelião, é a sedição—tornadas por essa forma em direito? Não o é—e é mais. Só é acto de rebelião o dirigido contra o soberano que é justo e legítimo. Mas ser absoluto, não respeitar o pacto «no es ser legitimo señor...» (Villa Real, op. cit., pág. 44). E d'aí resulta «que não he sediciozo antes licito ao Povo, resistir ao Rey tyranno, ou que tyrannicamente governava».

Com que fundamentos de direito? «Por dous legitimos titulos. Hum do principio natural, pello qual podemos cõ força, resistir á força que se nos faz, que he o que o direito chama: Vim vi repellere... Outro, de que sempre este cazo se entendeo ficar expcetuado naquella primeira translação, que o Povo fez de seu poder no Rey...» (Velasco, op. cit., pág. 34-5).

É absolutamente nesse sentido que João Pinto Ribeiro justifica os portuguezes de se revoltarem contra o injusto govêrno dos Felipes. Pelos capítulos da côrte de Tomar, Felipe I obrigara-se a despachar sempre na língua portuguêsa, e em conselho constituido por portuguêses, todos os negócios do reino. Mas logo começou despachando contra a fórma do capitulado e é arrebatadamente que o jurista exclama:

[21] «...e queriam que hũa naçam tam honrada o nam sentisse, e o nam gritasse, vẽdose desprezada, e enganada, e que contra toda a razam e justiça se tratavam, e despachavão por outros os negocios, que por razão de seus foros, e estatutos se devião de decidir com ministros certos, e determinados. Maldito governo, que poem sua segurança em desprezo de Vassallos honrados; errada resolução do Rey, que despreza a lingoa daquelles, a que governa, e manda, não havendo mayor firmeza entre vassallos, e Rey, que fallarem a mesma lingoa, e saberem que o entendem, e sam entendidos delle...» (op. cit., pág. 15).

Nesta defeza pode o povo ir até ao ponto de «licitamẽte matar ao Rey» sempre que êste fôr tirano. Haverá, em regra, que esperar-se sentença contra o rei que com justo título ocupe o reino mas fôr «tyranno no governo»? É certo. Mas nem por isso nos outros casos o meio deixa de ser lícito «quando o Reyno de outro modo se não pode livrar do seu jugo, e imperio» ou «quando de outro modo se não pode livrar de sua tyrãnnia».

Eis toda a teoria. E para que ela não seja reputada um desvairo, abona-se Velasco de alguns que escrevem mesmo que matar o rei «não somente o pode fazer a Republica, e o Reyno, mas cada hum dos particulares» e clama que a mesma lição está nas doutrinas de S. Thomaz «onde o Sancto, com Marco Tullio approva por esta cabeça, a morte que derão ao Emperador Julio Cesar, que com tyrania occupava a República [22] Romana; e da mesma maneira louva o feito de Lucio Bruto, que extinguindo ao dito Tarquino, Rey soberbo, lançou fora o titulo de Reys de Roma...» (Velasco, op. cit., págs. 38 e 39; e a mesma ideia em Sousa de Macedo, no Lusitania liberata, págs. 519-529).



7.—A noção de lei fundamental nas côrtes de Lisboa
de 1679 e de 1697


Já no peristilo da época chamada do absolutismo, nas penúltimas e últimas côrtes de Lisboa, regularmente convocadas, novamente há de caraterisar-se a lei fundamental como um limite ao poder do rei—e dir-se-ía até que a noção dessa lei, como superior à auctoridade régia, tomava vulto justamente na hora em que a auctoridade régia tendia para um ilimitado exercício de todos os poderes. Seria o canto do cisne da velha constituição da monarquia portuguesa...

Essas penúltimas côrtes de Lisboa de 1679 haviam sido convocadas por D. Pedro II para que, no casamento de sua filha a Infanta D. Isabel com Victor Amadeu II, Duque de Saboia, Principe de Piamonte e Rei de Chipre, fôsse dispensado, das leis de Lamego, o parágrafo que proíbe de casar com estrangeiro à filha do Rei que no trono suceder.

Então se definiu a natureza daquelas leis. Elas constituiam a «ley fundamental». Como se caracterisava? [23] Pelo seu fim. E era «o fim da Ley fundamental perpetuar a Monarchia, e Coroa destes Reynos, nos sucessores daquelle excellente Principe D. Affonso Henriques» (assento dos três estados de 11 de dezembro de 1679).

Essa, a lei sôbre todas dominante. Eis por que, numa adjectivação cheia de entusiasmo, o estado eclesiástico na sua consulta definia a Lei de Lamego como sendo «...a sempre firme athe agora não dispensada Ley de Lamego que sendo o fundamento desta Monarquia, tambem he o muro da nossa Segurança, e devia estar gravada com letras de ouro não só em marmores, que quebrão mas em bronzes que se eternizão...»

Diferente da lei, da ordenação geral apenas no objecto? Não. Distinta dela na forma tambem. Para estabelecer, alterar, dispensar ou derogar uma lei fundamental carecia o rei do assentimento dos três estados do reino ajuntados em côrtes—e daí, as palavras empregadas no decreto de 26 de novembro de 1679 que os convocava «para que juntos em Cortes, pello que lhe toca declarassem, e para mayor cautella dispençassem...» nesse casamento a lei fundamental de Lamego.

Foi dispensada a lei? Foi. Mas «por esta vez sómente»—e tão sómente por esta vez o era que o estado eclesiástico pedia «a S. A. mande [24] fazer hum assento de Cortes, assinado por todos os Tres Estados, e que se guarde na Torre do Tombo, em que se diga a necessidade por que a Ley das Cortes de Lamego se dispensa fazendo-se o assento com taes declaraçoens que para sempre conste que a tal Ley foi ligitima e verdadeiramente fundada, continua e constantemente establecida, e observada, e que daqui em diante fica como athe aqui foi sempre firme, e valioza, e que se necessario he de novo os Tres Estados do Reyno a ratificão, assim e da maneira que as primeiras Cortes de Lamego a fundarão».

Assim se fez, e lá se declara que a dita lei de Lamego ficará em toda a sua observância e firmeza para o diante, sem que se possa fazer argumento dessa «dispensação, ou derogação» para os casos futuros, «em quanto não intervizir o nosso consentimento...» (vid. idêntico texto no assento de 11 de abril de 1698).

Só depois de prestado esse consentimento é que o rei interpunha a sua «approvação e auctoridade Real» e a lei ficava «valiosa». E para o próprio rei ela se tornava «inviolavel» visto que é «hũa das mayores obrigações dos Principes, a observação das Leys Municipaes, principalmente as fundamentaes do Reino ...» (Decreto de 26 de novembro de 1679).



[25]
8.—A noção da lei fundamental na era pombalina.
Seu objecto, sua forma.
O Principe «faz as Leis e as deroga quando bem lhe parece».
Não há contra os reis «mais recurso que o do sofrimento».


Tão particular, tão outra a mesma noção para a teoria pombalina!

Admite ela uma lei fundamental, e superior à vontade do rei? Certamente—e talvez mesmo em nenhuma época dela se apresente um conceito tão claro, desembaraçado e perfeito. Ela será definida como«a base, e primeiro principio da Sociedade civil do mesmo Reyno; e contendo por isso o mais Sagrado deposito, e o mais inviolavel Monumento da civilidade, e do socego publico em todas as Nações, que se governão pelos dictames da razão...»

Não há nação que a não possua: visto que «...a primeira, e a principal Regra do Direito Publico de cada huma das Sociedades civis, he a Lei, que por excellencia se chama do Estado: Porque ella he a Lei fundamental do mesmo Estado...» (Ded. chron., §§ 599.º e 600.º).

Caracterisa-se essa lei diversamente da lei ou ordenação geral? Carateriza-se, sim, e ela é designada pelo jurisconsulto de Pombal com um rigor inexcedivel, no que toca o objecto e forma que lhe são próprias. Distingue-se de todas as outras essa [26] primeira lei visto ser ela que «constitue, e determina a forma do seu Governo: Ella regula a maneira de chamar o Monarcha, ou seja por Eleição, ou seja por Successão; e a forma em que deve ser governado o Reyno, ou regida a Republica. Tal era em Roma a Lei Real; tal em França a Lei Salica; tal em Alemanha a Bulla de Ouro; em Portugal as Leis de Lamego; em Inglaterra a Carta Magna; em Polonia as Pacta Conventa; em Curlandia as Pacta Subjectionis; em Dinamarca a Lei Regia; em Hollanda a União de Utrech, etc.» (De Real, Science du gouvernement, transcrito na Deducção, § 600.º).

Esses, os intuitos com que se estabelece a lei fundamental. Constituida a monarquia portuguesa, ao definir em Lamego aquela lei, D. Afonso Henriques só «quiz por aquelle legitimo modo precaver todas as futuras discordias; tanto sobre a forma do Governo Monarchico, que estava exercitando, como sobre a forma da successão do Reyno», e, então, «para os ditos importantissimos efeitos» estabeleceu «huma Lei Fundamental, firme, perpetua, e tal, que nem ainda os seus Regios Successores pudessem alteralla...»

E neste passo se consigna a dissimilhança formal entre a lei fundamental e as leis ou ordenações gerais. Aquela é estabelecida por forma que «no tempo futuro se evitassem duvidas; e se não pudesse altercar, nem pelos Senhores Reys Successores [27] sem consentimento dos Póvos; nem pelos Póvos, sem Resolução dos Senhores Reys, o que de commum acordo dos Senhores Reys, e Póvos se tinha estabelecido: Porque esta he a natureza das Leis fundamentaes, e que as faz irrevogaveis na forma assim referida...» (Deducção, § 677.º).

Essa lei, só essa, domina a auctoridade real e constitue limite ao seu pleno poder. Não promanando exclusivamente do rei—ao rei se impõe. Assim, «por mais Augusto, e independente que seja o Poder dos Reys, não pode com tudo extender-se a derogar a Lei Fundamental do Reyno...»

E, sugestivo, trasladando de De Real o que de melhor nele se contêm, o auctor da Deducção repetia que «por mais augusto que seja o Poder dos Reys, só não he com tudo superior à Lei Fundamental do Estado. São Juizes Soberanos das riquezas, e da fortuna dos seus Vassalos; dispensadores da Justiça, e distribuidores das Mercês; mas por isso não devem observar menos huma lei primitiva, á qual são devedores de suas Coroas. As Leis Fundamentaes do Estado precederão a grandeza do Principe, e a devem seguir depois de acabar. Não he menos absoluto no exercicio do Poder, que estas Leis lhe dão, por não poder mudallas. He feliz esta impotencia, que embaraça fazer tão grande mal...» (De Real, op. cit, t. IV, cap. 2.º, pág. 130, cit. na Deducção, § 602.º).

[28] Dir-se-ía que nunca o poder régio fôra tão severamente delimitado, nem os vassalos tão bem defendidos contra o rei que violasse a lei fundamental. E, todavia, nunca, como com a doutrina pombalina, eles estiveram tão desamparados.

Repare-se primeiro que, alêm do limite que na lei fundamental se continha à auctoridade régia—nenhum outro a detinha. Diluida a lembrança das côrtes, o rei desembaraçara-se das limitações dela provindas: e são uma verdadeira síntese política os trechos da Deducção em que Pombal faz negar que as côrtes fôssem um estabelecimento constitucional de que se instruia a vontade dos reis, para afirmar redondamente que entre nós sempre se praticou um govêrno monarquico puro isto é, «aquele, em que o Supremo Poder reside na pessoa de hum só Homem: O qual (Homem) ainda que se deve conduzir pela razão, não reconhece com tudo outro Superior (no Temporal) que não seja o mesmo Deus: O qual (Homem) deputa as Pessoas, que lhe parece, mais proprias para exercitarem nos differentes Ministerios do Governo: E o qual (Homem finalmente) faz as Leis e as deroga, quando bem lhe parece...» (Deducção, § 604.º).

Da mesma forma, pela razão de que a Magestade do rei «não admitte igual, nem Superior, que [29] possão limitar o seu pleno Poder...» (§ 605.º) já não prevalecem as proíbições que se guardavam nos foros e velhas graças, liberdades, franquezas, e costumes e estilos, por antiquissimos que fôssem e invioláveis se reputassem. Todos, a talante do rei, podiam ser derogados. Daí a Deducção dizer que «O Axioma de que tudo o que o Principe determina tem o vigor de Lei... a respeito das Leis, ou Edictos Geraes... tem toda a sua força...; e aos quaes se não pode duvidar a observancia sem se cometer sacrilegio...» (Ded. § 670.º).

E, verdadeiramente, quanto à própria lei fundamental, se é certo que a auctoridade régia não devia contra ela exercitar-se—nenhum recurso havia contra o rei se acaso êle a transgredisse. Todos os recursos apontados pelos teóricos da Restauração, os Velasco, Sousa de Macedo, Villa Real e Pinto Ribeiro, esses recursos de desobedecer ao rei, de remover o rei, de matar o rei, são para o jurisconsulto do alto Marquez resultado da «horrorosa seita», da «falsa, e detestavel seita» dos Monarchomacos ou republicanos e dos «Jezuitas seus sequazes», obra damninha dos «espiritos extravagantes de alguns Homens daquelles, que se procurão fazer célebres no Mundo com invenções exquisitas, sem repararem nas consequencias delas...» (Deducção, § 633.º).

Para o jurisconsulto de Pombal, o próprio [30] Velasco não passava de um «Doutor sem livros; porque não tinha outros, senão... os Livros dos Authores da Companhia denominada de Jesus, ou os dos seus Sequazes» (Deducção, § 588.º), e, se é certo que foi Velasco quem as expôs—as suas doutrinas são simplesmente «falsas e reprovadas», «absurdas», «igualmente disparadas; igualmente infames; igualmente contrarias á sã e Catholica Doutrina; igualmente destructivas de toda a união Christã, e de toda a Sociedade Civil»;—e só fazem prova, afinal, de uma «crassissima ignorancia de Direito».

Mas não. Velasco, «hum lente Cathedratico da Universidade de Coimbra» não pode ter comprometido o seu nome a defender com a «abominada seita» dos Jesuitas «que podem os Reynos, e Póvos, privar aos Reys intruzos, e tyrannos; negando-lhes a obediencia...».

Para o provar, Pombal reune em Lisboa seis lentes da Universidade a quem entrega um exemplar da Justa Aclamação de Velasco, e encarrega de averiguar se o volume foi realmente escrito pelo insigne jurisconsulto. E, daí a tempo, êles lavram um assento declarando que o livro de Velasco—a quem as côrtes de Lisboa de 1641 haviam incumbido de o escrever, e por quem fôra mandado publicar há cento e vinte e três anos—«não podia de nenhuma sorte ser composto pelo [31] mesmo author», e que era por isso loucura acreditar-se tivesse sido êle o auctor daquele «informe, absurdo, e ignorante livro» (Ded., §§ 655.º-658.º). E, declarado jesuítico o livro de Velasco, é o momento de a Deducção com outros assentar que «nunca foi licito aos Vassallos tomarem armas para resistirem aos seus Reys, nem accusarem-nos de tyrannos, e violentos para serem depostos».

Com que razões se informa a Deducção para assim resguardar tanto o poder real? Ora com a auctoridade do Velho Testamento, abonando-se na frase do profeta Samuel quando disse que «não havia contra os mesmos Reys mais recurso, que o do soffrimento; porque Deos não ouviria nunca os incompetentes clamores, com que o Povo accusasse ao seu proprio Rey», ora servindo-se de S. Tomaz quando este afirmava que o Principe ficava «izento da Lei, porque ninguem poderia julgallo no caso de obrar contra a Lei» visto como «o Rey não tem Homem algum, que possa julgar OS seus factos...» (§§ 658.º e 609.º).

É a apoteose ao poder independente dos reis, é a época do absolutismo—aqui e em todo o velho continente. É «a moda», dirá daqui a pouco Paschoal de Mello referindo-se às excessivas liberdades reclamadas pelos revolucionários, deles dizendo que «o vicio só está no excesso...».

É a apoteose ao poder absoluto, a doutrina de [32] Pombal. É a moda! E o vício foi justamente esse excesso.



9.—Era de crise: o conflito entre nós. Paschoal de Mello e Antonio Ribeiro dos Santos como figuras representativas das ideias monarquicas e das ideias democráticas. O conceito de leis fundamentaes. Sua fórma e objecto. 1820—o constitucionalismo. Conclusões.


Contra êste estado de espíritos e para dissolução do sistêma político que levara a funcção régia ao mais imoderado e abusivo exercício criando no rei ou atribuindo ao rei o desempenho normal e independente de todas as competências até aí distribuidas pelas várias instituições políticas da monarquia, congestionando o oficio de rei com essa absorção de poderes—anuncia-se a éra da revolução.

Mas não devo avançar por ora....

Por ora é a crise ainda de transição e ela está definida nessa formidavel e esquecida sabatina travada entre dois dos nossos maiores engenhos do século XVIII a propósito de O novo codigo de direito público de Portugal, que um deles—Paschoal de Mello—redigia, e outro—Antonio Ribeiro dos Santos—anotava censurando. E para a posteridade ficaram face a face, nessa disputa famosa, a teoria do poder absoluto e, em germen, a da monarquia representativa.

