Nota de editor:
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quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Mar. 2008)
DO MESMO AUTOR
I |
― |
O Barão de Lavos,
romance, 4.ª edição, 1 vol. br. |
II |
― |
O Livro de Alda, romance, 1 vol.
br. |
III |
― |
Amanhã, romance do
proletariado, 2.ª edição, 1 vol. br. |
IV |
― |
Fatal dilema, romance,
2.ª
edição, 1 vol. br. |
V |
― |
Próspero Fortuna,
romance, 2.ª edição, 1 vol. br. |
Sem remédio...,
romance,
1 vol. br.
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Amor crioulo, 2.ª
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ABEL BOTELHO
Amor crioulo
(vida argentina)
novela
Ahi està, si, magnifica, opulenta,
La codiciada tierra...
Guido
y
Spano.
segunda edição
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
de LÉLO &
IRMÃO, L.da―editores
rua das carmelitas, 144
Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa-Paris
1921
A propriedade
literária e artística
está garantida em todos os
países que aderiram à
convenção de Berne―(Em Portugal,
pela lei de 18 de Março de 1911. No Brasil pela
lei n.º 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.)
propriedade
absoluta dos editores
Porto―Companhia Nacional
Tipográfica
AO DOUTOR
BRITO CAMACHO
AMOR CRIOULO
I
Naquela tarde mormacenta de fevereiro, João
da Silveira embarcára em Lisboa, no
Almería,
com róta à America do Sul. Considerava-se
um sem-pátria, agora, na sua bôa e
amorável
terra, sôbre cujo manso e carinhoso seio não
fumegavam senão escombros; terra perdida e
maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de
Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada
criminosamente ao seu destino. Todo o
ambiente tradicional em que havia sido criado,
êste parasitário rebento do vélho
regímen vira-o
derruir de roda de si com estrondo. Crenças,
privilégios, isenções, benesses e
preferências,
tôda essa contrafeita armadura de iniqùidade
e obscurantismo que sustinha ainda de pé a
combalida ficção monárquica, tudo
rolára desfeito,
num epilepsiado arranco, numa comoção
formidável, enquanto invadia ferozmente o espaço
em tôrno um caótico fumo de confusão e
[8]
de treva... e a visão inquieta do futuro envôlta
num tôrvo mistério, como um polvoréu
de ruína.
Tudo lhe havia quitado descaroávelmente
esta estúpida idéa da Rèpublica: os
cincoenta
mil reisitos que êle, mensalmente, ia ou mandava
com tôda a pontualidade receber, a título
dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito
Público; as bôas graças da sua
apetecida
noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês
e pelo pai abominávelmente educada, a qual
agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava
tambêm de papo; e até,―o seu pensamento
hipócrita rematava,―e até as nobres, as
suavíssimas côres da bandeira de seus
avós, êsse
azul calmo e êsse branco ingénuo,
símbolo irrefragável
da alma nacional, ora via suplantadas
por um vermelho de açougue e um verde de
curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas
côres
ásperas, irritantes, heréticas, como punhais,
como blasfémias.
Durante os primeiros meses da Rèpublica,
João da Silveira, como tantos outros, conspirou.
Aquecia-lhe a alma êste vago
sebastianismo
solapado no íntimo de todo o bom português,
acicatava-lhe o desejo a gulosa lembrança
daqueles magros cobres orçamentais que,
somados ao activo do seu escasso património,
lhe serviam a governar sofrivelmente a vida.
Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo
regímen, concorriam simultâneos a alma e o
estômago, uma predilecção ancestral e
um instinto
[9]
devorista. E foi certamente esta dualidade
antinómica de inspirações que, embora
visando
ambas o mesmo fim, cardou a sua actuação de
conspirador de todo o carácter excessivo. Porque
êste cauto Silveira firmou várias
adesões
e compromissos, fez nutrida propaganda verbal
entre os rústicos, prontificou-se a recrutar gente,
enviou mesmo algum dinheiro; mas sem arriscar-se
nunca pessoalmente no campo da luta
militante. Após a frustrada incursão de Chaves,
não quis mais. Os seus 40 anos previsores e
calculistas haviam grado em grado esmoitado,
na gafa estrutura moral dêste malogrado d'Artagnan,
o espírito de aventura. Vendeu a
sua
reputada vinha do Pinhão, arrendou a linda
quinta da Folgosa com o solar «de sete capelas»,
seu fidalgo berço natal e residência muito
em conta quando em apuros de dinheiro; à
noiva escreveu «que a sua dignidade, em briga
com o seu amor, o forçava àquele
exílio doloroso»;
e aí o temos agora dobrado com indolência
sôbre a amura do
Almería em marcha,
vergado o busto, as mãos pendentes ao abandôno,
evitando olhar o manso deslise da cidade
donde sentia que lhe vinha um frio vento de
repulsa, com as pálpebras froixas seguindo, em
baixo, o rasgar da prôa pela limosa torrente
caudal do rio, e os lábios vorazes vagamente
encrespados na voluptuosa antevisão do Desconhecido.
Primogénito dos três filhos dos Silveiras
Lôbo, de Mosteirô, o pequeno João
fôra criado
[10]
com tôdas as mimadas preferências e tôda
a
jactanciosa despreocupação dos antigos morgados.
Todos os perniciosos desvíos lhe havia
consentido o dissolvente meio familiar e êste
odioso prejuízo educativo, todos: desde o achincalho,
o abandôno burlão dos mestres, até ao
abuso feudal das raparigas. Daí que, resultando
uma organização inadaptável ao
trabalho e um
carácter voluntarioso e cego, o Silveira havia
consumido o melhor da sua vida ou bambochando
em saborosas sensualidades, ou luzindo
em bárbaras pimponices, porêm um mísero
hóspede sempre da pura emoção, sempre
refractário
às reacções da alquimia ideal do
sentimento.