[33] Para um e outro é igual o significado da lei fundamental. Ela é uma «convenção ou contracto entre o povo e o Principe»—e em um e outro pela sua forma a noção é similhante: a lei fundamental é uma lei que egualmente se impõe ao Principe e aos povos, para se alterar «requerendo por consequencia o consentimento e vontade de ambos».

Mas divergem ao definir o seu fim. Para Paschoal de Mello o defensor vigoroso do poder independente dos reis, lei ou leis fundamentais, que signifiquem ou sejam prova dum limite ao seu poder, são apenas as leis de Lamego, e as leis de 11 de dezembro de 1679 e de 12 de abril de 1698 que dispensaram e derogaram uns dos seus parágrafos. E, assim, todas eram «sobre o unico ponto da sucessão».

Outras não havia, nem outros limites portanto, sendo certo que as leis acima referidas eram as próprias que «suppoem e confirmão o poder dos Reis livre e independente sem modificação, ou restricção alguma».

Restricções só podiam constar das leis fundamentais e «nem em Portugal ha lei alguma que limite o poder do Rei», nem «a respeito da soberania, poder e independencia do Rei nunca se fizerão, nem apparecem leis, ou constituições feitas pela nação...». Por isso, fortemente afirmava [34] Paschoal de Mello: «Não conheço na Europa civilizada monarchia mais absoluta e independente do que Portugal» (Resposta cit., págs. 64, 85 e 87 nas Notas cit.).

Em Ribeiro dos Santos, leis fundamentais e primordiais do Estado, as chamadas «leis do Reino», que êle claramente contrapunha às «leis do Rei», eram todas as que caraterisavam a «forma e constituição da monarchia».


Essas, as leis superiores, e que deviam «pôr-se em maior luz». E porque Paschoal de Mello houvesse escrito não ser necessário que se exprimisse «a differença entre estas leis e as outras», logo Ribeiro dos Santos reclama que, ao contrário, «cumpre fixar exactamente a diferença entre as leis fundamentais e as outras; porque sendo ellas por sua origem, por sua auctoridade, e por seus mesmos effeitos as mais sagradas, universaes e inviolaveis de todo o Estado, será muito necessario, que se assignale e distinga claramente o seu character e natureza; e que se conheça bem a sua força, extensão e soberania, para que se entenda o respeito sagrado, que lhes deve o povo, e o mesmo Principe, e se não attente nada contra ellas sem o mutuo consentimento de ambos»... (págs. 9-10).


E como tais reputava não apenas as leis fundamentais escritas, tais como as de Lamego, sôbre a natureza do govêrno e ordem de sucessão da Coroa, a de 23 de dezembro de 1674 sôbre tutela dos principes menores e a regência do reino, e a de 12 de abril de 1698 sôbre a interpretação ou derogação dum parágrafo daquelas leis primeiras, mas tambem certas leis fundamentais não escriptas, ou tradicionaes, «que não são menos sagradas, [35] que as outras» e deviam constar dos «costumes geraes e notorios... introduzidos de tempo immemorial por consentimento tacito dos seus Principes, e dos estados do reino, e confirmados por uso constante e prática de acções publicas e reiteradas; que são aquellas, a que os nossos Reis costumão muitas vezes recorrer em suas leis e testamentos, dando-lhes o titulo de costume e estilo destes reinos...».

Ribeiro dos Santos não as enumera? É certo. Todavia, não é aventurado crer que como tais reputa as relativas à natureza do sumo império e ao exercício dos direitos a êle referentes, já a sucessão do poder supremo, já aos privilégios do Príncipe, já aos direitos particulares dos povos, ou sejam os seus direitos e foros, franquezas e liberdades, privilégios e bons usos ou costumes, já a natureza e constituição, direitos, privilégios e deveres das ordens, já emfim à natureza e autoridade das côrtes. Estas eram as que fixavam a «constituição fundamental»—e ao rei tanto como aos povos se impunham.

Podia acaso o rei viola-las ordenando contra a constituição? Justamente temendo-o, Ribeiro dos Santos reclamava que se determinasse «a força e effeitos destas franquezas e liberdades nacionaes», e quais «os meios legitimos por que os povos devem representar ao seu Principe, e fazer [36] valer perante elles estes foros e liberdades» (Notas, págs. 8, 9, e 11-24). Mas tão heréticas reputava Paschoal de Mello estas afirmações que, depois de a uma e uma haver negado o caracter de fundamentais às leis que o adversário enumerava, concluia no auje da desconfiança: «se eu me não engano, o censor ou quer fundar em Portugal uma monarchia nova, e uma nova forma de governo, ou quer temperar e accomodar a actual aos seus desejos e filosofia...» (Resposta cit., pág. 84).



Mas Ribeiro dos Santos fôra mais longe. Segregando habilmente na sua censura os princípios que professava, disséra que, se porventura se não especificassem essas leis constitucionais, «ficaria a nação privada de seus direitos primordiaes ou adquiridos, e dos meios competentes para os poder representar, ou ignorante de quaes elles sejão, e de como os deva requerer ante o throno de seus Principes». E, com todo o vocabulário de constitucional acrescentava que «quando uma nação chega a este estado, o que se segue pelo commum, ou é confusão e desordem... ou uma servidão e abatimento total, em que os antigos costumes se enfraquecem e desfigurão, em que se extingue o espirito e character nacional, e em que se estanca a nascente de todas as virtudes publicas, e se perde a força e energia das acções varonis e patrioticas...» (pág. 22).

[37] A isto Paschoal de Mello, tão desmarcada lhe parece a proposição, apenas responde que há princípios, há doutrinas, «cuja lembrança só é capaz de abalar o throno de nossos Reis pelos seus fundamentos; e principalmente neste seculo, em que a mania geral é a liberdade dos povos».

Não cuidemos mais: 1820 está próximo e vai inaugurar-se o constitucionalismo.



Poderia perguntar-se, emfim, se entre nós o regimen dito absoluto teve realmente leis constitucionais.

Decido-me pela afirmativa, mas cuido que ninguem a ficará interpretando no sentido de querer encontrar para essas leis um texto escrito, solemnemente redigido, e único, onde se contivesse, como nas constituições modernas, a organização dos poderes públicos, e onde se declarassem e garantissem os direítos individuais. Debalde se procuraria, sem dúvida, um texto análogo, visto que esse conceito de constituição só aparece com os revolucionários de 89 e com o movimento do constitucionalismo—precisamente contra o regimen político anterior.

Mas, colocado em ponto de vista diverso da teoria do constitucionalismo, sem dúvida se encontraria que, durante todo esse largo decurso histórico, a nação teve «caracteres e modo de [38] ser», que constitucionalmente a definiram—carateres e modo de ser que se fixaram já em regras de direito escrito, já em numerosas normas tradicionais, que, por motivos eminentemente políticos, nem os povos nem os Principes podiam por si sós violar, e das quais algumas, de facto, por largos séculos rigorosamente invioladas se conservaram.

Justamente por isso com escrupulosa probidade podia o manifesto da revolução de 1820 dizer ou pretender que o movimento encetado se dirigia a restaurar simplesmente a antiga constituição fundamental da monarquia.

Houve a noção de lei inconstitucional? Afirmo-o ainda—e no decurso do meu estudo destaquei quanto soube esse conceito de lei que infringia o pacto ou as leis fundamentais. Foi sempre gracioso o recurso contra ela? Assim o creio, porque a verdade é que na tradição do nosso direito constitucional não persistiram as ideias dos doutores jesuitas que, contra as leis que ofendessem o pacto, preconisavam a desobediência ao rei, a remoção do rei—o regicídio até.



CAPÍTULO II

A MONARQUIA CONSTITUCIONAL.
LEIS CONTITUCIONAIS E LEIS INCONSTITUCIONAIS



10.—A revolução francesa e o movimento constitucional
no continente europeo.


A sciência política de que derivou o movimento constitucional em França tem hoje determinadas as suas origens.

Ela informou-se das criações de Montesquieu na contemplação das instituições inglesas—hanc prolem sine matre creatam—e de todo um doutrinarismo filosófico que, importante já nos séculos XVI e XVII, ía no século XVIII constituir a escola do direito natural e do direito das gentes. E são os seus princípios que, modificados, e depois enormemente desenvolvidos, se encontram em Rousseau, sob o dupla noção famosa do estado da natureza e do contracto social, donde se podem considerar derivados os mais racicos princípios da revolução francesa.


[40]
Estes princípios não eram novos, decerto, se os quizer reduzir ao mínimo que êles significam e comportam—e se quizer abstraír da diferente intenção política que visavam. Ao saudar em Suarez um espírito maravilhoso no século XVI, vagamente o apresentei como remodelando a sciência política do seu tempo. Ele opunha, às leis de revelação divina, leis naturais de caracter racional e humano, e são essas, provindas da vontade dos individuos quando se constituem em comunidade, que fazem a atribuição do poder político, até aí não conferido a quem quer que fôsse, com exclusão dos mais, visto como, nascidos todos os indivíduos iguais, não havia nenhum mais ou menos elevado: «omnes enim homines natura fecit aequales, nec est ab ipsa assignatum discrimen quare hic inferior, ille superior existat». Por quê? Por que «nemini enim dedit natura supra aliam potestatem. Qua propter solum ipsa communitas humana seu hominum congregatio hanc a natura accepit potestatem».

É uma lei de revelação divina a que cria o poder e o torna obedecido? Não; é uma lei natural, oriunda do geral assentimento para que a autoridade se estabeleça pelas necessidades da inevitável associação: «ita ut non sit in hominum potestate ita congregari et impedire hanc potestatem. Unde si fingamus homines utumque velle, scilicet, ita congregari velut sub conditione, nt non manerent subiecti huic, esset repugnantia et ideo nihil efficerent» (De legibus, lib. III, cap. II, n.os 3 e 4).

Daqui a Hugo Grotius é um passo—largo talvez—e, daqui, mais facilmente se atinge Rousseau.


Dessas noções derivaram quási todos os princípios que modificaram as instituições políticas. Á magestade ou soberania do Rei, os princípios da revolução hão de opôr a soberania nacional, residente no corpo da sociedade visto que, sendo a autoridade pública conformada à custa dos sacrifícios que cada um fez, colaborando no contrato social, ao demitir-se da plena independência [41] que gosáva—só na universalidade dos indivíduos ela pode consistir e permanecer.

Todavia, os indivíduos não haviam renunciado em absoluto, à sua inteira liberdade. A necessidade do contrato social apenas exigiu deles os sacrifícios rigorosamente indispensáveis à formação do Estado e ao exercício da autoridade pública: conservaram, decerto, e prevalecendo sobre a alienação feita, alguns direitos ainda, que eles poderiam opôr em nome da sua liberdade não inteiramente afectada. Esse feixe de direitos que limitavam a actividade do Estado constituiam assim os chamados direitos do indivíduo, seus direitos inviolaveis, que a revolução irá opôr apaixonadamente ao direito do Principe.

Mas há quanto tempo, comtudo, os não exercitavam os indivíduos? Embora! Pelo facto do seu não exercício não se entende que a êles renunciaram—porque não podiam renunciar.

A revolução é necessariamente individualista se, aos poderes politicos do imperante, ela contrapõe o indivíduo, considerado no corpo politico da nação, gosando ou devendo gosar, em direitos atribuidos, o ávo de soberania que, em globo, só os indivíduos detinham.

Direitos esses, direitos novos que só agora pretendiam? Não. Direitos que noutros tempos haviam exercitado, e de que, pelo decorrer dos [42] tempos, e no esplendor do engrandecimento da funcção régia, os reis haviam desapossado os povos.

Assim, o movimento agora iniciado não era uma revolução contra o rei: era uma restituição aos vassalos. Ao cabo de porfiadas lutas, o corpo político da nação readquiria os direitos que haviam caído no esquecimento, reduzindo o poder régio à sua primítiva função.

Mudava-se a forma política da nação? Não—embora esta, afirmando a sua vontade, o podesse fazer certamente. Ia então depôr-se o rei? Não. Iam opôr-se ao rei os direitos do indivíduo, e porque o desprêso dêsses inviolaveis direitos só se devera ao facto de o rei haver cumulado nas suas mãos todos os poderes—volviam-se os olhos para a constituição inglesa e, mais do que lá se continha, se reclamava a separação deles, de sorte que nunca o soberano podesse, no exercício dum poder e no abuso doutro, preteri-los ou suprimi-los mesmo. E justamente porque a crise, a tormenta, todos os males emfim do corpo social, só haviam provindo do esquecimento dêsses direitos naturais do cidadão, havia agora que readquiri-los e garanti-los. Uma revolução, portanto? Não. Uma restauração apenas. E é assim que, entre os revolucionários de 1789, se sauda com entusiasmo [43] a velha constituição política da França, e se conclama que é à primitiva era de liberdades que se regressa, depois de ela ter sido funestamente interrompida pelo abuso dos monarcas absolutos, unindo assim nessa hora por um elo de ouro, à tradição antiga, a restauração agora feita dos direitos individuais.

E para que êstes não mais fossem postergados, havia que enumerar e consagrar solemnemente esses direitos, essas liberdades, num texto único e escrito, compondo uma equilibrada obra de perfeição onde para todo o sempre fôsse garantido o poder do Principe, é certo—mas especialmente, os direitos dos cidadãos. São as constituições, é o contitucionalismo...

Esmein, Éléments de droit constitutionnel, 1.º fasc.; Duguit, Traité de droit constitutionnel, t. I, §§ 63 e seg.; II, §§ 93 e seg.; Boutmy, nos Études de droit constitutionnel; Janet, Histoire de la science politique, t. II; Dr. Marnoco e Sousa, Direito politico, págs. 1-81; Dr. Rocha Saraiva, Construcção jurídica do estado, II, pág. 55 e seg., e nota a pág. 57.



11.—O movimento constitucional entre nós
O significado de Constituição


Assim tambem em Portugal.

Os documentos e autores da época iniciada em 1820 arredam pertinazmente a acusação de visarem uma mudança de regimen, e protestam que [44] na forma de govêrno que exercitem, a mesma religião persistirá, o mesmo amor ao trono, os mesmos direitos da magestade, e que se segurariam igualmente, indefectivelmente, os mesmos direitos do indivíduo à propriedade, e às suas crenças e opiniões, por via das quais jámais seriam incomodados.

O mesmo—o mesmo em tudo? A que vinha então a liberdade, que os manifestos e proclamações diziam já desfraldada desde o Minho ao Tejo?

É que a liberdade não desabrochava contra o regimen, nem contra o rei, que continuava a ser «o mais generoso e amável dos soberanos»: ela ía apenas iluminar o quadro das nossas instituições antigas, e consumir a lembrança dos opressivos governadores do reino.

Voltemos a nossos maiores!—é o grito revolucionário. O Manifesto da junta provisional do supremo govêrno do reino ainda hoje clama que nunca, como nesses tempos, «a religião, o throno e a patria receberam serviços tão importantes, nunca adquiriram, nem maior lustre; nem mais solida grandeza, e todos estes bens dimanavam perennemente da constituição do estado, porque ella sustentava em perfeito equilibrio, e na mais concertada harmonia, os direitos do soberano e dos vassallos, fazendo da nação e do seu chefe uma [45] só familia, em que todos trabalhavam para a felicidade geral».

A mudança que íam operar não era assim a fantasia de sonhar para alêm: era a segurança de melhorar, do que já se conhecera, aquilo que se estimára, visto que, como dizia o Manifesto dirigido às potências, não eram «os falsos principios de um philosophismo absurdo e desorganisador das sociedades; não era o amor de uma liberdade illimitada, e inconciavel com a verdadeira felicidade de homem» que os conduziam em seus patrióticos movimentos. E, justamente por isso, em tudo que intentavam, haviam de permanecer inalteráveis as partes estáveis da monarquia.

E exprimem então: «O que hoje, pois, querem e desejam, não é uma innovação, é a restituição de suas antigas e saudaveis instituições, corrigidas e applicadas segundo as luzes do seculo e as circumstancias politicas do mundo civilizado; é a restituição dos inalienaveis direitos que a natureza lhes concedeu, como concede a todos os povos; que os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram, e de que sómente ha um seculo foram privados, ou pelo errado systema do governo, ou pelas falsas doutrinas com que os vis aduladores dos principes confundiram as verdadeiras e sãs noções do direito publico...» (Manifesto da nação portuguesa aos soberanos e povos da Europa, nos Documentos para a historia das côrtes geraes, I, pág. 124).

[46] Na mudança desejada, portanto, a nação «não quer destruir, quer conservar». Tudo era conservar apenas? Não: era reconquistar tambem. O quê? Os direitos e liberdades do indivíduo «gravados por Deus no coração dos homens», que o próprio absolutismo não conseguira derogar: apenas tornára «descontinuado» o seu uso.

Agora revertia-se, e as Proclamações bradavam: «As cortes e a constituição não são cousa nova n'estes reinos: são os nossos direitos e os de nossos paes...» (Documentos, I, pág. 31).

Oh! o problema ficava bem simples! Para resgatar todos os males sofridos, todas as angustias padecidas, bastava reabrir de par em par o santuário da constituição antiga. «Tenhamos, pois, essa constituição, e tornaremos a ser venturosos...!» (Manifesto aos portuguezes, nos Documentos, I, pág. 9).