Alto, forte, moreno, com uns negros
olhos dominadores e uma estrutura apolínea,
entretanto no seu belo rosto varonil espatinava-se
a tinta de vulgaridade que imprime às
fisionomias de hoje a dureza, a ausência do
sentir. Pronto sempre e álerte ao galanteio, à
volúpia, à brutalidade, ao prazer, nunca
até
àquele momento se sentira capaz duma paixão
que o arrancasse a si mesmo, que montasse o
seu egoísmo e as suas ambições
tacanhas, que
lhe pusesse asas na vontade e lhe espiritualizasse
o desejo. Nutria um tédio altaneiro pelos
aspectos triviais da vida,―êste tédio que
é o
triste apanágio das almas sem vôo, dos
corações
vazios. Jàmais consentira intimidades e votava,
pelo geral, aos homens um desdêm cortês,
às
coisas uma indiferença amável. Podia ser assim
na medida do seu critério material, o mais feliz
[11]dos homens, de vida
rolando e fluindo suavemente
como um exercício de patinagem, se não
tivera a furuncular-lhe, como uma fatalidade
ancestral, a crôsta da alma empedernida, o culto
ardoroso, despótico, incessante, bárbaro, da
mulher.
Era êste o flanco vulnerável do seu
eu, o
único ponto em brecha naquele carácter dominador
e altivo. Abstenção feita da
condição, da
raça e da moral, o alarmante
odor di
femina,
fôsse urbano ou rústico, fidalgo ou plebeu, negro,
amarelo ou branco, amolecia-o. Posta em
conflito com o perturbador mistério feminino, a
sua melindrosa sensibilidade capitulava, cedendo
a um vício de receptibidade extrema que se traduzia
na falta absoluta de energia.
Nem por isso o nosso herói consentira nunca
em descer aos atormentados abismos da paixão,
ou se deixára enlear no labirinto vêsgo da
loucura.
Mal aflorava com o desdenhoso lábio o
mel turvo do prazer, saltitando despreocupado
dum amor a outro amor,―epidérmicos todos,
breves, fugazes, como frutos apenas mordidos
e logo deitados fóra. Era de ordinário a
vulgaridade
do instinto que o dirigia, arrastando-o
não raro a scenas ridículas; mas já
tambêm,
uma que outra vez, a virtude suprema da emoção,
transfigurando-o, o erguera a desgarradas
alucinações de artista. Nesses altos, raros
momentos
de libertação êle sofrera, numa
atónita
inconsciência, o puro domínio da Beleza. E
agora mesmo, nesta sua voluntária demanda da
Solidão, neste atoado caminhar para o Infinito,
[12]
sem o amparo duma doce mulherita ao lado, o
Silveira sentia o coração árido e
triste como o
ardido leito duma torrente sem água... Tremeu
um instante, como no terror mortal de ir transpôr
o vácuo, e sacudiu-o um confrangido
alvorôço,
uma como que compaixão de si mesmo,
que o fez aprumar-se, esperto, na amurada, erguendo
os inquietos olhos ao espaço, por onde
lhe parecera ouvir bater um esparrôdo incerto
de asas, e depois, com as pálpebras húmidas
num ensopamento de ternura, querendo reter o
perfil indeciso da cidade que lhe fugia, na magoada
luz do crepúsculo, envôlta em lívidas
musselinas de mistério.
Para onde ia êle? que ignorados destinos
o aguardavam lá longe, nesse novo grande
mundo, para êle um enigma, e onde tudo era
colossal,―o progresso e a barbárie, a miséria
e a riqueza?... Interrogações que naturalmente
lhe acudiam e vinham, freqùentes, cocegar-lhe
a inculta mas viva inteligência. Vagamente sentia
que o homem que viaja aumenta sempre e a
cada momento enriquece a sua bagagem impressionista
interior, a qual, bago a bago, se vai
então enceleirando, como um precioso tesouro
sentimental, no arcão das íntimas
recordações,
das lembranças carinhosas. Cada povo, cada
ambiente, cada país, cada raça deixam
aí a sua
marca indelével, e essas pitorescas
estratificações
são outras tantas parcelas novas que veem somar-se
à história da nossa vida, despertando-nos
cordas inéditas no sentir ou alargando a
latitude
[13]
moral da experiência. Não eram estas coisas
postas bem a claro nem sentidas nítidamente
pela insuficiência mental de João da Silveira;
nítidamente, contudo, êle sabia,―isto sim!―ser
a América do Sul terra «de lindas
mulheres»;
e o relâmpago desta promessa acirrante fazia-lhe
o passo leve, encrespava-lhe a medula e acendia-lhe
o desejo. Depois, havia ainda que ver
os seus sócios de viagem, havia que observar e
indagar quem, quanta e que qualidade de gente
vinha ali a bordo com êle. Sem que soubesse
explicar-se bem porquê, tomava-o êste antecipado
encanto dos conhecimentos adquiridos em
viagem, breves contactos de almas volitando
ligeiras entre os dois infinitos do céo e do mar,
qualquer coisa de adorávelmente vago, de efémero
e profundo ao mesmo tempo. São como
que brisas do sentimento: se não prendem o
coração tonificam a alma.
Os primeiros dois dias de viagem, té à Madeira,
foram maus. Tempestade constante. Aquele
primeiro mormaço ameaçador engrossára
e fechára
té disparar na trágica violência dum
temporal
desfeito. A chuva, a cerração, o mar
revôlto
e o sudoeste rijo, soprando contrário, atrasavam
o barco e com êle jogavam perdidamente, sacudindo
o transatlântico em rijas convulsões que
reduziam a arrogância industrial do seu poderoso
arcaboiço a proporções
irrisórias. Nada estava
[14]
seguro, pairava-se indeciso na comoção e na
treva. De quando em quando, varria de lés a lés
a embarcação uma ráfaga mais intensa,
e tudo
então a bordo dançava, estalava, tiritava e
gemia,
no estrangulamento brutal da garra do Desconhecido.