Tiveram, de certo, uma constituição—mas não foi a antiga, nem cousa que se lhe assemelhasse, pois que, aos deputados elegendos as instruções de 22 de novembro de 1820 determinavam que lhes fôssem conferidos poderes para organizarem a constituição política da monarquia «tomando por bases fundamentaes as da constituição [47] da monarchia hespanhola, com as declarações e modificações que forem apropriadas ás differentes circumstancias d'estes reinos, comtanto, porém, que estas modificações ou alterações não sejam menos liberaes...».

E nunca o foram, deve confessar-se. As Bases da Constituição promulgadas em 10 de março de 1821 acusam o mesmo espírito e texto da que fôra aclamada em Cadiz—que derivára do espírito e texto da Declaração dos direitos do homem e da constituição francesa de 1791. Tal como nessas, a constituição era definida como sendo o conjunto de principios mais adequados para assegurar os direitos individuaes do cidadão e estabelecer a organização e limite dos poderes publicos do estado. Implícito ou explicito, é esse o conceito que domina a Constituição de 22, a Carta de 26, a Constituição de 38—e no doutrinarismo dos seus autores virá informar ainda a Constituição actual.



12.—O problema da inconstitucionalidade das leis
perante a Constituição de 1822, a Carta e a Constituição de 1838.
Um caso curioso da história política portuguesa.


O problema da inconstitucionalidade das leis coloca-se perfeitamente à vontade em face das Constituições que teve a monarquia constitucional porque todas elas admitiram um poder constituinte diverso do poder legislativo ordinário.

[48] Possuiram nesse caso a noção de lei inconstitucional? De certo, e prescrevem-se especiais cuidados contra a confecção dessas leis.

É assim que, pela própria letra da Constituição de 1822, art. 58.º, aos deputados eleitos deviam ser outorgados amplos poderes para que, reunidos em Côrtes podessem, como representantes da nação, fazer tudo o que fôr conducente ao bem geral d'ella, e cumprir suas funcções «na conformidade e dentro dos limites que a Constituição prescreve, sem que possam derogar nem alterar nenhum de seus artigos...». Eleitos, legitimadas as suas procurações, o art. 78.º os compelia a jurar que cumpririam bem e fielmente as obrigações de Deputado em Côrtes, «na conformidade da mesma Constituição».

E, se no regimen da Carta não era preceito constitucional, era dos decretos de 7 de agosto de 1826, 3 de junho de 1884 e 4 de junho de 1836 o preceito de que, as procurações entregues aos deputados eleitos, os deviam habilitar com todos os poderes para cumprirem as suas funções—mas «na conformidade e dentro dos limites que prescreve a carta constitucional, dada e decretada pelo senhor rei D. Pedro IV em 29 de abril de 1826, sem que possam derogar ou alterar algum dos seus artigos», e os eleitores se obrigariam a ter por válido não tudo o que os deputados fizessem, [49] mas só o que fizessem—dentro dos referidos limites.

Dir-se-ia que, feita pelo parlamento uma lei inconstitucional, os cidadãos estavam desobrigados de lhe obedecer, visto que só se haviam comprometido a ter por válido o que os deputados naqueles precisos termos fizessem—tanto mais que a própria Carta afirmava (art. 145.º, § 1.º) que nenhum cidadão podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa senão em virtude da lei?

Não era a êles, todavia, que as Constituições confiavam a sua guarda: era às próprias Côrtes (Const. de 1822, art. 102.º n.º II; Carta, art. 15.º, § 7.º; Const. de 1838, art. 37.º, n.º II) pois que até expressamente (Const. de 1822, art. 118.º, n.º IV; Carta, art. 139.º; Const. de 1838, art. 38.º) lhes impunham examinar, no princípio das suas sessões, «se a constituição politica do reino tem sido exactamente observada, para prover como fôr justo». Mas esta mesma disposição era geralmente entendida como visando uma fiscalisação sôbre os actos que o poder executivo praticara no interregno parlamentar—e não como uma vigilância das côrtes ácêrca da genuinidade constitucional das leis que elas próprias haviam elaborado (Prof. Dr. Arthur Montenegro, em O Direito, ano 32, 1900, n.º 7, pág. 99 e seg.).

Tornada a providência legislativa em decreto [50] das côrtes gerais, algum recurso haveria contra êle—se fosse inconstitucional?

Fôra mister que, nesse intuito, o rei lhe suspendesse a sancção, e isso lhe era lícito quando entendesse «que ha razões para a lei dever supprimir-se ou alterar-se» (Const. de 1822, art. 110.º), ou lha recusasse sem sequer expôr os motivos (Carta, artt. 57.º e 58.º). A atribuìção desaparece na Constituição de 1838, e dir-se-á que a suspensão ou recusa de sancção nunca entre nós foi usada como meio preventivo contra as leis inconstitucionaes? Elas nunca foram meio normal, é certo, mas—circunstância verdadeiramente curiosa e referida por um único escriptor português—foi durante a sua elaboração, vigente provisoriamente a Constituìção de 1822, que a Rainha D. Maria II suspendeu a sua sancção a um decreto do Congresso, flagrantemente inconstitucional.

Cuido ser único o caso na história da nossa vida politica durante o constitucionalismo, e não é sem scismar ou sem sorrir que se vê suspendendo a sancção a uma lei que cuida inconstitucional o soberano em cuja vida a Constituìção foi mais frágil—e que se vê o caso passado com o ministério sempre reputado como o mais requintadamente liberal.

Á Rainha fôra apresentado um decreto do Congresso Constituinte de 24 de agosto de 1837, [51] pelo qual os poderes extraordinários e discrecionários concedidos e prorogados ao govêrno pelas leis de 14 de julho e de 13 de agosto do mesmo ano eram interpretados no sentido de êle se considerar «authorisado para demittir sem processo nem sentença os officiaes do exercito de qualquer graduação e os juizes inamoviveis, que tomaram ou vierem a tomar parte na rebellião». Não constituia, evidentemente, um caso duvidoso de inconstitucionalidade—e assim o entendia a soberana que, em 4 de outubro de 1837, mandava devolver os autógrafos respectivos, acompanhando-os das seguintes observações, que, não constituindo um primor gramatical, fazem todavia prova da melhor intenção:


«O projecto de lei que se offerece á minha real sancção, tendo sido apresentado em 28 de agosto, e havendo eu n'este intervallo estado impedida, por grande molestia, de tomar conhecimento dos negocios publicos, é fóra de duvida que os dias d'este impedimento não devem ser contados nos trinta, que o artigo 111.º da Constituição estabelece, e por conseguinte ainda estou dentro do prazo que a mesma Constituição e o artigo 111.º me concedeu para meditar sobre objecto tão importante como a sancção de uma lei.

Este projecto de lei destruiria, se fosse sanccionado, os principios estabelecidos na Constituição e nas leis organicas em perfeito vigor, e que em todos os tempos devem ser respeitados.

Se em casos extraordinarios se precisam remedios extraordinarios, esses remedios não devem estender a sua influencia além do rigorosamente preciso para remediar esses casos.

[52]
A influencia da lei actual, como exemplo de uma violação das garantias da Constituição se estenderia a todas as idades. As circumstancias d'aquelle momento eram justamente as mais improprias para a sancção de medidas d'esta natureza, porque davam á lei o caracter de uma sentença e não d'uma lei!

Sendo eu a primeira guarda das garantias individuaes, consagradas na Constituição e nas leis organicas do Estado, as quaes garantias são para todos os portuguezes, e para todos os tempos, repugnava ao meu coração acceder a uma lei, que me parece oppor-se a ellas e estabelecer um precedente de terrivel influencia
. As côrtes tinham já recebido provas de que podiam repousar sobre a lealdade e vigilancia do meu governo, no que trata a conferir ou a retirar as comissões, com que o governo reveste os agentes necessários á sua acção; e esta faculdade, junta a outras, com que as côrtes já tinham armado o mesmo governo, tornava escusada a que lhe era conferida pela presente lei.

Os factos acabam de justificar este meu pensamento: o país está pacificado. Como meio de obter este fim, mais que claro, já não é necessária a lei; como meio de justiça, tambem a sua nenhuma utilidade é manifesta, á vista da maneira por que terminou a lucta, por meio de uma convenção que o meu governo deve religiosamente executar, e na qual está reconhecido pelos mesmos insurgentes ao governo o direito de não conservar aos seus chefes os postos legalmente adquiridos.—Rainha.Palacio das Necessidades, 30 de setembro de 1837». (Cf. Clemente José dos Santos, Estatisticas e biografias parlamentares portuguezas, vol. I, 1.ª parte, págs. 74 e seg.).


O caso é excepção—e prova assim que não foi a recusa ou suspensão da sancção um meio preventivo normal? É certo. Mas nem por isso menos devia ser destacado neste estudo de origens que pretendo estabelecer.



Sanccionada e publicada a lei, algum recurso contra ela havia, se fosse inconstitucional?

Havia, visto que as Constituições a todos os [53] cidadãos reconheciam o direito de «expor qualquer infracção da constituição», requerendo perante a competente autoridade a efectiva responsabilidade dos infractores (Const. de 1822, art. 17.º; Carta, art. 145.º § 28.º; Const. de 1838, art. 15.º).

Mas não passava de um recurso gracioso, a que o parlamento decerto ficaria insensivel, tanto mais que ninguem saberia como pedir-lhe nem como tomar-lhe responsabilidades pela infracção que cometera, se a doutrina o reputava a salvo delas no exercício da funcção legislativa.

Poderiam os juizes recusar-se a aplicar leis inconstitucionaes?

Os juizes tinham por missão aplicar a lei, e como a Constituição determinava um processo particular de revisão constitucional, era certo que a lei ordinária tinha que ser conforme à Constituição, que nenhum dos poderes do Estado podia suspender (Const. de 1822, art. 176.º, comb. art. 28.º; Carta, art. 119.º, comb. artt. 140.º-144.º e 145.º § 33.º; Const. de 1838, art. 123.º, comb. artt. 138-139.º e 35.º). Até meados do século XIX, todavia, o problema não se propõe, segundo creio. E, que se propuzesse, viria a ter a mesma que teve em regra no direito público europeo contemporâneo com o princípio da omnipotência parlamentar, e os juizes declarar-se-iam incompetentes para conhecer da constitucionalidade das leis.



[54]
13.—A defeza da Constituição contra o poder executivo e contra o poder legislativo. O poder judicial e a inconstitucionalidade das leis. As opiniões entre nós, anteriormente e posteriormente à proposta de reforma constitucional de 1900. Conclusões.


Como sucedera com a Constituìção de 1822 e com a efémera Constituìção de 1838, a Carta ficára desamparada para futuros golpes vibrados pelo próprio parlamento, havendo-se apenas resguardado dos arbitrios do executivo—e, deste, não tão completamente que êle não viesse a assumir, por maneira inconstitucional, o exercício da funcção legislativa, já ordinária, já constituinte.

Será precisamente em resultado dessa defeza contra o executivo, que teve as suas salientes fórmas nas doutrinas do não cumprimento, pelo poder judicial: 1) dos regulamentos, quando contrários à letra da lei; 2) dos decretos promulgados no uso da autorisação legislativa em tudo o que êles excedessem os termos das ditas autorisações, e, maiormente, 3) dos decretos dictatoriaes—que se ensaia na nossa legislação constitucional a primeira tentativa, no mesmo sentido, a respeito das leis que violem os princípios constitucionaes da lei fundamental.

Quem sustentou entre nós a doutrina? Ouso apontar o nome de Silva Ferrão como o do primeiro jurisconsulto português que, numa passagem [55] até hoje não citada, tocou o problema. O curso das suas considerações visava mais caracterisada e empenhadamente os decretos dictatoriais? Mas a tése alarga-se-lhe abrangendo as leis inconstitucionaes tambêm, e determinando-se claramente pela opinião de que os juizes deviam conhecer da constitucionalidade das leis que tinham de aplicar—negando-se a cumpri-las quando verificassem que elas violavam ou ofendiam os princípios da constituição.

É assim que, combatendo uma sentença da época que decidira pela incompetência do poder judicial para conhecer da constitucionalidade de um decreto de ditadura, o insigne jurisconsulto, versando com esse problema o das leis inconstitucionaes, opunha que «os juizes prestaram juramento de observar, e fazer observar, a Carta Constitucional da Monarchia, e as Leis do reino, e não podem abstrahir estas d'aquella, no cumprimento dos seus deveres, estando obrigados por isso, a considerar, não só, se as Partes, se os processos, se as acções, tem a qualidade de legitimas, mas, outrosim, se os diplomas, ou determinações, cujas theses devem applicar ás hypotheses dos autos, tem ou não, o cunho de Lei.

Os Juizes, quando assim obram, não tem por objecto apreciar as Leis, feitas pelo Poder Legislativo, ou pelas Dictaduras, nem se arrogam supramacia
[56] sobre os outros Poderes do Estado: muito pelo contrario, mantem-se, unica e precisamente, dentro da orbita da sua propria independencia e juramento, não reconhecendo, em cada um dos processos, que tem a julgar, outros Poderes, que incompetentemente lhes dictem as normas.

O contrario disso importaria o mesmo que subordinar a acção da justiça ao arbitrio desses Poderes; reduzir os Juizes a instrumentos cegos e doceis para homologar somente determinações exorbitantes e inconstitucionaes; tornar em fim o Poder Judiciario uma cousa muito diversa do que deve ser na realidade, pela firme, constitucional, e justa manutenção dos direitos dos cidadãos
...» (Tratado sobre direitos e encargos da Serenissima Casa de Bragança, págs. 256-7).

E, temendo que à sua argumentação falecesse autoridade, Silva Ferrão (nota a págs. 257-9) invocava as de Dupin e de Henryon de Pensey. O primeiro, nas lições sôbre A Justiça, o Direito, e as Leis feitas para o Duque de Chartres, ensinava-lhe que «a Lei Fundamental conserva todas as outras na sua dependencia: que, no conflicto entre estas Leis e a Carta, se deve preferencia á mesma Carta, como Lei Rainha, a mãe de todas as Leis» e que, mesmo não existindo na época o recurso para o sénat conservateur que a Constituição do ano VIII estabelecera, os Juizes devem ter como elementar que as leis, feitas pelos legisladores que juraram [57] obediência à Constituição do Estado, não podem derogá-la. Em caso de colisão, os juizes deverão obedecer à Carta, como lei evidentemente mais poderosa e mais clara—sem que por esse facto sejam desobedientes à lei, ou se erijam em legisladores, visto que limitam o seu oficio a pronunciar-se sôbre uma questão de Direito, manifestando que o acto não é aplicável à hipótese que lhes é submetida para julgamento.

A mesma lição vinha de Henryon de Pensey. E é verdadeiramente interessante que o escritor francês, tão nomeado no tempo, em abono da sua tése aponta o facto de, pelo art. 44.º do nosso decreto de 7 de agosto de 1826, as procurações a entregar aos deputados portuguêses os deviam munir de todos os poderes para cumprirem suas funcções, mas «na conformidade e dentro dos limites que prescreve a carta constitucional... sem que possam derogar ou alterar algum dos seus artigos», e só nessa fórma se obrigavam os eleitores a «cumprir e ter por válido tudo o que os ditos Deputados assim fizerem, dentro dos referidos limites».

As nossas ótimas leis—e os seus péssimos executores!

Mas a tése de Silva Ferrão ficára, sem interesse nem éco, num livro de caracter histórico, onde, se bem creio, até hoje se julgou oculta. E [58] é pelo menos sem citar Silva Ferrão que, três anos depois, em 1856 ainda, o redator da Gazeta dos Tribunaes iria sustentar decididamente a mesma tése num trecho que com prazer transcrevo, quasi penalisado de vêr que até hoje o não apontaram aqueles que, entre nós, escreveram sôbre o têma—quando afinal, na eterna ilusão, o escritor, cuidando que às suas palavras o problema ficava ligàdo, dizia:

«É preciso que se intenda de uma vez por todas que não se póde nada contra a Carta ou contra a lei fundamental em quanto não for revogada pelos meios que ella estabelece, e que as leis que se fizerem em diametral opposição com ella não são leis, nem obrigam os cidadãos, e que é um dever dos tribunaes não lhes dar execução. Dizer que nem os cidadãos nem os juizes tem direito a conhecer da legalidade das leis, é sobre um erro, um absurdo, é a theoria em pessoa do poder absoluto—não digo bem, na theoria do poder absoluto não ha tal coisa, nem tal ponto de doutrina; é o poder despotico, o obscurantismo...» (Gaz. cit., 1856, n.º 1211, pág. 9464).

Seria o obscurantismo? Cuido que era, porém, a omnipotência do regimen parlamentar—e dela deriva que só quarenta e quatro anos depois a doutrina encontraria acolhimento na proposta de reforma constitucional de 1900, acolhimento efémero todavia porque a inoportunidade [59] politica a breve trecho a deixava desamparada novamente.