Grupos descalços de marinheiros, trotando
rápidos, faziam, aqui, ali, a sua
aparição
fantástica, cerrando escotilhas, aprontando escaleres,
correndo presto a manobra. E agora, a
intervalos, na opacidade da noite como tinta,
acima do ranger do cavername do monstro e do
rugir cavo das águas, por sôbre tôda
essa brava
orquestração da Morte roncava e erguia-se
alarmante
o grosso apitar da máquina em desespêro.
E era como se não houvesse viv'alma ali
dentro. A ninguêm era permitido estacionar
nos salões, no
bar ou nas
cobertas; mas de
horas antes que perante a ameaçadora fúria
do vendaval, poucos se sentiam em segurança,
e daí que uns pelo enjôo, outros pelo terror,
outros por méra prudência, tudo, na timorata
demanda do seu beliche, fôra sucessivamente
desertando. João da Silveira, tomado dum
indefinível
mal-estar, com a cabeça como chumbo,
descera tambêm ao seu camarote, que era situado
num dos extremos do barco, formando
esquina, junto à prôa. Tinha uma ventanilha
sôbre o mar e outra sôbre aquele ângulo
avançado
da coberta, descobrindo assim um trecho
dessa renovação iníqua das
galés, essa enorme
grilheta ambulante, onde, sob um miserável
[15]
tôldo, à intempérie, ao
abandôno, no mais absoluto
desamparo, na mais sórdida promiscuidade,
num baralhamento ignóbil de idades, de sexos
e de raças, rolando ao áspero sabor da tormenta,
como lastro, como calhaus, como lôdo, como
viva espuma, seguiam, empilhados a monte, os
passageiros de 3.ª classe. Foi a primeira sorte
de gente que, a bordo, se lhe antolhou ver mais
de perto; tinha agora ali assim, ao alcance
inevitável, próximo da
atenção, misérias, tristezas,
espantos, dores que até ao momento êle
arredára sempre com dureza do seu
coração, de
ordinário avesso à piedade. Agora tinha que
forçosamente senti-las, ouvia-lhes o singelo relato
das suas penas e angústias, chegavam-lhe
lamuriados protestos, tímidos gritos de rebelião,
surdas frases doloridas; começava a interessá-lo
o aspecto resignado, humilde, sofredor
daquelas rôtas máscaras de agonia, vinha-lhe
o fartum nauseabundo da comida que lhes serviam;
e durante a sua primeira noite de mar,
noite de pesadelo, noite de insónia, noite de
incomportável pavor, em que a madorna do
cansaço lhe era a cada momento posta em
sobressalto pelo súbito martelar dos mais estranhos
ruídos,―o ferrolhar brusco de cremalheiras,
silvos raspantes de cordagens, choques
brancos de metais, ringidos como rasgões, estalidos
como pragas,―quem, neste poema de
extermínio, dava ainda a nota mais sinistramente
aguda, era essa atormentada frandulagem
humana, quando, sôbre o convés encharcado
[16]
rojados à mistura, os seus altos gemidos
em súplica rasgavam ululantes o espaço, formando
um concertante macabro com o alarído
bárbaro da tormenta.
Quando o
Almería
conseguiu por fim fundear,
frente à Madeira, a caligem persistente
no céu, as grossas cordas de água e as vagas
alterosas não permitiam fácil às
pequenas embarcações
acercarem-se do paquete, e furtavam
arreliativamente à contemplação do
Silveira a
maravilha habitual dêsse scenário
paradisíaco,―o
amoroso encanto da luz, a aragem perfumada
do ambiente, a graça ingénua das
construções,
o azul translúcido das águas, a esmeraldina
frescura, o contôrno sensual daquele
monte atrevido de colinas salpicadas de claras
harmonias, o deslumbramento sem par e a
euritmía incomparável dêsse atrevido
anfiteatro
pagão, único no mundo, apenas agora entrevisto
pelos claros farpados na neblina, como
através um entremeio de renda. Entretanto,
bôjo acima da pequena cidade flutuante, os
vários
decks
começavam a animar-se; de tôda
a parte surdiam lindos rostitos timoratos, cautelosos
bustos, ou enérgicos perfís, duras e
arrogantes linhas masculinas, incrédulos ainda,
ávidos, curiosos, abertos numa cantante expressão
de alívio ou movidos numa alegre
inquirição
de interêsse; miravam-se solícitos, acercavam-se
efusivos e palreiros, formando vivos
grupos de acaso, intromiscando-se, reconhecendo-se,
beijando-se; no salão aparatoso da 1.ª
[17]
classe, todo em
boiseries e estofos,
os compassos
da orquestra espraiavam-se em molhadas ressonâncias;
no extremo oposto, pela grossa atmosfera
heteroclita do
bar, as
rôlhas do Champagne
saltavam, preludiando estúrdiamente o distanciar
do perigo. Mas o Silveira, de fito sempre
ao largo, não cessava de considerar o deslumbramento
panorâmico da ilha; e então viu como
de roda do grande barco, arfante ainda e a
escorrer, sôbre a juba crespa e revôlta do mar,
dezenas de lanchas bailavam doidamente, em
riscos de, num choque mais violento, se estilhaçarem
contra o colosso, na impossibilidade
duma aproximação tranqùila. E notou
que
vinham atulhadas de emigrantes, outros tantos
míseros foragidos como aqueles seus tristes
vizinhos de bordo, uns centos mais de desgraçados
que iam ser pasto da voragem insaciável
dessas regiões intérminas onde fulgura o mito
precário da riqueza; protéico enxurro humano,
encarnação polimorfa da desgraça na
demanda
hipotética da fortuna. Eram carne votada à
gleba, vítimas forçadas da iniqùidade
económica,
a quem nem por isso o duro mercantilismo
reconhecia a importância do seu valor,
como utilidade social. Eram lágrimas que vão
trocar-se em pérolas, vidas heróicas que
vão
fundir-se em oiro, e que, não obstante, são
tidas por nada por aqueles mesmos para quem
o seu descraziante esfôrço é tudo. Eram
almas
tratadas como coisas, e que ali em baixo esperavam
transidas, no mar em cólera, sob a chuva,
[18]
que os içassem como fardos miúdos, como valores
mercantís, como bagatelas, como bugiarías,
como sucata, por uma corda. A operação era
primitiva: atados em pequenos molhos por um
grosso cabo, sem escolha, não importa como nem
por onde, lá vão subindo em cachos, escorrendo
água, atoadamente, morosamente,―as mães com
os filhitos a dôrso, chorando, agitando no espaço
as mãos como vermes; os vélhos pendendo
resignados
na frouxidão da impotência; os moços
ganhando distância em arrancadas simiescas, e
todos numa ansiada alternância movendo os
olhos pávidos entre a promissora segurança do
navio, ao alto, e em baixo a fúria glauca do
abismo.