São conhecidas as condições em que essa reforma foi preparada. Á situação ministerial regeneradora, que operára por símples decreto ditatorial uma reforma constitucional, sucedera o ministério progressista desejoso de sanar o que a situação anterior causara. Não bastaria um símples decreto para aluir uma inconstitucional reforma que por símples decreto se operara? Mas o governo, considerando a reforma de 1895 como não feita, preferia que só constitucionalmente se repuzesse a fórma antiga, aproveitando-se o ensejo para a modificação de alguns artigos da Carta. É certo que ao mesmo tempo se aproveitara precisamente dessa reforma de 95—a que considerava como não feita—para introduzir na Câmara Alta 24 Pares do Reino seus partidários? Mas isso constituia apenas uma pequena culpa que a oposição fazia avultar.

É neste ambiente apresentado o projeto de lei de 3 de julho de 1899, pelo qual as Camaras, em obediência aos estritos preceitos da Carta e do Acto de 85, deviam reconhecer a necessidade da reforma de determinados artigos constitucionaes. Era visado o artigo 119.º da Carta—aquele justamente que definia a missão do juiz? Era. Mas a verdade é que a leitura do relatório convence [60] bem de que a reforma projetada não abrangia ainda o problema de atribuir-se ou não ao juiz o poder ou o dever de conhecer da constitucionalidade da lei que tivesse de aplicar—visando directa e exclusivamente a questão, fundamental na época, sôbre deverem ou não os juizes cumprir os decretos ditatoriaes.

O mesmo pensamento se afirma no parecer da comissão especial da Câmara dos Deputados, onde se escreveu que «os factos, occorridos em o nosso país, justificam, de resto, a necessidade de expressamente conferir ao poder judicial meios de evitar os inconvenientes, que resultam, para os cidadãos, das continuadas usurpações de funcções do legislativo, que o executivo se tem permittido praticar...». E nada constava, nem alguem aludiu, nas aliás brevissimas discussões que o projeto teve, ao problema da constitucionalidade das leis.

Na proposta de 14 de março de 1900 aparece todavia atribuida competência aos tribunaes para conhecerem da validade das leis, e do relatório constam os motivos:


A competencia dos tribunaes para conhecerem da valídade das leis, e outros diplomas, que hajam de applicar, fica definida na proposta, que preenche assim uma grave lacuna do nosso direito...

A falta que se suppre, é da letra, não do espirito da carta. A independencia do poder judicial não é effectiva, se a elle não pertence o direito, ou antes e melhor, se lhe não corre a rigorosa obrigação de apreciar a validade dos textos em que funda a auctoridade das suas decisões: e sem a completa independencia d'este poder a liberdade politica, no seu mais elevado e expressivo conceito, ficará irremediavelmente desprovida da sua principal segurança.


[61] E, convertendo-se estes princípios numa fórmula, o art. 10.º da projetada reforma dispunha que «os tribunaes têem competencia para conhecer da validade das leis».

A 16 de junho, começa na Câmara dos Deputados a discussão. Já o govêrno havia reconsiderado sôbre a proposta, e no parecer que a comissão especial elaborara de pleno acôrdo com o govêrno, vinha declarar-se que «A vossa comissão modificou o artigo da proposta do governo, a fim de evitar quaesquer duvidas que podessem suscitar-se, ácerca da competencia dos tribunaes para apreciarem a validade intrinseca das leis: fica bem claro que tal objecto lhes é estranho».

De facto, o novo art. 11.º do projeto da comissão, proíbindo aos tribunaes que aplicassem decretos, regulamentos, instrucções ou quaisquer deliberações dos corpos e corporações administrativas, contrárias às leis constitucionaes ou ordinárias—vedava-lhes conhecerem da validade das leis. Na discussão que o parecer teve na Câmara dos Deputados ninguem pugnou pelo texto primitivo. Porquê? Porque, por parte do govêrno, havia todo o desejo de viabilisar a reforma, e era [62] já tão formidavel a luta que a oposição contra ela erguia, especialmente pelo facto de se impôr aos tribunaes o não cumprimento dos decretos de ditadura, que chegava ao ponto de declarar que, votada quand même, por seu lado a não cumpriria. De resto, com o govêrno em crise, já ninguem discute a reforma. É aprovada ainda na Câmara dos Deputados? É. Mas cinco minutos depois que, em sessão de 27 de junho de 1900, o 1.º secretário da Câmara dos Pares comunica ter recebido do presidente da outra Casa um oficio contendo a proposição de lei sôbre a reforma da Carta, entra na sala, já constítuido, o ministério regenerador. A reforma gorára-se.

Gorára a proposta?

Mas colhera a doutrina, e o problema desde essa éra em diante paira no espírito de todos os nossos escritores de direito público, sempre que se trata da funcção e competência do poder judicial.

Em 1901 retoma-a o Prof. Dr. Afonso Costa (Lições de Organisação Judiciaria, págs. 50 e seg.); em 1904,o juiz Francisco José de Medeiros (Sentenças, 1.ª. ed., págs. 8 e 9); em 1905 o Prof. Dr. José Alberto dos Reis (Organisação Judicial, págs. 19 e seg.); em 1910, o Prof. Dr. Marnoco e Sousa (Direito politico, págs. 781 e segg.), em cuja obra se encontra a sua fórma definitiva.

[63] Durante o regimen monarquico constitucional, procurou-se pois caracterisar a Constituìção diferentemente da lei ordinária, pelo seu fim e pela sua fórma. Considerou-se que a Constituìção definia primordialmente as atribuições e limites dos poderes públicos e sanccionava as garantias imprescindiveis dos direitos individuaes.

É certo que ao mesmo tempo se entendeu que nas leis constitucionais nem tudo era matéria rigorosamente constitucional? Mas isso só prova o desejo vão de querer precisar o caracter próprio de lei constitucional—que, de resto, e mais acentuadamente se considerava diversa da lei ordinária pelo aspecto formal, perante o qual a Constituição se caracterisava como a lei para cuja feitura, alteração ou revogação eram necessários especiaes requisitos.

Sanccionava-se a distincção concluindo que não valia a lei ordinária quando contrariasse disposições constitucionais da Constituição—a quem não podia revogar—devendo em tal caso os tribunais negar-se a aplicá-las, visto que a funcção de as aplicar envolvia a de se certificarem da sua validade. Alguma vez eles decidiram assim? Caso algum conheço—e, todavia, a necessidade da doutrina tanto se impoz que no projeto de reforma constitucional apresentado em 1900 pelo estadista José Luciano de Castro encontrava uma [64] satisfação cabal. A reforma não foi a cabo? Contra as leis inconstitucionais continuaram a ser único recurso simplesmente os mais graciosos? É certo. E foi assim a actual Constituição política da República que, pela primeira vez, introduziu o rigoroso e salutar princípio, no seu art. 63.º, de atribuir competência aos juizes para conhecerem da constitucionalidade das leis. Essa disposição me proponho analisar.



CAPÍTULO III

O PROBLEMA DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS
EM FACE Á ACTUAL
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DA REPÚBLICA



14.—O problema pode colocar-se na Constituição actual? A distinção entre lei constitucional e lei ordinária. Deve admitir-se? Qual o significado que deve dar-se a essa distinção?


O problema da inconstitucionalidade das leis pode e deve colocar-se agora em face à actual Constituição política da República visto que ela admite, no artigo 82.º e seus §§, a distinção entre a lei constitucional e a lei ordinária—diferença persistente no espírito dos seus princípios, pelos quais já antes, no artigo 63.º, fôra sanccionada.

Deverá haver, haverá hoje, perante uma rigorosa técnica, distinção de natureza jurídica entre a lei constitucional e a lei ordinária? Não deve haver—nem ha.

Não quero cuidar por ora se é ou não falso o critério de fim, que se toma para base quando se procura afirmar uma diferente natureza jurídica [66] entre aquelas leis; e sustento que no próprio seio da doutrina que assim expõe não ha elementos que conduzam a uma distincção daquela ordem.

Tem um conteúdo próprio a lei constitucional—dizem. Qual?

Não é unanime a fórma por que em face aos estados modernos definem Constituição ou lei constitucional aqueles mesmos que a reputam com diversa natureza da lei ordinária, e isso será já uma condição desfavoravel.

De facto, uma noção apresenta Wilson, quando Palma, Esmein, Brunialti, Boutmy e Orlando apresentam outras diversas, e, entre nós mesmo, não é igual a maneira por que os Professores da Universidade de Coimbra a definem.

Mas os seus diferentes pontos de vista não mutilam talvez uma noção que pode apresentar-se como reunindo muitos pareceres, quando se diga que a Constituição é «uma regra objectiva que organisa a soberania sôbre a base de uma separação de poderes, com fim a obter o reconhecimento e garantia das liberdades individuais».

Assim definida a Constituição, e se é esse o seu conteúdo próprio e privativo—sob pena de se descaracterisarem, as Constituições só podem conter regras de direito com aquela natureza.

Mas percorram-se todas as Constituições e ver-se-á como o critério é falso—e como se mesclam [67] com disposições que teem realmente aquele fim disposições cujo objecto fica inteiramente alheio ao objecto que se proclama como privativo de uma Constituição.

Ha Constituições onde a lista de matérias reservadas é interminável, versando em detalhe questões cujo objecto não tem relação com aquelas que se indicam como de caracter rigorosamente constitucional.

É assim que, especialmente nos estados americanos, as Constituições versam numerosos pontos de natureza inteiramente secundária (e até de caracter puramente privado) dos mais diversos generos, e regulamentam promenorisadamente sôbre o processo judicial, vencimentos dos funcionários públicos, proíbição de venda de bebidas alcoólicas, taxa de juro, fixação das oito horas de trabalho, protecção às mulheres e crianças nas fábricas, emigração e salários, bens da mulher casada, escolas, venda de terrenos públicos, obrigações das companhias ferroviárias, ocupação e exploração das minas, portos, canais, bancos e celeiros de trigo, e até determinando que se copiem em pergaminho os projectos de lei, e como há-de fornecer-se papel e a lenha para uso das Câmaras (Vid. Racciopi, Nuovi limiti e freni nelle istituzioni politiche americane, Milão, 1894, cit. em Brunialti, Formazione revisione delle Costituzioni moderne, na Biblioteca di scienze politiche e amministrative, 2.ª serie, vol. II, pág. XXIV).

[68] Cousa aproximada sucedia nas Constituições que a França possuiu na éra revolucionária e sucedeu com as nossas Constituições, e cousa parecida se dá ainda na actual Constituição política da República. Dentro desse critério, taes disposições serão por natureza constitucionais tambêm? E se o não são, pode dizer-se porventura que a lei constitucional tem, pelo seu objecto privativo, uma natureza jurídica particular?

Ah! eu sei: a doutrina para se salvar ha de distinguir, ha de precisar-se, e dirá que nas Constituições nem tudo é matéria rigorosamente constitucional, normas havendo que, sem essa natureza, nela se inscrevem pela sua conexão com as primeiras.

E é justamente a distinção que compromete a doutrina! Como ha de conciliar-se a ideia de que a Constituição difere da lei ordinária mesmo pelo seu conteúdo jurídico, com a ideia de que ha nas Constituições matéria rigorosamente constitucional e matéria não constitucional?

Para que se colocaram então, a par, normas de natureza jurídica diversa num diploma que devia caracterisar-se pela sua natureza jurídica única?

Dir-se-á que esses princípios não rigorosamente constitucionaes se colocam na Constituição para que, por contacto, se fixem com um certo caracter de permanência? Mas nesse caso ir-se-á [69] buscar ao abrigo da Constituição não uma especial natureza jurídica, mas uma simples diferença de forma, porque a doutrina que distingue entre matéria constitucional e matéria não constitucional nas Constituições daí tirou sempre uma única conseqùência: a de que a matéria não constitucional podia ser revogada por via da legislação comum. Para que se incluiam pois na Constituição? Ad quid?

Só porque eram princípios conexos com os princípios rigorosamente constitucionaes é que se inscreviam na Constituição? Mas eis justamente o Maleströn de toda a doutrina que vê naturezas jurídicas diferentes na lei constitucional e na lei ordinária! O facto de existir matéria que não era rigorosamente constitucional mas que se inscrevia contudo na Constituição, e que, não necessitando do poder constituinte para ser modificada, todavia se não confiava claramente à competência do legislador ordinário, não vinha atestar a dificuldade insuperavel—como diz Orlando—de encontrar um critério objectivo que caracterise juridicamente a lei constitucional, ou a impossibilidade absoluta de, como diz Palma, apontar onde começam e onde acabam as leis constitucionaes?

Impossivel, o adoptar-se o critério da Carta, cujo art. 144.º definia como matéria constitucional a que dizia respeito «aos límites e atribuìções [70] respectivas dos poderes políticos e individuaes dos cidadãos». Todos sabem a que maravilhosos prodígios de acrobacia política sempre conduziu êste artigo. Os governos que pretendiam modificar algumas das disposições da Carta entendiam sempre que essas não eram constitucionaes—e entre nós já em 1900 o Prof. Dr. Marnoco e Sousa com toda a razão considerava grave dificuldade a determinação da matéria rigorosamente constitucional, reputando preferivel que a Carta tivesse enumerado precisamente quais os artigos constitucionaes. O mesmo pensamento animára já o grande espírito de Garrett. Segundo refere Carlos Bento da Silva, em 1852, o autor da Constituição de 1838 manifestára-lhe o desejo de que no texto do 1.º Acto Adicional se fixassem esses artigos: «Levantam-se dúvidas incessantemente a respeito de quaes são os artigos constitucionaes do pacto fundamental; é bom que se declare êsse ponto». Mas Carlos Bento sugeriu que, com essa enumeração, ia dar-se à Carta uma imobilidade prejudicial, e Garrett desistiu da sua pretensão.

Foi trabalho poupado. As incessantes dúvidas sôbre qual era a matéria constitucional haviam de renovar-se, áparte o espírito de partido, por ocasião de querer fixa-la, e seria em vão a tentativa.

[71] De resto, por que motivo são constitucionaes certos princípios da Constituição e não se consideram assim as leis eleitoraes, as leis de imprensa, as leis de administração, as leis sôbre liberdades civís e religiosas?

Adotar-se-á o critério de que a Constituição vem fixar simplesmente os princípios essenciaes do direito público, e que por isso entrega a sua alteração, revisão, interpretação e revogação a um poder especial?

Como seria falso um critério dessa ordem! Assim, entre nós, o poder legislativo ordinário poderá em qualquer momento determinar como quizer as condições de capacidade eleitoral e de elegibilidade, poderá reduzir ou multiplicar sem límites o número de deputados, terá poderes para readmitir em Portugal os membros da dinastia de Bragança, que foi proscrita «para todo o sempre»; poderia até talvez alterar o regimen de separação em matéria de cultos—porque tudo isto, que certamente são pontos essenciaes de direito público, a Constituição não regulou ou deixou sem límites. Mas não ha poderes que lhe permitam extinguir a medalha ao mérito, filantropia e generosidade, porque, como ponto essencialissimo de direito público, foi regulado pela Constituição...

Poderá dizer-se ainda que as Constituições [72] determinam os problemas essenciaes de direito público, e que quanto às leis ordinárias teem, pelo seu objecto, uma natureza jurídica privativa?

De resto, como nota Orlando, por mais perfeitas que sejam as Constituições e as Cartas, nunca será possivel que elas abranjam todos os pontos essenciaes de direito público. Fóra da Constituição, e à roda dela, pairam princípios que o legislador respeita, visto que as condições políticas lhe aconselham que não convém violá-los, embora não estejam na Constituição, porque vivem nas tradições e teem necessidade de permanência.

Entre nós, isto colhe imediatamente—e até em questão de princípios afirmados pela primeira vez na vigência do regimen republicano. Quem poderá cuidar que não seja princípio constitucional o dever que incumbe aos governos de apresentarem às Camaras o relatório dos seus actos praticados durante o interregno parlamentar, desde que, em 1913, o apresentou o gabinete Afonso Costa e em 1914 teve de seguir-lhe o princípio o gabinete Bernardino Machado? E, todavia, êsse princípio não está na Constituição, nem se deduz inevitavelmente dos seus princípios. Aconselham-no as condições de vida política.

A actual Constituição, seja outro o exemplo, não só não admitiu como deliberadamente não [73] quiz consignar como constitucional o princípio da não retroactividade da lei. E, todavia, quem cuidará que o legislador possa, a todo o momento, fazer leis com efeito retroactivo? Detem-no juridicamente a Constituição? De modo nenhum. Aconselham-no a isso unicamente considerações do ponto de vista político.

Um último esforço se faz pela distinção: é a tentativa recente de Santoni (De la distinction des lois constitutionelles et des lois ordinaires, Toulouse, 1913) dizendo que, por muito que se pretenda assimilar as leis constitucionaes às leis ordinárias, ha afinal entre elas uma pequena distinção irredutivel: as leis constitucionaes são a norma dos interesses públicos do cidadão nas suas relações políticas com o Estado, ao passo que as leis ordinárias são a regra dos interesses privados do homem nas suas relações civis com os seus similhantes.

Mas tornam-se então constitucionaes todas as regras de direito público. E, repetindo por expressões antiquíssimas a celebrada distinção entre o jus publicum e o jus privatum, o autor não consegue afinal contrapôr as leis constitucionaes às leis ordinárias. Onde é que o direito público se torna constitucional?