Passada, porêm, a Madeira, o tempo amainára,
e agora, enquanto a dupla hélice do
Almería
fazia o seu arroteio manso de espuma,
pela imensidade movediça do oceano o espelhamento
límpido do céu prolongava-se, águas
adentro, em opalinas suavidades, em claridades
duma transparência infinita. Como
conseqùência,
a bordo restabelecia-se a tranqùilidade e pelas
diferentes cobertas a mancha buliçosa e a sonora
chalra dos viajeiros alastravam, cruzavam-se, demandavam-se
e cresciam numa algarada cantante
de alegria. Á hora de comer, já noite,
João da
Silveira baixou, entre os primeiros, a ocupar o
logar de acaso que lhe haviam indicado e êle
aceitára dócilmente, no seu altaneiro
desdêm por
aquela camaradagem fortuita de gentes vindas
não sabia bem donde e destinadas a desvanecer-se
[19]
pronto, finda a viagem, no distanciamento
vago da indiferença. Era o único logar que havia
ainda vago, numa pequena mesa para cinco talheres.
Sentou-se. Até àquele momento, mal havia
tido ocasião de encarar os outros comensais,
abotoados naturalmente na constrangida reserva
em que se nos fecha de ordinário a expressão,
à visinhança de estranhos; porêm, agora
começava
a vê-los sob um novo aspecto, voltava cada
um aos seus gestos habituais, mutuavam-se olhares
de confiante inquirição, saùdavam-se
efusivos,
seguros, contentes. Fizera-os comunicativos a
simultânea vibração do perigo.
Á direita tinha o
Silveira um curioso espanhol, abundante, palreiro,
grosso tipo de homem roçando pelos 50 anos,
calvo, vermelhaço, grandes dentes ralos nos
grossos lábios gretados e rôxos, a barba grisalha
curta e mal cuidada. Vestia com vulgaridade, e
na lapela usada do
smoking ostentava
a roseta
de Isabel a Católica, sofrívelmente suja.
Á esquerda
ia um italiano, já entrado em anos tambêm,
ponderado, gordote, a papugem flácida das
olheiras denunciando um grande
viveur, a pele
rosada e fina passada de cosméticos, um ar
importante, as mãos muito cuidadas. Seguia
depois um joven chileno, irrequieto, pomposo,
farta cabeleira revôlta pastichando a indumenta
cerebral dum génio, um colarinho mole
inverosímil,
os olhos negros e ardentes como carbúnculos,
os dedos como que modelando incansavelmente
no espaço abstrusas, incompreendidas
formas, O quarto comensal era um puro
gentleman,
[20]
de finas maneiras, olhar
inteligente e doce,
um riço buço incipiente sôbre a lisa
cútis morena
penujando, e uma linha geral atraente, correcta,
comedida.
―Rijo temporal, hein?―comentava com
vivacidade, sacudindo a cabeça, o espanhol,
quando o Silveira tomou logar à mesa.
―Foi de respeito!―acentou pronto o chileno.
―Não acha?―tornou o primeiro interpelante,
adiantando com intimativa o busto para o
italiano, que se limitou a baixar a cabeça num
tácito assentimento.
O joven brasileirito julgou oportuno corrigir:
―Foi forte, sim... ah! mas não se compara
com as borrascas da Biscaia ou da Mancha.
Ao que, num abundôso gesto de
desaprovação,
o espanhol, agitando o guardanapo:
―Não, isso lá... O meu caro marinheiro,
bem sei que é homem da profissão...
desculpará,
mas não estamos de acôrdo. Então, eu
não sei?―E em tom convincente para o grupo:―Olhem
que foi um passo... um passo
de
ponersele à uno los dientes de vara y
média!
―Mas, parece que não houve desastres a
bordo?―aventurou quáse maquinalmente o
Silveira.
E logo o outro, tranquilizador, dogmático:
―Ah! não senhor. Nada! Nem
desperfectos
nem doenças. É um grande barco êste.
Acabo
de o assegurar ao comandante, que deposita
[21]
em mim tôda a confiança. Ah, lá
isso...―E,
num risinho envaidecido, atestou:―Amigos
vélhos!
―Contudo, aquela pobre gente da 3.ª classe...
O
soi-disant íntimo do
comandante teve um
desprezível encolher de ombros:
―Ah, sim, naturalmente... alguns
resfrios.
Mas eu já por lá andei. Que o comandante,
já
digo, para estas coisas não quére outro... Pois
não há nada, não... Vão
tomar musgo e leite.
Una jugadita pasajera, no
más.
O caso foi que a familiaridade banal desta
aresta de diálogo determinou um começo de
conciliação do Silveira com o ambiente.
Êle
passeava agora distraídamente os olhos pela trivialidade
cosmopolita do recinto,―êsse vasto
quadrilongo sussurrante e refulgente, todo em
branco e oiro, com os seus colunelos tarracos,
os metais scintilantes das vigías dos flancos, o
tilintído límpido dos cristais e
loiças, e,―constatava
com orgulho,―as lusas caravelas simbólicas
pinturiladas com arrogância nos luxuosos
vitrais do teto. Interessava-o o ambiente
e atraíam-no as figuras. E com os seus eventuais
companheiros de comida, agora, numa
saborida mutuação de impressões, ia
travando
gradualmente conhecimento.―O espanhol, dr.