Isto mesmo Santoni confessa, reconhecendo as dificuldades que as escolas alemã, italiana (e certamente a nova escola francêsa) apontam a uma [74] diferenciação de conteúdo jurídico entre aquelas leis. E, atravez de largas transigências que revelam um espírito em dúvida, mal resignado com a ideia que vai defender, o autor declara que à pergunta de Palma quando indagava onde começam e onde acabam as leis constitucionaes só se pode responder «que isso depende de circunstâncias variáveis cujos factores principaes são o espaço e o tempo, reputando indispensável, nesta matéria, manifestar um prudente oportunismo político».

Oportunissima confissão! Pois se para caracterisar uma lei como constitucional, se para lhe atribuir uma natureza, um conteúdo jurídico peculiar, é indispensável que se considerem os os elementos do meio, as circunstâncias da época, o condicionalismo político da éra em que essas leis vivem—com que verdade pode dizer-se que essas leis teem uma natureza jurídica particular, quando afinal é sob um ponto de vista puramente político que tal norma se considera ou deixa de considerar constitucional? Em que intervem aí a técnica jurídica?

Porventura, pelo facto de as condições sociaes e políticas de um país indicarem que, por efeito de necessidades conhecidas, ha vantagens em que certas regras de direito tenham um processo especial na fórma por que são declaradas—é lícito [75] afirmar que essas regras teem um conteúdo jurídico próprio?

Não. Por isso mesmo já em 1895 similhante distincção era combatida entre nós pelo Prof. Dr. Afonso Costa; em 1900 pelo Prof. Dr. Marnoco e Sousa, para quem não havia um critério jurídico que possa servir de base para a distincção entre matéria constitucional e não constitucional, e em 1905 pelo Prof. Dr. Alberto dos Reis que sinceramente confessava não quebrar lanças por similhante distincção, atribuindo-lhe um valor simplesmente formal.

Outro não tem, evidentemente. Para se afirmar que entre a lei constitucional e a lei ordinária ha uma diferença de conteúdo jurídico seria indispensável afirmar que elas produzem efeitos jurídicos diversos, porque o fim visado não caracterisa o conteúdo do acto jurídico, que só pode ser definido pelos efeitos jurídicos que cria. E o acto legislativo, constitucional ou não, só produz uma espécie de efeitos jurídicos: cria situações jurídicas objectivas.


W. Wilson, trad. fr. L'État, t. II, pág. 203 e segg.; Palma, Corso di diritto costituzionale, t. I, pág. 207 e segg.; Brunialti, Formazione e revisione delle Costituzioni moderne, na Biblioteca di scienze politiche e amministrative, 2.ª serie, vol. 2.º, pág. XVII e segg.; Santoni, no De la distinction des lois constitutionnelles et des lois ordinaires, e os autores aí citados; Gajac, no De la distinction des lois constitutionelles et des lois ordinaires; Angleys, Des garanties contre l'arbitraire du pouvoir législatif, págs. 1-17; Orlando, Prncipii di diritto costituzionale, (1912), págs. 136 e segs.; Duguit, Traité, 1911, t. II, págs. 515 e seg.; Laband, trad. fr., Le droit public de l'empire allemand, t. II, pág. 314; Jèze, Cours de droit publique, págs. 21 e seg.; Dr. Lopes Praça, Estudos sobre a Carta Constitucional, III, XXIII; Prof. Dr. Marnoco e Sousa, Direito Politico, 1899-1900, págs. 804 e segs.; Prof. Dr. Afonso Costa, Theses ex universo jure, pág. 9, cit. pelo Prof. Dr. José Alberto dos Reis, Organisação judicial, 1905, págs. 21; Fesas Vital, Do acto jurídico, págs. 86 e seg.



[76]
15.—Como distinguiu a Constituição as leis ordinárias da lei constitucional? É matéria constitucional tudo o que está na Constituição.


Admitiu a actual Constituição política da República a distinção entre leis ordinárias e leis constitucionaes? Admitiu—já o disse. Mas com que caracter?

Pela letra do art. 82.º e seus §§ é evidente que distinguiu pela fórma as duas espécies de leis. Te-las-ia diferenciado tambêm pelo seu objecto privativo?

Ao contrário da Carta que, no art. 144.º, só considerava como matéria rigorosamente constitucional a que dizia respeito «aos límites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e invioláveis dos cidadãos», debalde se procurará na lei constitucional da República qualquer disposição que defina os seus artigos constitucionaes.

Significará isto que a Constituinte de 1911, apesar de estar confeccionando solenemente uma [77] Constituição se contentou de a diferenciar das leis ordinárias apenas pelo diverso aspecto formal que lhe fixou?

Só o balanço de ideias emitidas durante a discussão parlamentar informará com segurança, e essa evidentemente atesta que o pensamento geral, quasi unanime, era de facto o que levava a distinguir as leis ordinárias da lei constitucional pela sua fórma e pelo seu objecto próprio. Os constituintes de 1911, seguindo nesse passo a doutrina comum, figuravam a lei constitucional como contendo, embora não exclusivamente, um objecto privativo. E esse pensamento se traduzia, no primitivo projecto de Constituição, no § único do n.º 31.º do art. 19.º, ao dizer que só era matéria constitucional a que fixava «as attribuições e limites respectivos dos poderes políticos e os direitos políticos e individuaes dos cidadãos», acrescentando-se que toda a matéria não constitucional podia ser modificada, revogada ou interpretada pelas legislaturas ordinárias. Assim se fazia neste § único, pelo seu objecto e pela sua fórma, a distinção clássica das leis.

Por que não apresenta hoje a lei constitucional da República uma disposição correspondente?

Não ha outra razão que não seja a que consta da história parlamentar desse § único, que na Constituinte, em sessão de 10 de agosto de 1911, [78] o deputado Egas Moniz discutiu pela seguinte fórma:


«...chamo a especial attencção da comissão para o outro ponto. O numero 31.º do artigo 19.º, § unico, diz o que é materia constitucional. Esse artigo não é senão a reproducção do artigo 144.º da carta constitucional, que consignou igual principio. Não censuro a comissão por ter adoptado um artigo que vinha na carta constitucional porque em direito publico é difficil hoje ser-se original.

«Não ataco, por isso a comissão, mas lembro-me das lutas colossaes travadas nesta Camara, sobre o que era matéria constitucional.

«Quero que materia constitucional seja tudo o que na Camara se apresenta. Pode ser uma lei mais simples, mais reduzida, mas clara.

«Sou, portanto, pela abolição desse artigo, que é uma copia do artigo 144.º da carta constitucional...».


E a comissão tão prontamente anuiu a êste alvitre que, realmente, no projecto-emenda, apresentado de novo à Assembleia quando se deu por finda a discussão na generalidade, eliminou o referido § único do n.º 31.º do art. 19.º—que ninguem aliás procurou restabelecer. Desta maneira, pode hoje dizer-se que, no que se referia à caracterisação de matéria constitucional, o princípio do projecto primitivo foi evidentemente repelido pela Constituinte.

Que se conclue?

Conclue-se que, desde o momento em que a Constituinte repeliu a distincção entre matéria [79] constitucional e matéria não constitucional, não pode duvidar-se hoje de que todas as disposições da Constituição são constitucionaes.

E deste princípio hão-de derivar-se conseqùências de larguissimo alcance.

Mas subsiste o primeiro problema.

Considerando todas as suas disposições, sem excepção, como constitucionaes, quiz a Constituinte atribuir-lhes uma natureza rigorosamente constitucional, isto é, dotal-as de fórma e objecto próprios—como entendia a doutrina comum—ou pelo contrário, formando com elas a Constituição, pretendeu apenas especialisá-las pela fórma, convencida pela nova doutrina de que entre leis constitucionaes e leis ordinárias apenas se observa uma distincção formal, importantissima aliás sob o ponto de vista político?

A doutrina que pairou nos espíritos da Constituinte inclina-se para reputar ainda como de diversa natureza jurídica as duas espécies de leis. Mas se assim é, se realmente a Constituinte ao aprovar a proposta do deputado Egas Moniz não pensou em aderir às novas doutrinas e abraçou a doutrina antiga—a verdade é que a comprometeu sem remédio. Aprovando essa proposta, entendendo que seriam constitucionaes todas as matérias, uma vez admitidas na Constituição, acabou por negar a esta uma natureza jurídica [80] própria, visto que a constitucionalidade de qualquer dos seus preceitos não derivará do seu conteúdo peculiar aferido por um critério jurídico, mas sim do facto puro e símples de estar inserto na Constituição.

E ninguem póde afirmar que os dois pontos de vista coincidam.



16.—A Constituìção admite disposições de caracter supra-constitucional e outras que impõem restrições de prazo para a sua revisão. Sua legitimidade sob o ponto de vista político e jurídico.


São constitucionais todas as matérias da Constituìção: não há matéria constitucional que não esteja na Constituìção.

Perante o seu texto serão todavia considerados por egual forma todos os seus princípios? Não. Apesar do conceito geral de que tudo que na Constituìção se inseriu é constitucional, há por um lado que distraír princípios que ela considerou superiores ao alcance do próprio poder constituinte—e que devem denominar-se supra-constitucionais.

É assim que no art. 82.º, § 2.º, determina que «não poderão ser admittidas como objecto de deliberação propostas de revisão constitucional que não definam precisamente as alterações projectadas, nem aquelas cujo intuito seja abolir a forma republicana do governo». Trata-se de disposições [81] supra-constitucionais, visto que o proprio poder constituinte—que as creou—não poderá te-las por objecto da sua modificação ou revogação.

Por outro lado, a lei constitucional contêm normas proìbindo que durante determinado tempo ela seja alterada—como consta do art. 82.º que fixa em dez anos, como regra, o prazo dentro da qual a Constituìção, não pode de maneira alguma ser revista.

Que deve julgar-se acêrca da legitimidade dêstes preceitos?



I. Há que examinar, sob o duplo ponto de vista político e da técnica jurídica, êstes problemas.

Pronunciando-se pela legitimidade de restrições à revisão constitucional, no seu optimo Comentário à Constituìção Política da República Portuguêsa o Prof. Dr. Marnoco e Sousa defende-a, de harmonia com Esmein, sob um ponto de vista puramente político, nos seguintes termos: «Compreende-se muito bem esta disposição, pois, desde o momento em que um povo escolheu uma forma de governo como condição de desinvolvimento da sua vida nacional, seria contradictório que inscrevesse na Constituìção a permissão de se propor a mudança desta forma política» (Comentário, pág. 618).

[82] Ouso divergir—e pergunto primeiro se será vantajoso inserir na Constituìção um princípio indicando que só por um acto anti-jurídico, por um acto revolucionário, é que poderá fazer-se a transformação da forma do govêrno. Como princípio, mostrarei que é erróneo, como indicação de único processo a seguir, cuido que só traz, evidentemente, desvantagens.

As condições sociais e políticas do meio podem levar a estabelecer princípios verdadeiramente imutaveis, que nunca o poder legislativo constituinte possa alterar? Há porventura princípios de organisação política, superiores e anteriores à reputada expressão suprema da chamada vontade nacional?

De que estranhos poderes se muniu o poder constituinte para limitar in aeternum a sua competência, e para comprometer uma vez por todas a vontade das gerações futuras?

Dir-se-há que assim foi expressa pela forma mais solene na lei constitucional a vontade da nação, ao conferir aos deputados os mais amplos poderes para fazerem a sua lei constitucional? Mas que diferença de origem há entre o poder constituinte que confeccionou a Constituìção e aquele a quem de novo sejam atribuidos poderes não restrictos para a rever? Não derivam ambos da vontade geral da nação? Provindos, nos [83] mesmos termos, da mesma origem—como podem ter alcances diversos? É mais poderosa uma vez que outra a natureza da representação que desempenhem os constituintes?

Dir-se-há que foi a própria vontade nacional que a si se limitou futuras competências? O êrro profundo! Limitação que a si própria se oferece não é limitação.

Foi a própria vontade nacional que se limitou? Mas se os poderes constituintes que a nação conferiu aos seus deputados foram destinados a confeccionar a Constituìção, com que poderes é que os deputados começaram justamente por se atribuir competência para limitar—por toda uma eternidade, presumptivamente—o alcance da própria soberania nacional, proìbindo que ela podesse, pelo processo normal da representação, afirmar-se de novo àcêrca de determinados pontos?

A que fica reduzido o princípio da omnipotência da soberania nacional—o estrutural princípio dos sistemas constitucionais? A que fica reduzido o poder que o constitucionalismo atribue à nação de reformar, sempre que o queira, a sua organização fundamental? Que novo direito natural surge neste passo das doutrinas de direito público—que novos dogmas, superiores e anteriores à suprema vontade nacional regularmente expressa?

[84] Dir-se-há, como dizem alguns com quem Esmein concorda, que a forma política do govêrno é uma expressão da vontade nacional no momento supremo em que ela se encontra toda poderosa—e que nisso se fundam as restricções postas à revisão constitucional nesse ponto? Equivaleria isso a dizer que só quando saída de um acto revolucionário, que a nação sancionasse, a Constituìção poderia restringir a possibilidade de ser revista no que toca à forma política do govêrno. E em França, todavia, essa restricção—que não existe em nenhuma das Constituìções do seu período revolucionário—foi introduzida nas leis constitucionais vigentes pela lei de 14 de agosto de 1884, de reforma constitucional, por um puro processo parlamentar.

Quem estabeleceu essa restricção? O poder constituinte, que nas leis constitucionais de 1875, e hoje ainda, é exercido em qualquer altura por um organismo constituido pelos mesmos senadores e deputados eleitos para a legislatura ordinaria. Como diz Duguit, a cada eleição os eleitores devem saber que, elegendo-os, designam talvez os membros de uma assembleia constituinte—sem que para isso tenham de conferir-lhe mais amplos poderes. De resto, se foi o poder constituinte quem estabeleceu essa restricção à possibilidade de se rever totalmente à lei constitucional, [85] quem, se não o mesmo poder constituinte, pode, por um novo acto, afastar a restricção?

Para se negar esta competência, é necessário demonstrar que entre as disposições constitucionais e as disposições supra-constitucionais há ou uma diferença de forma ou de natureza jurídica que o justifique.

Mas uma distinção formal resolver-se-ía por fim numa distinção de poderes, incapaz um, outro capaz, de tocar determinada matéria. Compreende-se assim a distinção entre matéria constitucional e matéria da lei ordinária, feita em atenção simplesmente ao órgão que a declara, altera ou revoga, porque êle é num caso o poder constituinte e noutro o poder legislativo ordinário. Mas é inutil distinguir entre matéria constitucional e matéria supra-constitucional sob o ponto de vista do órgão que a declara ou revoga, porque a conclusão a que se chegava havia de ser a de que, tendo sido um e o mesmo o órgão que as declara, não há órgão competente para alterar ou revogar a matéria supra-constitucional, que, uma vez fixada, fica eterna. Se não há órgão competente neste caso, se falta o segundo termo de comparação, como é que há de fazer-se a distinção entre a matéria constitucional da matéria supra-constitucional sob êsse ponto de vista? Poderá dizer-se que é uma diferença de natureza [86] jurídica a que leva a concluir no sentido de que nem sequer o poder constituinte pode tocar nas disposições supra-constitucionais? Mas, sob o ponto de vista da técnica jurídica, não se sustenta uma tal diferença. O acto jurídico legislativo, seja qualquer o órgão competente para o fazer e revogar—e neste caso nem sequer órgão havia capaz de revogar a matéria supra-constitucional—perante a técnica jurídica tem sempre, indefectivelmente, a mesma natureza jurídica, que há de ser definida pelos efeitos jurídicos que cria.

Diferente natureza jurídica, neste caso, como? se, a reputar-se jurídica, essa disposição legislativa supra-constitucional só criaria, como o acto legislativo constitucional e como o acto legislativo do congresso ordinario, situações jurídicas gerais, objectivas?

De resto, a técnica jurídica repele a distinção entre matéria constitucional e matéria supra-constitucional por uma razão realmente simples: porque não conhece matéria supra-constitucional. Compreende-se que haja condições de ordem política que aconselhem ao legislador a respeitar o caracter de permanência a certas normas: é êsse, fundamentalmente, o conceito das Constituìções rígidas. Mas o que não pode conceber-se é uma regra de direito positivo de caracter [87] eterno. Não precisa de ser inscrito nas Constituìções o princípio—verdadeiramente superior às vontades individuais, e que se impõe juridicamente aos governantes—de que as instituìções políticas, administrativas ou sociais podem ser modificadas ou suprimidas em dado momento. Não está êsse princípio nas Constituìções? Mas nem precisa estar—e a ausência só prova contra elas.

Dir-se-há que, negando eu rigor jurídico à proibição eterna de rever-se a Constituìção no que respeita à forma de govêrno com a razão de que não existe direito natural nem princípios eternos—é afinal em nome de um princípio que digo pairar sôbre as Constituìções que defendo a minha tése? Dir-se-há que impugno a renascença do direito natural para com êle argumentar por meu turno?

Mas pelo contrário!

O direito natural era a propria imagem do direito, o direito eterno, perenemente intransformavel—importando pouco que os factos o contrariassem. Ora eu não argúo em nome do direito natural, mas sim dos factos de hoje, porventura diversos ámanhã. São as condições normais da vida jurídica actual que me levam a caracterisar a regra de direito sentida nas consciências actuais como transformavel por natureza.

[88] As disposições supra-constitucionais são assim inteiramente desprovidas de caracter jurídico. Juridicamente—não constituem um limite para o legislador constituinte. Constituem-no politicamente? É certo. Ninguem há de crer que o poder constituinte possa modificar frequentemente a forma do govêrno. Politicamente, seria odioso, detestavel, o poder que o fizesse. Mas, as circunstâncias de vida política exigindo a alteração da forma do govêrno, essas circunstâncias defenderiam a assembleia constituinte que o fizesse. Poderia isso ser um verdadeiro atentado, um crime de lesa-interesses políticos do país? Trata-se nesse caso, apenas, de um ponto de vista político que, evidentemente, não interessa à técnica jurídica.

Assim, não havendo lugar para uma distinção, já de forma, já de conteúdo jurídico, entre disposições constitucionais e disposições supra-constitucionais—a competência do poder constituinte deveria ser a mesma em relação a elas, se a técnica jurídica porventura aceitasse a ideia de uma disposição supra-constitucional. Ora esta ideia é anti-jurídica, e portanto, em face à disposição do § 2.º do art. 82.º da actual Constituìção política da República, entendo, como entendem Duguit e Jèze, contra Esmein e, mau grado meu, contra o ilustre Prof. Dr. Marnoco e Sousa, [89] que ela não constitue juridicamente um limite à possibilidade de fazer-se uma revisão total da Constituìção, e que, até, esta mesma revisão total poderia levar a cabo uma assembleia constituinte, eliminando primeiro, sem ter que patentear intuitos, o referido § do art. 82.º, e modificando depois a forma de govêrno, o que poderia fazer—constitucionalissimamente.



II. Mas a Constituìção dispõe tambem no art. 82.º que, em regra, só de dez em dez anos, poderá levar-se a cabo a sua revisão—exceptuado o caso do seu § 1.º em que ela poderá antecipar-se.

Que cuidar dêste preceito?

Sob o ponto de vista jurídico, a êle se aplicam, mutatis mutandis, todas as considerações que fiz no problema precedente.

É incompreensivel a proibição formulada, por uma autoridade, qualquer que ela seja, de modificar a regra de direito antes de uma dada época, visto que em todos os países deve haver um meio jurídico normal para modificar as instituìções políticas, economicas, sociais, para as pôr de harmonia com as necessidades morais ou materiais da população. Dizer que só de dez em dez anos é que devem sentir-se essas necessidades, aferir por um artigo de lei as conveniências nacionais, [90] por vezes tão inesperadamente despertadas e ardentemente sentidas—é cuidar que elas derivam da lei, e que da lei deriva a oportunidade de lhes dar satisfação.

Politicamente, decerto, é de desejar que a Constituìção não seja frequentemente victima da paixão imoderada do Parlamento qui, parfois, de trop l'aimer la tue.

Politicamente, não há dúvida, só circunstâncias muito graves da vida nacional, ou uma verdadeira forma nova da sua indole devem conduzir a uma reforma da Constituìção. Tudo isso está ou deve estar nas consciências políticas, e tem a sua sancção no ódio ou aplauso da opinião política apenas. Mas não deve estar nem guardar-se na Constítuìção.

Pois porventura, mesmo sob o ponto de vista puramente político, pode cuidar-se que só de dez em dez ou de cinco em cinco anos é que a chamada vontade nacional tem poderes para se exprimir por uma reforma constitucional?

Como maravilhosamente diz o Prof. Jèze, «politicamente, é absurdo, quimérico e criminoso querer encerrar as gerações sucessivas em instituìções políticas, administrativas, sociais, etc., que podiam porventura estar em contradição absoluta com o ideal de momento, a moral em moda, a justiça em voga, as necessidades políticas, [91] económicas, etc. É forçar uma geração à revolução e à violência. Se uma geração qualquer manifestasse, pelo órgão do seu Parlamento, a pretensão grotesca de regular ne varietur o destino e a conducta das gerações futuras sôbre êste ou aquele ponto, a sua vontade não teria valor algum, nem político, nem jurídico. Teria exercido um poder que, nem política nem juridicamente lhe pertencia que lhe não pode pertencer...

Seria sem dúvida um êrro político, uma provocação à revolução, inscrever numa lei esta afirmação, desprovida de valor jurídico, de que tal ou qual disposição nunca mais pode ser modificada ou que o não poderá ser sem que decorra um período determinado...» (Cours de droit public, 1913, págs. 89-90).

Assim, o Congresso, solicitado amanhã por instantes indicações nacionais, acculé por verdadeiras necessidades políticas do país que inequivocamente exigirem uma reforma da Constituìção, e colocado em face ao seu art. 82.º não terá neste um limite jurídico que o iniba de operar a revisão: terá apenas um conselho político. As condições de vida política normal do país reclamam, terminantemente, uma reforma? O Congresso, deliberando faze-la, ainda mesmo contra a estipulação dos prazos do art. 82.º, não praticará [92] nisso a menor falta sob o ponto de vista jurídico. Poderá praticar um êrro, uma verdadeira monstruosidade sob o ponto de vista político? Mas a sancção dêsses êrros não atinge o domínio rigorosamente jurídico. Poderá despertar paixões, contrariar interesses, suscitar conflitos, conduzir à rebelião? Tudo isso será possivel—e não deve ser indiferente ao Congresso e ao govêrno. É o momento de tomarem a palavra os políticos e de se manifestarem os interesses políticos contrários. Mas não poderá dizer-se que o Congresso tenha procedido por uma forma anti-jurídica. Anti-jurídico, é o preceito constitucional.

Dir-se-há—eu sei!—que, sem êsse escrúpulo, sem um freio, como diz Larnaude, o Congresso não terá pejo de reformar a Constituìção quando isso mais convenha aos interesses políticos do grupo dominante, tornando-se a breve trecho numa Constituinte permanente. O argumento é apenas de ordem política—mas merece ser respondido porque é um êrro profundo. Nas Constituìções europeias, só a grega e a portuguesa, creio bem, estipularam um prazo indispensavel para a revisão constitucional. Pois tanto na Grécia como em Portugal, apezar de a reforma e a Constituìção actuais viverem apenas egualmente há tres anos, toda a vantagem política [93] estaria justamente em que não se houvesse estipulado semelhante prazo. O êrro foi maior na reforma grega de 1911, agora vigente, visto que a crise política que a determinou foi provocada precisamente pelo facto de serem difíceis e morosos os processos de revisão constitucional e urgentes as necessidades que a impunham. Imprevidentemente se colocou portanto aquele limite.

De resto, a demonstração fica perfeita se se aduzir o exemplo da Italia e da França. Em Italia, o Statuto fundamental tem a natureza de uma lei ordinária: pode ser modificada por uma lei. Todos os Parlamentos teem poder para isso: por muito pouco que dure, qualquer govêrno terá sempre ocasião, se quizer, de revogar, alterar, dispensar ou interpretar o Statuto. Que limite há portanto a obstar-lhe? Puramente político—e, todavia, êsse tem bastado.

Mas seja exemplo a França onde as leis fundamentais teem natureza constitucional. Aí, por circunstâncias políticas históricas que não interessam agora, a revisão é possivel a toda a hora. Não há limite de prazo, não há necessidade de novas eleições, não concedem mais poderes os eleitores.

Uma vez eleitos os senadores e deputados, se a meia legislatura as duas camaras separadamente [94] deliberarem por maioria absoluta de votos que deve realizar-se uma revisão constitucional—reunem-se logo em assembleia nacional e passam a reve-la (Lei de 25 de fevereiro de 1875, art. 8.º). É o cúmulo da facilidade revisional em países de Constituìção rígida—e é um contrastre com as antigas Constituìções francêsas todas escrupulosas. Seria de supôr que a cada passo os deputados e senadores se sentissem com veleidades de constituintes. Pois as leis constitucionais francêsas actuais duram invioladas há cêrca de quarenta anos, apenas com duas revisões, leves aliás—vida que não viveu nenhuma das rigorosas Constituìções anteriores.

Que limites há, todavia, à vontade dos legisladores, se não os da oportunidade e senso político? Dir-se-há que, entre nós, povo latino, apaixonadamente político, imoderado, as conseqùências seriam funestas? Mas povo latino não o é a França—não o é a Italia, mãe de latínos?

Esmein, Éléments de droit constitutionnel (1914), II, págs. 1073 e seg.; Duguit, Traité cit., II, págs. 529 e seg; Jèze, cit. Cours de droit public (1913), págs. 89, 90 e 242; Arnoult, De la révision des Constitutions, págs. 277 e seg.; Prof. Dr. Marnoco e Sousa, Commentário, págs. 99, 100 e 618.



[95]
17.—A distinção entre a lei constitucional e as leis ordinárias: como é sancionada. Os juizes competentes para conhecerem da constitucionalidade das leis: quando? A atual Constituìção.


Uma vez assente a distinção, sob o ponto de vista formal, entre a Constituìção e a lei ordinária—que sancção recebe? Evidentemente a de que a lei ordinária não pode revogar nem alterar a lei constitucional, ou, melhor, a esta tem de ser conforme para que possa obrigar.

É possível, todavia, que o Congresso faça uma lei não conforme aos preceitos da Constituìção, e, nesse caso, depois de promulgada e publicada a lei, quem deverá cuidar, por dever, àcêrca da sua constitucionalidade?

Aos juizes deve confiar-se êsse poder e dever. Para averiguar da constitucionalidade da lei, bem está quem há de interpretá-la e aplicá-la, se porventura esta missão não abranje já a primeira. De facto, ao interpretar e aplicar a lei, o juiz pode reconhecê-la em conflito com a lei constitucional, anterior e superior a ela—e que no conflito há de prevalecer.

O contrário seria admitir e reconhecer que a lei ordinária pode, validamente, ir de encontro à Constituìção que, nos países de Constituìções rígidas, é por definição a lei mais forte.

Conflitos de natureza análoga vê-os o juiz estabelecidos [96] diariamente entre uma lei e um regulamento e, nesse caso, ainda o juiz fará prevalecer a regra mais forte sôbre a mais fraca, que é a lei sôbre o regulamento.

É justamente com o mesmo critério que o juiz, no desempenho dum dever, encontrando em discórdia a lei comum e a Constituìção, desprezará aquela para cumprir esta—indefectivelmente. Na sua missão de aplicar a lei, o juiz tem que obedecer e aplicar a Constituìção, e aplicar esta é, como diz Larnaude, arredar qualquer texto legislativo que importasse uma sua violação.


Houve muito quem impugnasse, e ainda há quem impugne, com clássicos argumentos, de ordem política especialmente, a competência atribuida por esta forma aos tribunais, e assim o fez ainda ultimamente entre nós o Juiz Pinto Osorio no seu aliás ótimo, eruditíssimo livro No Campo da Justiça, 1914, a págs. 189 e seg. Mas não há senão que confessar que essa impugnação tem hoje um interesse puramente histórico, e entre nós está vencida depois das exposições magistrais dos Proff. Drs. Alberto dos Reis, Organização Judicial, 1909, págs. 22 e seg.; e Marnoco e Sousa, no Direito político, 1910, págs. 781 e seg.; e ainda ultimamente no seu Commentário, a págs. 581 e seg.

Seria interessante notar que a atribuição desta competência é bem uma caraterística da função judicial, como ela deve ser considerada no regímen de distinção de funções. Notou-o admiravelmente o Prof. Dr. Guimarães Pedrosa que, ao definir o fim do estado, escreve: «Mas, porque os órgãos ou elementos que actuam no proseguimento dêsse fim, podem desviar-se da lei que os reje; praticando actos ou incorrendo em omissões, que a contrariam ou desconhecem, necesária se mostra a acção de uma fôrça, que restitua ou obrigue aqueles órgãos à sua acção legítima; e se em tais factos, de caracter negativo, se ofenderam as esferas de acção de outras fôrças ou actividades, individuais ou sociais, aquela mesma fôrça impõe a reparação respectiva. Emfim, o que se dá com os órgãos da soberania ou poder político, análogamente sucede com as fôrças individuais ou sociais nas ofensas, positivas ou negativas, de direitos individuais, sociais, ou do estado, que êste, pelos seus órgãos superiores, foi chamado a tutelar....» E e por isso intervem a função judiciária reconduzindo o indivíduo, a colectividade, o órgão público ao desempenho normal da sua acção (Curso de ciencia da administração e direito administrativo, t. I, págs. 78 e 79).

[97]
São considerações desta ordem que conduzem nos Estados Unidos da América do Norte a assinalar nos juizes uma verdadeira e alta função. Deve ler-se a primorosa comunicação de Larnaude inserta no Bulletin de la société de législation comparée, t. XXXI, 1901-1902, a págs. 175 e seg.


Deve o juiz conhecer oficiosamente da inconstitucionalidade da lei, ou apenas quando esta for alegada por qualquer das partes, como adoptou a atual Constituìção, e como adoptaram as outras que aos juizes atribuem tal competência?

Decido-me pela competência oficiosa dos juizes que na Constituinte de 1911 empenhadamente defendeu o deputado Barbosa de Magalhães, e aventuro-me a discordar do Prof. Dr. Marnoco e Sousa, que, pela doutrina da Constituìção, escreve:

«Mas se ambas as partes estavam de accordo em considerar constitucional uma lei... para que se havia de dar ao poder judicial o direito de apreciar a inconstitucionalidade da lei?» (Commentário, pág. 584). Para quê?

É que a constitucionalidade da lei é, evidentemente, [98] a primeira condição da sua força obrigatória, e, no regímen das Constituições rigidas, a distinção entre lei ordinária e lei constitucional não teve outro intuito diferente do de enunciar que a genuidade da lei se aferia, na frase de Wilson, pelo «estalão invariável» da Constituìção. Se é a conformidade da lei ordinária à lei fundamental que a torna verdadeiramente uma lei, como há de o juiz ser indiferente à necessidade de a verificar êle próprio? Pode o juiz aplicar uma lei, quando sabe que ela não deve obrigar, só porque as partes o não alegaram? Porventura, a obrigatoriedade da lei, dirigindo-se áqueles a quem há de aplicar-se, não se dirige aos encarregados de a aplicar?

Por essa forma, dependendo da arguição das partes o facto de cumprir-se ou deixar de cumprir-se a Constituìção, como os litigantes podem ter vantágem comum em se subtrair aos seus preceitos—a seu bom grado ela se cumprirá ou não. E o juiz permanecerá impassível.

Pois quê! A Constituìção confeccionou-se dando o carácter de constitucionais a todos os seus artigos, resguardou-se do executivo, resguardou-se do legislativo, resguardou-se do próprio poder constituinte no escrúpulo de sempre se ver obedecida e proeminente—para afinal se cumprir ou não a bom gosto dos litigantes?

[99] Pode suceder que a estes seja mais favorável a lei possivelmente inconstitucional? Mas acaso o carácter obrigatório das leis, e da Constituìção principalmente, é imposição que possa elidir-se, graça ou vantágem a que possa renunciar-se?

Que a atual Constituìção se tenha limitado, por ora, a dar poderes aos juizes para conhecerem da inconstitucionalidade das leis só no caso das partes a alegarem—compreende-se perfeitamente. Determinaram-na a isso naturais razões de pura ordem política. Como legislação positiva, o princípio era novo em Portugal, como princípio constitucional—inaugurava-se na Europa. Porventura convinha dar-lhe o máximo alcance?

Mesmo assim, reduzido aos termos em que está, a aprovação do artigo suscitou embaraços enormes que o puzeram em perigo, como se avaliará pela leitura do Diário da Assembleia Nacional Constituinte da sessão noturna de 15 de agosto de 1911.

Os constituintes democráticos são, em regra, extremamente ciosos da sua obra legislativa, temendo sempre do conservantismo dos tribunais, cujas invasões receiam. Foi assim em 1789 em França, foi assim entre nós já em 1821. Na Constituinte de 1911 era tão forte a corrente hostil ao princípio que o deputado Afonso Costa, [100] ainda depois duma longa defeza da doutrina demonstrando-lhe as vantágens, sentia necessidade de declarar: «Falarei tantas vezes quantas sejam precisas para justificar a minha proposta». E, só depois de mutilado, como adiante referirei, o artigo conseguiu entrar na Constituìção.

Mais de três anos de vigência da regra mostram, todavia, que eram infundados os receios. Os cidadãos não alegam todos os dias inconstitucionalidade de leis, e os tribunais não teem demolido a obra legislativa. A jurisprudência dos tribunais superiores, publicada durante estes três anos, limita-se, salvo erro, a três acórdãos apenas, sôbre a mesma lei, decidindo pelo seu não cumprimento em virtude da sua inconstitucionalidade.

É de esperar que, na primeira Constituinte que se reuna, virá a completar-se o princípio, reconhecendo e impondo aos juizes o poder e o dever de conhecerem oficiosamente da constitucionalidade das leis.