Contreras, era médico, pelos modos: um pobre
diabo espalhafatoso e inofensivo... quando não
exercia a profissão, e em quem a arrogância
dispersiva da figura buscava caridosamente iludir
[22]
a inércia tacanha do intelecto. Parece que o
seu govêrno, para se descartar dum importuno
e juntamente evitar ao país o aumento na cifra
da mortalidade, o comissionára
in
perpetuum
para seguir estudando as condições de sanidade
a bordo dos grandes transatlânticos. Um pretexto
inocente e a missão mais a carácter para
êste
pobre Esculápio
à
rebours, cuja educação
profissional
cristalizára na terapêutica obnóxia dos
purgantes e das sangrias. Norberto Mackenna,
o joven chileno, era um pintor cubista que ao
seu país tornava, após 4 anos de regalona vida
em Paris, sectário
enragé de Picasso e
grande
devorador de azeitonas. O moço brasileiro era
o tenente da marinha Euclides Pereira, que ia
matrimoniar-se a S. Paulo, de regresso tambêm
duma viagem oficial de estudo. O italiano, finalmente,
êsse dizia-se marquês e da mais alta
estirpe. Descendia dos Colonna di Mafiori, e em
lances sucessivos de azar desbaratára ao jôgo o
melhor da sua fortuna. Esta maldita obsessão
desfolhára e deixára totalmente a nu, de
prosápia
e de oiro, o seu frondoso e arcaico talo
genealógico, abatido agora burguêsmente ao
mercenário ofício de balcão. Porque o
marquês
ia a Buenos-Aires negociar em alfombras. E dizia
estas displicentes coisas numa resignada bonomia,
com clara singeleza, com altivez, quáse com
brio, mirando as unhas; e imobilizava-se em atitudes
de dignidade distraída ante a natural incidência
da atenção alheia.
Com o brasileiro seguiu o Silveira, no ascensor,
[23]
ao salão da 1.ª classe, pronto irmanados os
dois nesta instintiva aproximação em que os
prendiam identidades seculares de língua e de
raça. Em cima, o recinto estava pleno da mais
variada gente, e havia o confiante abandôno
familiar dos estômagos contentes. Ás curiosas,
inquirições do Silveira mal podia o tenente
Euclides,
tam hóspede ali como êle, cabalmente
responder, limitando-se quáse a informá-lo
sôbre
o que sabia das famílias suas compatriotas. E é
que estas não só abundavam ali, como
tambêm,
com a sua vivacidade despretenciosa e a sua
bonachona loqùacidade, davam a nota dominante.
Norte-americanos, e ingleses―êles e elas,―mal
avançavam, um instante, pelas portas laterais,
as cabeças arrogantes e logo partiam, por
um momento desviados na sua desportiva tarefa
de fazer indefinidamente o circuìto do barco, em
largas e sólidas passadas. Havia chilridos, cantos,
vôos, jogos inocentes de crianças; implicativos
snobs que continuavam a
imperturbável leitura
trazida, sem intervalo, do comedor, forrados
agora na apática moleza dum
fauteuil, cruzando
as pernas; e ao lado duma aparatosa francesa, de
cabelo duvidosamente loiro e traje não menos
equívoco, um derrancado vélho sonoleava.
Mas o Silveira, que se dirigia a Buenos-Aires,
buscava de preferência exemplares argentinos;
queria verificar ali, em documentos vivos,
flagrantes, se lhes assentava bem essa fama de
galhardia, de distinção, de urbanidade e
opulência,
da beleza soberana nas mulheres e de
[24]
enfatuado
estiramiento nos homens,
que fazia
do nome argentino o giro dominador pelo
mundo.
―De argentinos, aqui a bordo...―informou,
circunvagando em tôrno a vista, o Euclides,
hesitante,―não é esta a época...
Não dou
conta senão duma família.
E apontava-lhe, em cauteloso grupo à parte,
num dos tôpos do salão, um homem grosso e
grisalho, todo de negro, a face totalmente escanhoada,
com uma senhora idosa, vestida de
negro tambêm, muitos anéis e colar de
pérolas,
sentada em meio das duas filhas. Poisavam singelamente,
sem estudo, sem afectação, o ar
abstracto, numa atitude natural de abandôno
tranqùilo. As duas senhoritas principalmente
parecia quererem delir-se numa suave atmosfera
de simplicidade e renúncia que era a antítese
formal de todo o propósito de exibição
galante:
contudo havia na sua linha geral, sobretudo
duma delas, um não sei quê de espiritual
selecção,
de fino, de subtil, de espontâneamente
belo e vagamente alado, que começava por
fixar com agrado a atenção e gradualmente nos
trazia à alma um superior encanto.
Seguia interessadamente o Silveira, por entre
as volutas quiméricas do fumo do charuto, o
exame desta esquiva e singular figura, quando,
todo sorridente e afável, se aproximou dêle o
marquês: «que perdoasse, se acaso o vinha
molestar...
mas queria apresentar-lhe um compatriota
assaz distinto, fidalgo tambêm, como êle...
[25]
não tanto... e como êle
arruìnado». Amávelmente
o Silveira acedeu, e daí a instantes sentia
o efusivo apêrto de mão do conde
Améglio di
Paoli, espécie de emérito charlatão
internacional,
vivo, matreiro, na larga face a inalterável
palidez dos cínicos, farta cabeleira negra, a
mirada penetrante e fugaz, os gestos abundantes.
«Duros golpes da fortuna,―dizia,―o
haviam constrangido a demandar a América
para ver se conseguia colocar aí meia dúzia das
melhores telas da sua esplêndida galeria. Telas
dos séculos XV a XVIII. Ricos
pedaços da sua alma! Um sacrifício enorme...
Não tivéra a
coragem de o consumar na Europa, onde o extraordinário
valor das suas colecções era aliás
bem conhecido». Exprimia-se com abundância
teatral de efeito, num atropêlo de frases mortificadas
exteriorisando como que o pejo da sua
precária situação; e tudo era
desatar-se em atenções
e lisonjas perante êsse «grande aristocrata
português» em que a sua cabotina codícia
farejava
erradamente uma vítima. Luzia no
smoking
uma roseta vermelha e branca. Porêm, o
Silveira achava-o plebeu, mórmente posto em
confronto com o divino perfil, de Madona, da
irlandesa que se lhe sentava ao lado. Era sua
mulher. Num dado momento, a querer captar a
confiança do Silveira, apresentou-a; depois, sempre
nas suas prolixas aclarações e
deferências,
ia atropelando: «que levava aí assim... havia
de ver! um pequeno mostruário de obras tôdas
de mestres, que eram puras maravilhas. Vendê-las-ia
[26]
mesmo perdendo, que remédio!... E que,
em Itália, êle era assim um como que avaliador
oficial de objectos de arte, pois fôra o inventor
dum engenhoso processo de constatar a autenticidade
dum quadro por meio da microfotografia.
O único infalível! Não sabia?... Era
um
método ignorado, exclusivo seu, porêm a um
tam nobre senhor,―batendo-lhe amigávelmente
no ombro, epilogava,―não teria dúvida nenhuma
em o fazer comparte do segrêdo».
O Silveira escutava-o numa indiferença cortês,
distraídamente; enquanto o melhor da sua
atenção se fundia com deslumbrada ternura na
figura adorável da irlandesa, que lhe agradava
enormemente, com o seu ar repousado e cândido,
a linha puríssima das feições, o
arranjo
ático do cabelo castanho, o busto sóbriamente
redondo, o gesto singelo e nobre. Daí que, nos
breves claros de repouso que lhe consentia a
chalra interesseira do marido, êle fez perante
a diva o ensaio de algumas amabilidades discretas...
deplorávelmente perdidas,―logo êle desolado
verificou,―porque esta deliciosa filha de
Erin não falava nem compreendia senão a
língua
do seu país natal, de que o nosso desapontado
galã não percebia patavina.
Quando, pelas 11 horas, desceu à
cabine, o
Silveira trazia vivo e palpitante no cérebro o
baralhamento policromo e difuso de tôdas aquelas
figuras, tôda essa efémera
kermesse de notas
de acaso, na aparência desconexas e de cujas
cruas tintas, bruscas oposições e
antitéticas formas,
[27]
reçumava contudo um encanto especial,
uma clara e singular harmonia. Enquanto se
despia, êle notou que ali assim fóra, à
sua ilharga,
no triângulo aberto da prôa, havia tambêm
alegria.
Ali, a noite era quási total. Uma única
pêra eléctrica, com reflector, esclarecia apenas
o limitado espaço ao seu alcance, e a
maior porção do recinto ficava sob o
domínio
impreciso de vagas sombras dançando sôbre
montes de andrajos. No aplastamento próprio
desta hora de repouso e sob o mesmo invariável
tôldo negro, os grupos, sórdidos, compactos,
alargavam-se e faziam monte sôbre rolos de
cordas, sôbre as bagagens, sôbre mantas
vélhas,
troixas, sacos, sôbre esteiras; e a escassez da
luz erguia em deformações de pesadelo, emprestava
monstruosas ampliações de horror a
êsse caprichoso arranjo de cansaço e de
miséria.
Mas havia ainda muita gente desperta;
mesmo encostados à
cabine
do Silveira, dois
rústicos italianos faziam pausadamente o interesseiro
cálculo de quanto poderiam vir a forrar,
em cada mês, dos seus hipotéticos
salários;
um francês, mais longe, trauteava
couplets canalhas;
e tôda a sorte de vozes, de idiomas, de
murmúrios, gritos, expansões, risadas que eram
lamentos, suspiros que eram bocejos, tôda a
gama fruste da animalidade, tôdas as brutas
explosões
do instinto, se entrechocavam e faziam
côro nesta exótica Babel flutuante, grosso
concêrto
bárbaro que afogava o marulho manso
das águas e que ainda o sôpro galhofeiro dum
[28]
harmonium vinha cobrir, a
espaços, com a sua
toada
chillona.
Acomodado já o Silveira entre os
lençóis,
pareceu-lhe distinguir o quebrado dedilhar duma
guitarra, acompanhado duns acordes de violão...
Apurou o ouvido, não havia dúvida...
aí voltam
êles, trinaditos, leves, como quem está afinando,
êsses sons tam seus familiares, tam seus queridos.
E agora são já os prelúdios dengues do
fado, um
fado choradinho e
autêntico como só
a alma portuguesa, enamorada e fatalista, é capaz
de bem sentir. Daí a momentos, em bom
português, alguêm cantou:
Das barbas do Afonso Costa
Mandei fazer um pincel
Para escovar as botinas
Do querido D. Manuel.
O Silveira saltou no leito, radiante, e ergueu
meio busto, à espera de mais, ávidamente.
Já
não se sentia tam só. A ironia gaiata daquela
trova fê-lo estremecer de vindicadora alegria. Esta
descoberta inesperada espancava-lhe o
sono, aclarava-lhe a alma. Oh, a justiceira voz
do povo! O desdobramento do mote devia ser
impagável. Vamos a ver que mais viría...
O ignorado trovador cantou ainda outras
duas quadras, porêm já sem interêsse
para o
Silveira, porque gemiam lamechas trivialidades
de amor. No entanto, o grato alvorôço daquela
primeira impressão ficou. «Não era
só êle...»
[29]
comprazia-se em repetir no íntimo, vivamente
sensibilizado por êste traço imprevisto de
afinidade
moral com gentes de condição tam abaixo
da sua. Tinha ali assim, tam perto, analogias
de sentir e fêveras de ódio como as
dêle, e a
súbita descoberta desta conformidade palpitante
trazia-lhe confôrto. Inimigos tambêm do novo
regímen... dando-lhe costas, maldizendo-o como
êle. E mais eram do povo, pudéra!... do povo,
sim... êsse pobre e sempre ingénuo povo
português,
de cuja hipócrita adulação os
rèpublicanos
haviam feito plataforma essencial de propaganda,
e que depois do triunfo estavam agora
burlando iníquamente. Ah, mas êles lhes diriam!