Larnaude, e os autores referidos na sua notabilissima comunicação já citada; W. Wilson, op. cit., t. II, págs. 186 e seg.; Esmein, Éléments, ed. cit., I, pág. 588 e seg.; Orlando, Principii cit., págs. 257 e seg.; Teoria giuridica delle guarentigie della libertà, na Biblioteca di scienze politiche, de Brunialti, (1.ª série), vol. V, págs. 943 e seg. e a extensa bibliografia em nota a pág. 946; Jèze, série de artigos, Contróle des délibérations des Assemblées délibérantes, na Revue générale d'administration, 1895, t. II, pág. 407 e seg.; Jèze e Berthélemy, na Mémoire sur le caractère inconstitutionnel de la loi roumaine du 18 décembre 1911... extratada na Revue du droit public, 1912, págs. 138 e segs.; Duguit, Traité cit., I, págs. 155 e segs.; Gajac, op. cit., págs. 221 e seg.; Angleys, op. cit., págs. 142 e seg.; Santoni, op. cit., págs. 106 e seg.; Prof. Dr. Alberto dos Reis, Organização Judicial, 1905, págs. 19 e seg.; Prof. Dr. Marnoco e Sousa, Direito Politico, 1910, págs. 781 e seg.; Commentário cit., págs. 581 e seg.; vid. tambem os acórdãos de 12 de julho de 1913 da Relação de Lisboa, de 5 de junho de 1914 da Relação do Pôrto e de 13 de fevereiro de 1914 do Supremo Tribunal de Justiça, na Gazeta da Relação de Lisboa, 27.º ano, n.º 40, págs. 324; Revista dos Tribunaes, ano 33.º, n.º 780, págs. 184; e Revista de Legislação e de Jurisprudencia, 47.º anno, n.º 1957, págs. 15 e 16.



[101]
18.—O que deve entender-se por constitucionalidade da lei? Sentido lato e sentido restrito. A validade e a constitucionalidade. Em que extensão deve conhecer o juiz. A opinião do Prof. Dr. José Alberto dos Reis e do juiz Francisco José de Medeiros. A opinião que defendo.


Devem os juizes conhecer da inconstitucionalidade da lei. Mas o que deve entender-se por esta expressão?

De uma forma lata, a designação constitucionalidade da lei, deve reputar-se sinónima de conformidade da lei à Constituìção. Ora a lei pode carecer de constitucionalidade por duas ordens de razões que devem distinguir-se: ou porque na sua formação não teve os requisitos que constitucionalmente são indispensáveis para que seja genuinamente uma lei, ou porque, perfeita aliás sob êsse ponto de vista, as suas disposições são [102] contudo doutrinalmente contrárias à Constituìção ou aos princípios nela consignados.

A conformidade à Constituìção desdobra-se assim em validade e em constitucionalidade propriamente dita. E é para notar que quási todos os autores não concordes ainda em atribuir aos juizes competência para conhecer àcêrca desta última, sem hesitar lhes reconhecem poderes para se negarem ao cumprimento da lei desde que ela careça de qualquer elemento formal indispensável para a sua existência constitucional. Assim Larnaude, Gabba, Saredo, Orlando, Contuzzi, Cammeo, Lessona e tantos mais.

Por quê? Porque atribuindo-se aos juizes o poder ou o dever de conhecerem àcêrca da constitucionalidade da lei, isto é, da conformidade da lei à Constituìção, a primeira cousa que eles teem que inquirir é sôbre se, de facto, em face à Constituìção e só à Constituìção, êsse diploma tem ou não os caracteres formais exigidos para que se diga constitucional e genuinamente uma lei.

Assim o juiz Francisco José Medeiros entendia, e na mesma altura sustentava já e sustenta ainda o Prof. Dr. José Alberto dos Reis, na Universidade de Coimbra, que os juizes devem ser competentes para conhecer da constitucionalidade da lei no que se refira às condições da sua existência. E, desenvolvendo o tema, o Prof. Dr. Alberto [103] dos Reis pronuncia-se no sentido de que, antes de aplicar a lei, devem os juizes verificar se ela foi aprovada pelas duas Câmaras (supõe-se a hipótese dum sistêma bi-cameral), sancionada, promulgada e publicada. Estes são, portanto, os elementos formais reputados necessários e suficientes para que a lei obrigue, e seja constitucionalmente uma lei.

Alegam as partes outra qualquer «preterição das formalidades exigidas para a elaboração das normas legislativas»? O juiz deve escusar-se a averiguar ácêrca da impugnação, porque «a legalidade do processo parlamentar depende do regimento interno da camara, que esta pode modificar constantemente...».

Salvo o devido respeito pela opinião do ilustre Prof. Dr. Alberto dos Reis, alguns reparos creio poderem oferecer-se à sua doutrina. E assim, colocando o problema perante os princípios, insisto na afirmação: os juizes devem conhecer da constitucionalidade da lei pela sua conformidade à Constituìção.

Trata-se do primeiro exemplo apresentado, o facto de, num sistema bi-cameral, como entre nós, a lei haver sido aprovada apenas por uma das Câmaras?

O juiz, tendo de conhecer da conformidade da lei à Constituìção forçosamente reconhece que ela [104] é inconstitucional—visto que, em disposições de carácter rigorosamente constitucional, aquela exige que a aprovação seja feita pelas duas Câmaras.

Trata-se da falta de sancção, promulgação ou publicação—e a Constituìção exije êsses elementos para validade da lei? O juiz, tendo de conhecer da conformidade da lei à Constituìção, negar-lhe há cumprimento.

Nestes pontos convenho. Mas figure-se outro exemplo:

Nos sistemas bi-camerais exige-se, em regra, que seja da Câmara dos Deputados a iniciativa sôbre impostos. Imagine-se que a discussão de uma lei a êles relativa foi iniciada pelo Senado e que, embora isso, foi aprovada em ambas as Casas e depois seguiu os tramites normais. Deve o juiz negar-se a cumprí-la? Pela doutrina do Prof. Dr. Alberto dos Reis, o juiz não podia conhecer da questão, ainda que ela lhe fôsse proposta, porque evidentemente se trata de «preterição das formalidades exigidas para a elaboração das normas legislativas»,—e o exame dêsses foge em seu entender à competência do juiz.

Julgo todavia, que êste tem de declarar inconstitucional a lei. Trata-se duma formalidade? É certo. Mas duma formalidade de natureza constitucional, e, a lei que se fizesse com desprezo [105] dela fatalmente não seria conforme à Constituìção. O juiz tem de negar-lhe cumprimento.

A razão invocada pelo ilustre Professor é a de que a legalidade do processo parlamentar depende apenas do regimento interno da própria Câmara—que ela pode ter querido dispensar. Mas, como se vê, há formalidades de processo parlamentar que estão expressas na própria Constituìção—e é só em conformidade a elas que as leis são válidas, constitucionais. Daí resulta que o juiz conhece, por dever, da observância dessas formalidades, antes de passar a conhecer da conformidade doutrinal da lei à lei constitucional.


Juiz Francisco José Medeiros, Sentenças, 1.ª ed. (1904), págs. 8 e 9; Larnaude, communicação no cit. Bulletin, a págs. 220; Orlando, Principii cit., a págs. 260-261; Prof. Dr. Alberto dos Reis, e os autores citados na sua Organização Judicial, 1905, pág. 19 e seg.; 1909, págs. 22 e seg.



19.—O problêma anterior em face à Constituição actual. Os juizes só conhecem da constitucionalidade em sentido restricto? Não. Conhecem tambem das condições constitucionais do processo de formação da lei.


Qual é a doutrina da actual Constituìção política? Diz o seu artigo 63.º:

O Poder judicial, desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei... apreciará a sua legitimidade constitucional em conformidade com a Constituìção e princípios nela consagrados.

[106] Como deve interpretar-se o artigo? Com o próprio artigo, evidentemente.

Para o legislador—validade da lei, legitimidade constitucional, e conformidade da lei com a Constituìção e seus princípios são, patentemente, expressões sinónimas.

A lei será válida ou legítima quando fôr conforme à Constituição e aos seus princípios. A lei, para ser válida, terá que ser conforme a todas as disposições constitucionais? Tem. Já expuz que, no sistêma da Constituição, todas as suas disposições são constitucionais: nela não há que distinguir entre matéria rigorosamente constitucional e não rigorosamente constitucional.

Ora a Constituìção contêm disposições de processo parlamentar—constitucionais portanto. Desde o art. 7.º ao art. 35.º da Constituìção há numerosos preceitos que a ele tocam—especialmente os artt. 23.º e 28.º a 35.º

Assim, a alínea b) do art. 23.º determina expressamente que seja privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa sôbre organisação das forças de terra e mar. Figuremos, porêm, que se iniciou no Senado a discussão de um projecto de lei dessa natureza e que, aprovado aliás por ambas as secções do Congresso, foi regularmente sancionado, promulgado e publicado como lei. Obriga?

[107] Sustento decididamente a negativa.

Quem quer que pretenda impugnar a validade da lei deverá alegar apenas que ela não é conforme à Constituìção—e prova-o facilmente. E o juiz terá evidentemente que demonstrar para considerar legítima a lei, se ela está conforme à Constituìção. Por ventura nesta hipótese o está?

Eis, rigorosamente, a interpretação devida. Poderá dizer-se que a história do art. 63.º da Constituìção abona a interpretação que apresento? Vou mostrá-lo.

No primeiro projecto que a comissão apresentou à Assembleia Nacional Constituìnte, o artigo não estava redigido pela forma actual. A sua redacção era a seguinte:



Art. 48.º—O Poder Judicial da República, desde que nos feitos submetidos a julgamento qualquer das partes impugnar a validade da lei... apreciará a sua legitimidade constitucional em conformidade com a Constituìção e princípios nella consagrados, e bem assim a conformidade do processo parlamentar ou formação da lei com os respectivos preceitos da Constituìção.



Decorreu a discussão na generalidade sem referências ao artigo, que, no projecto-emenda apresentado [108] de novo pela comissão, continuava como art. n.º 53.º redigido da mesma forma. A sua discussão realisou-se na sessão noturna de 15 de Agosto de 1911, e logo pelo deputado Matos Cid foi proposto que dele se eliminassem precisamente as palavras==e bem assim a conformidade do processo parlamentar ou formação da lei com os respectivos preceitos da Constituìção==alegando ser isto «matéria inaceitável, que briga com outras disposições já votadas».

Quais—e em quê?

Tal como estava, o texto do artigo foi defendido pelos deputados Pedro Martins, Barbosa de Magalhães e Afonso Costa.

Aprovada foi, todavia, a proposta Matos Cid, depois de a seu favor terem falado os deputados Machado Serpa e António Macieira. E com que argumentos repeliram a doutrina do artigo?

O deputado Machado Serpa, hostilisou-a alegando que, munido desses poderes, «um juiz, com uma simples penada, pode anular toda a obra do poder legislativo». Mas como?

Só por constatar que o poder legislativo, ao fazer uma lei, violára as regras ao caso relativas que a Constituìção, como todas as Constituìções dos povos modernos, prescreve? Mas há perigo em que o juíz constate a violação—e não há perigo em que o poder legislativo a tenha [109] praticado? E como admitir que isso se faça em toda a obra do poder legislativo?

De resto, o juiz não anula a lei, ainda que a repute inconstitucional: decide simplesmente que ela não obriga no caso que lhe propuzeram a julgamento.

As arguições do deputado Antonio Macieira virão provar, claramente, que se fazia confusão sôbre o verdadeiro alcance do artigo discutido. É assim que, para regeitar as suas últimas palavras, parte da suposição de que por elas ia dar-se poderes aos juízes para constatar se na confecção da lei tinham sido cumpridas—não as regras constitucionais da formação das leis, mas sim todos os 177 artigos do Regimento interno que a Constituinte, havia dois meses, aprovára. Nessa ideia, o deputado António Macieira, expondo os motivos por que concordava com a proposta Matos Cid, declarava:


Parece me que conceder ao poder judicial a faculdade de verificar se uma determinada lei seguiu o processo regulamentar, se foi feita nos termos constituídos para ela se fazer, nos termos do Regimento, é dar-lhe muito ampla e larga attribuição ao poder judicial, é dar origem a que nos tribunais haja verdadeiramente logar, permitta-se-me o termo não parlamentar, à maior chicana, tornando irrisória, pode dizer-se, a forma como o poder judicial possa apreciar essa lei.

Não é admissivel que uma pequena infracção do Regimento, porventura desejada pelo proprio Parlamento, seja motivo para pôr de parte uma lei.

[110]
Uma lei não é cousa que se ponha de banda pela simples razão de uma infracção tão insignificante; o que é indispensável é saber se essa lei é ou não constitucional.


Justamente—e o artigo não pretendia outra cousa. Ele não concedia poderes aos juízes para conhecerem do processo parlamentar que seguira a lei, em harmonia com o Regimento. O artigo apenas exigia que, no processo parlamentar, se seguissem os preceitos dos artigos já votados da Constituição, e que, como matéria constitucional, tinham de respeitar-se.

A mutilação que sofreu o artigo que significa pois? Que a Constituinte entendeu que os juizes não tinham poderes para conhecer se a lei na sua formação seguira um processo parlamentar conforme à Constituição? Não.

O artigo foi mutilado porque, por equívoco, se entendeu que ele ia colocar nas mãos dos juizes poderes para aferir a legitimidade do processo parlamentar seguido na formação da lei, não pelos artigos da Constituìção, mas pelos 177 artigos do Regimento, que é um simples acto de vontade da Câmara. E não era isso evidentemente o que ele queria.

A constitucionalidade de uma lei não se afere por um Regimento que, em quási todas as suas disposições, é apenas uma lei, e que, por si, nunca é uma lei constitucional. As palavras eliminadas [111] do artigo referiam-se unicamente à Constituìção. Fica assim provado que a sua mutilação não significou que a Constituinte reprovasse o principio, que se impõe porque é constitucional, de que os juizes, tendo de conhecer da validade da lei, devem conferir se, no processo parlamentar da sua formação, foram ou não seguidos os preceitos que a Constituição estabelece. Só depois de verificarem nesse ponto a conformidade da lei à Constituição teem que averiguar se, doutrinalmente, as suas disposições estão tambem conformes à lei constitucional.



A argumentação que desenvolvi, com um facto recentíssimo pode exemplificar-se. Pela renúncia colectiva de 16 senadores, apresentada em sessão do Senado de 5 de Janeiro de 1915, o número dos seus membros que, constitucionalmente, é de 71 desceu a 55. Ora a Constituìção, na segunda parte do art. 13.º, exige que as deliberações das duas Câmaras sejam tomadas estando presente a maioria absoluta dos seus membros, que, no caso do Senado, será o número de 37. Serão válidas as leis aprovadas no Senado por um número de votos inferior a êste? E deverá o juiz, se uma das partes lhe impugnar a validade de qualquer dessas leis, apreciar a sua constitucionalidade?

[112] Esta questão só a pode propôr quem entenda pela forma por que a expus a competência do juiz para conhecer àcêrca da constitucionalidade da lei. Não a figura, evidentemente, quem entenda que ele só tem que averiguar da conformidade doutrinal das disposições da lei ordinária em relação à lei constitucional, sendo incompetente para tudo mais.

A interpretação que dou ao art. 63.º acaba todavia de ser autorisada pela declaração que o juiz e deputado Caetano Gonçalves em sessão de 11 de Janeiro de 1915 enviou para a mesa da Câmara dos Deputados—e que me contento de reproduzir:



«Para a hipothese de ser impugnada perante o poder judicial, nos termos do artigo 63.º da Constituição, a validade das leis saidas do Congresso em contravenção da segunda alinea do artigo 13.º da mesma Constituíção, a que ainda nenhuma lei fixou interpretação ou sentido diverso d'aquelle pelo qual se entende que n'uma Camara de 164 deputados é de 83 a sua maioria absoluta, como em 71 senadores a mesma maioria não póde baixar de 37: desejo que na acta fique consignado que, emquanto pela forma prescripta na Constituìção outro entendimento não fôr dado á lei n'esse ponto, reservo o meu [113] voto no assumpto» (em A Capital de 11 de janeiro de 1915).



Se o juiz só tivesse poderes para conhecer da conformidade doutrinal da lei com a Constituìção—poderia alegar-se porventura a circunstância de faltar ao Senado a capacidade constitucional para fazer leis? Não. E, todavia, toda conforme com a doutrina que sustento, a declaração do deputado Caetano Gonçalves revela que pode em juizo fazer-se a arguição, e della terá que conhecer o juiz. Evidentemente.



20.—Por onde se afere a constitucionalidade da lei? Como?


Desde o momento em que, num feito submetido a juizo, alguma das partes impugne a validade da lei, há de o juiz apreciar se, de facto, a lei possue legitimidade constitucional. Por onde deve aferi-la?

Apezar de partir do princípio de considerar constitucional tudo e só o que nela se contivesse, a Constituìção não foi tão rigorosa como era necessário em ponto de tão grave alcance. Em três artigos ela emprega expressões diferentes, que teem forçosamente de considerar-se de sentido igual.

É assim que não podendo a lei ordinária atingir [114] os direitos e garantias individuais, depois de as haver enumerado no art. 3.º, a Constituìção diz que essa especificação não exclue outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma do govêrno que ela estabelece e dos princípios que consigna ou constam de outras leis.

No art. 63.º define que o juiz, uma vez impugnada a validade da lei, apreciará a sua legitimidade constitucional, e afere esta pela conformidade com a Constituìção e princípios nela consagrados. E no art. 80.º, tendo determinado que como lei ficam valendo as leis e decretos com força de lei até então existentes—põe essa validade dependente de explicita ou implicitamente não serem contrários ao systema de governo adoptado pela Constituição, e aos princípios n'ella consagrados.

Todas estas diferentes fórmulas podem e devem reduzir-se a uma só: o juiz, em face a uma lei, para apreciar a sua legitimidade constitucional, tem que aferi-la pela Constituìção e pelos princípios nela consagrados.

A lei viola realmente a Constituìção em qualquer das suas disposições? É inconstitucional, visto que são constitucionais todas as disposições da Constituìção.

A lei não viola expressamente uma disposição [115] constitucional, mas é declaradamente contrária aos princípios que a informam? Da mesma maneira carece de legitimidade constitucional.

Por quaisquer outros elementos terá ainda que verificar-se a constitucionalidade da lei? Não, embora os termos do art. 4.º, que o Prof. Dr. Marnoco e Sousa justamente critica, podessem à primeira vista fazer cuidar erradamente que a outras disposições havia ainda que satisfazer.

Esse art. 4.º indica que a especificação das garantias e direitos expressos na Constituìção «não exclue outras garantias e direitos não enumerados, mas resultante da fórma de governo que ella estabelece e dos princípios que consigna ou constam de outras leis».

Quererà isto dizer que, alem dos anteriores, outros direitos e garantias constitucionais há tambem? Não. Todos os direitos e garantias apontados nas demais leis conservam a sua natureza de direitos e garantias ordinárias. O serem simplesmente aludidas na Constituìção não lhes empresta natureza constitucional: constitucionais seriam por essa forma as leis de imprensa, de reunião e associação, de revisão de sentenças condenatórias, do habeas corpus, a lei eleitoral, o código administrativo, as leis de organisação das províncias ultramarinas, de responsabilidade [116] ministerial, organisação judiciária, acumulações de emprêgos públicos, de incompatibilidades políticas, etc.—porque todas veem aludidas na Constituìção.

Ora a verdade é que os direitos e garantias que constem apenas destas leis não podem considerar-se constitucionais—como muito bem o decidira já o Prof. Dr. Marnoco e Sousa.

Porque, «ou as garantias que constam de outras leis constituem matéria constitucional, mas nesse caso cahe-se no absurdo de considerar como Constitucionaes garantias estabelecidas pelas leis ordinarias, tornando-se difficil a reforma destas leis, ou taes garantias não constituem matéria constitucional e neste caso não se pode explicar a referencia que este artigo lhes faz, pois a Constituìção deve occupar-se unicamente de garantias constitucionaes» (Comentário, pág. 204-205). Evidentemente.

De resto, determinando-se a Constituinte pelo critério de só considerar constitucional o que ficasse na Constituìção, decerto que essa matéria não compreendia garantias e direitos que constam apenas de outras leis, e que o Congresso ordinário amanhã póde suprimir.

É verdade que a própria Constituìção em dada maneira corrige nos artt. 63.º e 80.º a redacção do art. 4.º, classificando como regras constitucionaes [117] apenas as fixadas na Constituìção ou que resultem dos seus princípios—deixando assim de lado outros quaisquer direitos e garantias apenas expressos nas leis ordinárias?

Melhor fôra todavia, como diz o ilustre comentador da Constituìção, que a elas não se houvesse aludido no artigo 4.º.

Depois da apreciação que se lhe impõe, e para que declare inconstitucional uma lei—deve o juiz constatar se ela é abertamente contrária a uma disposição expressa da Constituìção, ou se por uma fórma indubitável viola os princípios nela consagrados. O caracter constitucional de uma lei é, como expuz, apenas um ponto de vista político, mas não deixa de ser importantissimo. E é preciso que de facto a lei ordinária lhe seja caracterisadamente contrária, para que o juiz se decida a negar-lhe cumprimento por inconstitucional. Trata-se de uma competência nova: toda a vantagem está em não tornar demasiado hostil o seu desempenho.

Por outro lado, para que a inconstitucionalidade de uma lei seja decidida, só devem colher razões tiradas da doutrina da Constituìção. Pouco deverá importar ao tribunal alegar-se que determinada lei não deve cumprir-se por iníqua, por inútil, por inoportuna, por gravosa—se realmente contra ela não se alegar que viola preceitos constitucionaes [118] ou que é incompativel com os princípios na Constituìção consagrados.

É certo que ao Congresso compete fazer leis no intuito de «promover o bem geral da Nação»? Mas a conveniência ou inconveniência, a oportunidade ou inoportunidade da confecção de uma lei estão absolutamente fóra da competência dos tribunaes. Estes, interpretando a lei, podem averiguar que ela é inconstitucional, e então se negam a cumpri-la: mas não lhes cabe provêr aos males resultantes da lei, uma vez que ela não viole a Constituìção. Aos cidadãos cumpre, e só a eles, pelos melhores meios, conseguir que a lei seja revogada.

Refere Larnaude que, num processo intentado nos Estados Unidos da América do Norte perante a Supreme Court, um dos litigantes, para arguir de inconstitucional a lei aplicável, alegou que alguem havia comprado os membros do congresso para a votarem e que, por essa fórma, a lei devia ser anulada visto constituir um acto jurídico praticado com dolo ou fraude. Escusado será dizer que foi desatendido.

O juiz deve pois atender unicamente à Constituìção e aos seus princípios quando tiver de apreciar a constitucionalidade da lei ordinária. É duvidoso que esta haja violado aquele «estalão invariável» da legitimidade constitucional? Nesse [119] caso aplicará a lei—e com ela aplicará, sem dúvida, o espírito da Constituìção.


Vid. a comunicação já citada de Larnaude; Story, Commentaries, II, pág. 393; Cavalcanti, Regimen federativo e a republica brazileira, págs. 228 e seg.; Wilson, Le gouvernement congressionnel, trad. fr., págs. 29 e 43; Bryce, La république américaine, trad. fr., I, pág. 526 e seg.; Cooley, Constitutional limitations, pág. 195.



21.—A lei inconstitucional: a fórma e o objecto. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade.


Por que razões pode uma lei ser declarada inconstitucional? O critério já foi indicado: sempre que contrarie as disposições da Constituìção ou os princípios que nela se consagram. E quando sucederá assim?

Nas páginas anteriores expuz até que ponto entendo que os juizes podem conhecer da constitucionalidade da lei sempre que esta lhe fôr impugnada: o juiz deverá conhecer não só da conformidade doutrinal das disposições da lei ordinária com a Constituìção, mas tambêm sôbre se no processo da sua formação foram seguidos os respectivos preceitos constitucionaes. Daqui se deriva a inconstitucionalidade da lei em quanto ao objecto e em quanto à fórma.

Para que, quanto à fórma, a lei ordinária seja constitucionalmente válida e obrigue, torna-se primeiramente necessário que o seu órgão criador—normalmente, [120] as duas secções do Congresso—funccione nas condições constitucionalmente exigidas para que possa fazer leis. É assim que, se por acaso, no dia aliás marcado pela Constituìção, se reunisse a maioria absoluta dos deputados e a dos senadores, e sem prévia verificação e reconhecimento de poderes, discutissem e aprovassem providências—as deliberações provindas dessas assembleias não poderiam ser consideradas genuinamente, constitucionalmente, como leis.

Verificadas mesmo as condições constitucionaes em que o Congresso pode fazer leis—para que elas obriguem torna-se necessário que, no processo da sua formação, se tenham observado todas as disposições constitucionaes que a êle se referem. Por isso entendo que não obrigaria uma lei que criasse um imposto se a sua discussão houvesse tido começo no Senado.



Como pode uma lei ordinária ser inconstitucional quanto ao seu objecto? Desde o momento em que as suas disposições violem alguma das disposições constitucionaes ou repugnem declaradamente aos princípios que a Constituìção consagra.

Partindo deste critério, poderão promenorisar-se alguns caracteres da lei inconstitucional? Podem.

[121] A Constituìção, umas vezes, enuncia princípios sem todavia figurar as leis ordinárias que a eles tenham porventura de conformar-se. É o que se verifica nos artt. 1.º, 2.º, 5.º e tantos outros. Uma vez feita, porêm, pelo Congresso, qualquer lei manifestamente contrária a esses preceitos, a lei deverá considerar-se inconstitucional.

Mas, na maioria dos casos, a Constituìção não procede por essa forma, e tem em espírito, prevê as leis orgânicas que, a ela conformes, a hão de desinvolver e completar. São as hipóteses figuradas em quasi todos os números do art. 3.º, e nos artt. 8.º, § único, 57.º, 60.º, 66.º, 67.º e outros mais. Qualquer das leis aí previstas, se pelo Congresso ordinário fôr feita sem que as suas disposições sejam conformes a esses caracteres constitucionaes que a Constituìção lhes impõe, será, evidentemente, inconstitucionaes.

Á primeira vista poderia cuidar-se que havia a distinguir ainda—visto que, umas vezes, a Constituìção define positivamente os pontos por que há de orientar-se a lei prevista, e noutros casos caracterisa esta por uma forma negativa, proíbindo-lhe que se guie por critérios determinados. Assim usa a primeira forma quando, antes de no art. 85.º ter incumbido ao primeiro Congresso da República a elaboração de uma lei sôbre os crimes de responsabilidade, no art. 55.º [122] enumerara quaes as categorias de actos do poder executivo e dos seus agentes que como taes devem ser classificados—e a segunda fórma emprega no art. 66.º quando determina que na futura lei de organisação e atribuìções dos corpos administrativos o poder executivo não terá ingerência na sua vida.

Mas não vale a pena descriminar: inconstitucional será a lei ordinária, prevista na Constituìção, sempre que se não conforme aos caracteres constitucionaes que ela lhe fixa para base, sejam eles indicados por uma imposição positiva, seja por uma defêsa proibitiva.

Em qualquer caso, a lei não será conforme à Constituìção nem aos princípios que esta consagra—e tão inconstitucional será portanto a lei orgânica do poder judicial que não tome por base a natureza vitalícia e inamovivel dos juizes, como a lei de organisação e atribuìções dos corpos administrativos que, de qualquer maneira, autorisasse a mais leve ingerência do executivo na vida desses corpos.

Uma vez reconhecido pelo juiz que a lei, ou alguma das suas disposições, não é conforme à Constituìção, qual o efeito desse reconhecimento? Os efeitos limitam-se ao juiz afasta-la, negando-lhe cumprimento. No conflito entre a lei ordinária e a lei constitucional prevalece a mais forte, e a [123] lei mais forte é, por definição, a lei constitucional.

O juiz não terá portanto a declarar que a lei a ninguem obriga, ou que ninguem deve por isso obedecer-lhe ou cumpri-la. O juiz não se constitue censor, de uma forma geral, da obra do Congresso, nem tem que alargar o alcance da competência que lhe é atribuida. O juiz limita-se a declarar que, tendo reconhecido a inconstitucionalidade da lei, a não cumprirá naquele caso que lhe foi submetido a juizo. A lei é má, a lei é pessima? Cuidem os cidadãos de a modificar, em nome da ordem política, pelos meios jurídicos ao seu alcance. O juiz apenas decide que a lei não é aplicável à hipótese que lhe foi proposta.

Se amanhã lhe fôr proposto um novo caso em que pela mesma fórma se alegue a inconstitucionalidade da mesma lei—o juiz terá de novo de apreciar a conformidade desta com a Constituìção e os princípios nela consagrados, e sem essa apreciação não poderá limitar-se a declarar que tal lei ou disposição de lei já foi reconhecida como inconstitucional.

Não se receie como apoucada esta competência dos juizes—nem se receie a incerteza ou diversidade das decisões. Cumprindo os juizes strictamente a sua missão, não declarando inconstitu-* ——-File: 131.png—-\————— *cional a lei se não quando realmente ela repugne à Constituìção ou aos seus princípios—bastará que, num caso, o juiz mais obscuro da mais humilde comarca se negue a cumpri-la, para que o artigo da lei ou a lei inteira cáia imediatamente na impotência. Por meu entender, nem sequer o Congresso teria, na primeira legislatura que se reunisse, de revogar motu proprio a disposição ou a lei que a opinião dos tribunaes superiores houvesse reconhecido inconstitucional—como se usa nos Estados Unidos da América do Norte. Bastára que os juizes lhe negassem cumprimento, para que, como princípio assente se reputasse que, dora avante, não obrigava.

Tudo deve inclinar-nos a desejar que, em direito público tambêm, os princípios se informem mais da jurisprudência, dos costumes e tradições constitucionaes, que da boa ou má vontade dos Parlamentos, tão naturalmente voluveis nas suas práticas e nos seus impulsos. Mais feliz do que todos será o povo cujos governantes respeitem não só a lei constitucional, mas essa outra Constituìção que à roda dela se cria e coalha. Tanto seria para desejar em Portugal—e essa aspiração me guiou, página por página, atravez de todo o meu trabalho.



INDICE




Pag.

Introito 1-2


CAPÍTULO I



Brevissima notícia da noção de Leis Fundamentais até à implantação do regimen constitucional 3-38
1.
A noção da lei fundamental desde o começo da Monarquia até à Restauração. 3-7
2.
Necessária conformidade das novas leis ao direito do reino. O Chanceler mór do reino. 7-8
3.
As leis contra o direito do reino. O direito de representação das côrtes 9-10
4.
A noção comum da lei fundamental nos teóricos da Restauração. As doutrinas da soberania popular. O conceito de pacto. 10-15
5.
O pacto e o rei. O rei não pode alterar o govêrno da república. 15-22
7.
A noção da lei fundamental nas côrtes de Lisboa de 1679 e 1697. 22-24
8.
A noção da lei fundamental na era pombalina. Seu objecto, sua forma. O Principe «faz as Leis e as deroga quando bem lhe parece». Não há contra os reis «mais recurso que o do sofrimento». 25-32
9.
Era de crise: o conflicto entre nós. Paschoal de Mello e Antonio Ribeiro dos Santos como figuras representativos das ideias monarquicas e das ideias democráticas. O conceito das leis fundamentais. Sua forma e objecto. 1820—O constitucionalismo. 32-38


CAPÍTULO II



A Monarquia Constitucional. Leis Constitucionais e Leis Inconstitucionais 39-64
10.
A revolução francesa e o movimento constitucional no continente europeu. 39-43
11.
O movimento constitucional entre nós. O significado de Constituìção. 43-47
12.
O problema da inconstitucionalidade das leis perante a Constituìção de 1822, a Carta e a Constituìção de 1838. Um caso curioso da história política portuguesa. 47-53
13.
A defesa da Constituìção contra o poder executivo e contra o poder legislativo. O poder judicial e a inconstitucionalidade das leis. As opiniões entre nós, anteriormente e posteriormente à proposta de reforma constitucional de 1900. Conclusões. 54-64


CAPÍTULO III



O problema da inconstitucionalidade das leis em face à actual Constituìção política da República 65-124
14.
O problema pode colocar-se na Constituìção actual? A distinção entre lei constitucional e a lei ordinária. Deve admitir-se? Qual o significado que deve dar-se a essa distinção?
65-76
15.
Como distingue a Constituìção as leis ordinárias da lei constitucional? É matéria constitucional tudo o que está na Constituição. 76-80
16.
A Constituìção admite disposições de caracter supra-constitucional e outras que impõem restrições de prazo para a sua revisão. Sua legitimidade sob o ponto de vista político e jurídico. 80-94
17.
A distinção entre a lei constitucional e as leis ordinárias: como é sancionada. Os juizes competentes para conhecerem da constitucionalidade das leis: quando? A actual Constituição. 95-101
18.
O que deve entender-se por constitucionalidade da lei? Sentido lato e sentido restrito. A validade e a constitucionalidade. Em que extensão deve conhecer o juiz. A opinião do Prof. Dr. José Alberto dos Reis e do juiz Francisco José de Medeiros. A opinião que defendo. 101-105
19. O problema anterior em face à Constituição actual. Os juizes só conhecem da constitucionalidade em sentido restrito? Não. Conhecem tambem das condições constitucionais do processo de formação da lei. 105-113
20. Por onde se afere a constitucionalidade da lei? Como? 113-118
21. A lei inconstitucional: a forma e o objecto. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 119-124





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:



Original
Correcção
#pág. x uma uma condição ... uma condição
#pág. 16 ultilidade ... utilidade
#pág. 46 a próprio absolutismo ... o próprio absolutismo
#pág. 47 allerações ... alterações
#pág. 47 constitucionalidade ... inconstitucionalidade(*)
#pág. 47 constituições ... Constituições(*)
#pág. 48 E se, ... E, se(*)
#pág. 48 constitcional ... constitucional
#pág. 48 derogrr ... derogar
#pág. 54 constitucionalidade ... inconstitucionalidade(*)
#pág. 80 Constuìção ... Constituìção
#pág. 85 disposicões ... disposições
#pág. 86 seguer ... sequer
#pág. 101 inconstitucionali- da ... inconstitucionalidade da
#pág. 103 promnlgada ... promulgada
#pág. 109 veririficar ... verificar


(*) Correcções efectuadas com base na errada da obra original.

Existe efectivamente a ausência do capítulo 6 no original e a referência do facto
na errata. Decidimos manter a mesma númeração, respeitando o original.







End of the Project Gutenberg EBook of Ensaio sobre a inconstitucionalidade
das leis no direito português, by João Maria Tello de Magalhães Collaço

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