Brava gente! E tinha-os ali seus visinhos...
«Havia que conhecê-los, vê-los de perto.
Bem...»
E adormeceu contente.
II
O dia seguinte amanheceu para o Silveira
outra claridade. Esta inefável
sensação de calma,
de liberdade, de plena posse de si mesmo,
que as viagens em nós despertam, fazia-lhe querer
a vida e sacudia-o num alviçareiro estímulo
interior. De tudo quanto o rodeava crescia para
êle o interêsse. Livre, pelo momento, de
preocupações
sôbre o futuro e assediado por todo
um mundo de sons, aspectos, côres, idéas e
coisas novas, todo o seu encanto de viver se
resumia na hora presente, e a alma dilatava-se-lhe
num voluptuoso apaziguamento sem têrmo,
como essa lisa toalha imensa de mar, sem perfídias
e sem cóleras.
A corneta chamara para o primeiro almôço.
Fóra, pelo espaço, havia sol, havia luz, e o
tépido
acariciamento da brisa casava-se numa
euritmía perfeita com o manso ronronar das
águas. Neste plácido ambiente de espuma e
[32]
oiro, as silhuetas saltavam nítidas, as tonalidades
ganhavam valor, sentia-se mais amigo e mais
próximo, mais potente, mais cálido, mais fecundo,
o divino alento criador da Natureza:
e, perante o olhar extasiado do Silveira, todo o
bigarrado movimento de bordo se esmaltava de
tintas de relêvo, de cânticos pagãos, de
brados
genésicos, de inusitados brilhos, e os seus mesmos
companheiros de embarque lhe pareciam os
habitantes dum outro planeta, onde as paixões
fôssem mais fortes e a vida mais consciente e
mais intensa. Saíndo, na direcção do
refeitório,
para o longo corredor, veio-lhe a viva lembrança
dos seus ignorados, dos seus humildes correligionários
da passada noite, e ia a demandá-los,
com piedosa atenção, através a
gradeada porta
da masmorra que ali assim perto os mantinha a
distância, quando uma outra solicitação
mais
empolgadora e mais instante lhe rompeu da
alma em alvorôço: a imagem fugidía e
alada da
joven argentina, entrevista tambêm na véspera,
no salão. Mas, por azar,―debalde o Silveira
esperou!―nem ela nem ninguêm da família
baixou a comer.
Não havia então remédio
senão confiar do
acaso o providencial milagre de a ver aparecer.―Mas
quando? mas aonde?...―E aí sóbe
êle de golpe no ascensor e vem atravessar o
salão e faz o giro afanoso do barco, mirando em
tôdas as direcções, perquirindo os
bizarros
grupos
distribuidos preguiceiramente ao longo das
cobertas, no alinhamento marcial das cadeiras
[33]
de repouso. Absorto nesta preocupação essencial,
o resto marcava zero para êle, nada mais
via ou pretendia, de nada queria saber. Acotovelava
insensível os arremangados homens do
sport, cortava indiferente as
interesseiras chalras
de grossos burgueses, vestidos de fustão branco;
por duas vezes houve que furtar-se, um pouco
bruscamente, às louvaminheiras investidas do
dr. Contreras, em termos de passar por malcriado;
e por um triz não préga de bôrco
sôbre
o convés com uma barafustante paqueta baíana,
magra, pequenina, ictérica, que comandava a
poder de gritos e truanescas evoluções uma
chusma de pequerruchos.
Por fim, essa adorável argentina ei-la que aí
vem agora avançando... Vem só. Era alta, esguia,
frágil e avançava leve e aérea, como
um
reflexo de si mesma, lembrando no porte e na
frescura um dêsses longos, finos e erectos fustes
da
palmeira imperial, com o
vértice perenalmente
verde. Seguia breve e alheadamente, com
uma simplicidade não isenta de nobreza, e foi
sentar-se junto da mãe, uma repousada e aparatosa
senhora que nos parecia forte da robustez
peculiar que circunda certas mulheres e que denota
honestidade. E de hora em diante o Silveira,
feliz por aquela segurança de tranqùila
contemplação
que emfim conseguia, já não abandonava
mais o alvo querido do seu cuidado e atento ia
e vinha, e desdobrava arteiras pausas, disfarces
e rodeios, para poder, sem que fôsse notado,
entregar-se a esta viva e desbordante análise
[34]
que a sua alma se comprazia em prolongar, porque
ela respondia à excitação misteriosa
que
dentro de nós faz chispar o maravilhoso reflexo
interior da simpatia.―Era curiosa, enternecedoramente
curiosa, com efeito, esta linda desconhecida.
Aparentava 20 anos, não mais. Farto
cabelo castanho,
mousseux, sem
brilho, descendo
em bandós singelos a juntar-se sôbre a
nuca; pequenina testa espiritual, em triângulo;
os olhos castanhos tambêm, de leve desenho
mongol, as sobrancelhas erguidas e lançadas
sôltamente; o nariz projectado direito e um
pouco longo, toda a face alongada por igual,
perfil grego, traçado num como que afinamento
idealista e ingénuo; o queixo pontuado finamente,
os dentes brancos, muito iguais, e a bôca
breve, os lábios finos mas expressivos, resumindo
o que porventura havia de vida e de paixão
nesta criatura reservada e tímida. Nenhuma
espécie de atavios: nem espartilho, nem jóias.
Apenas na base do pescoço, ático e longo como
um mármore da Jónia, um colar de corais
napolitanos.
As suas mãos, de dedos brancos e finos
como longos estames, e mais claras que o tom
mate do rosto, eram o prolongamento
lógico de
tôda a figura, lembrando os tenros rebentos
duma árvore de sonho. E, quando sorria, os
olhos perdiam-se-lhe no vago, enquanto na filigrana
húmida dos lábios perpassava um
frémito
breve de emoção.
Na alma ardente do Silveira rompêra agora
o desejo veemente, irreprimível, de mutuar
impressões
[35]
com a linda desconhecida.―Mas como
consegui-lo, como chegar adonde a ela?...―considerava
com afinco, instalando-se-lhe na
frente, numa atitude de estudado abandôno, os
cotovelos sôbre a amurada.―Tinha que haver
uma apresentação, manobra táctica
reconhecidamente
difícil para o investimento cortês duma
família como aquela, que êle não via
comunicar-se
com ninguêm, que ninguêm saùdava e
que a ninguêm retinha, mantida mui deliberadamente
no seu desprendido círculo de isolamento
e indiferença. Assim, uma aproximação
em condições favoráveis, segundo as
regras do
bom-tom, não era empresa vulgar.―O Silveira,
de lábio pregado, reconhecia-o, e esta
descoroçoadora
evidência, longe de o desalentar, mais
o enardecia.―Havia que buscar...―Numa fêvera
crescente de impaciência, planizava estratagemas,
ideava hipóteses, amontoava projectos,
que, mal esboçados ainda, todos logo fracassavam.
Então, em alternâncias de dulcíssima
pausa,
como um bálsamo, o áspero aguilhão do
seu
cuidado amolecia na contemplação deliciada e
atenta dêsse baluarte suave de isenção
e de virtude.
Mas logo, mais despótica, mais tenaz, a
sua amoruda obsessão voltava, por cada um
destes venusinos exames trazida a um enternecido
exacerbamento que mais lhe acicatava a
vontade e lhe acendia o desejo.
Um momento veio então em que o Silveira
notou que, um pouco mais ao largo, à ilharga
e um tanto recuado das duas argentinas, um
[36]
joven glabro e calvo, com o engerido busto
dobrado sôbre uma destas pequeninas mesas
portáteis de bordo, escrevia nervosamente. As
garatujas do lápis seguiam numa carreira febril,
dir-se-ia ao atropêlo cálido da
improvisação,
enchendo fôlhas sobre fôlhas sôltas, que
a
aba loira dum grande
panamá protegia da aragem
dispersiva. E, sempre no mesmo propósito
exibitivo e grotesco, a intervalos o iluminado
escriba parava na empolgante labuta e imobilizava-se,
como que colhido em pausas de transcendente
laboração interior, com os olhos vagos
postos ao alto e o lápis erguido digitalmente
sôbre o lábio sibilino. Depois, num
ímpeto criador,
um estremeção simiesco o sacudia, e, com
um risinho envaidecido, êle recomeçava
inflamadamente
a escrever. Ora, aconteceu afigurar-se
ao Silveira que, numa destas estases de
espiritual concepção, o biltre
encarára particularmente
a adorável argentina, a criatura esfíngica
do seu sonho... pareceu-lhe mesmo
que cambiára com ela um qualquer familiar sinal
de inteligência.―Talvez tivesse a sorte de
a conhecer! Feliz até à insolência...
Bem, mas
então, nesse caso... havia que conhecê-lo a
êle
tambêm!―E forte nesta idéa, feliz por
êste relâmpago
de aproximação salvadora, o Silveira
estudava agora com agrado e analisava mais
de espaço a espaço aquele que presumivelmente
ia ser o auspicioso traço iniciai à sua
fortuna.―Era
uma figura abortiva e grotesca, assim
tortuoso, magrote, pequenino, com o seu bigodito
[37]
loiro, raso à raíz dos lábios,
com os seus
olhos dum cobalto inexpressivo, com a cabeça
tôda em tortumelos, romboidal, enorme, e, a
partir do queixo para o coronal, aparada caricaturalmente
em ponta, num dêsses estiramentos
cucurbitáceos peculiares do Greco. E ainda
o alongamento filiforme do pescoço sôbre a
ladeira débil dos ombros mais acentuava o
desliamento quebradiço e vacilante daquela estranha
figura. Coisa curiosa: sôbre êste
pescoço
estriado, sôbre estas mãos nodosas,
sôbre
esta cabeça paradoxal que parecia
recêm-saída
dum cataclismo, não havia a epiderme rugosa
e áspera que seria a condizer, antes se arredondava
a macieza penujosa e clara duma pele de
efébo,
mate,
adoçando os contornos, com transparências
de aguarela e velaturas de arminho;
a pele virginal e doce dum adolescente; a qual,
entretanto, pelo mais irritante dos contrastes,
passava súbito a uma rubefacção
herpetizada e
adusta no revestimento crassoso das desertas
grimpas do cránio luzidío.
Vestia um jaquetão negro de lustrina, colete
e calça de flanella créme, sapatos brancos,
peúgas rôxas, a camisa mole
ajourée, e a farta
gravata de sêda negra caída e sôlta num
desmanchado
laço de artista. Um mixto de pedantismo
e inconsciência, de garridice e desmazêlo.
Propunha-se o Silveira abordá-lo, quando um
pequeno incidente surgiu, a cortar-lhe o propósito
e colocá-lo num passo difícil... Era o conde
Améglio que passava, mais a mulher, e que
[38]
apenas avistou o «grande fidalgo português e
seu não menor amigo», logo de acercar-se-lhe,
expansivo, sorridente, num afectuoso desbarato
de gestos e mimadas atenções, pouco mesmo
faltando para lhe acarinhar com a mão, familiarmente,
o queixo. E assediava-o com perguntas,
com propostas, ofertas, lembranças, solicitudes.―Que
fazia ali assim? porque não vinha
com êles?...―A adorável irlandesa, numa sublinha
cativante, sorria tambêm. O Silveira
tinha calafrios, colhido assim de improviso, de
súbito posto à prova na duplicidade
egoísta dos
seus instintos. Gaguejava de embaraço, não
acertava com uma posição, as palavras
não lhe
acudiam. Tomava-o uma espécie de embrutecedora
raiva interior, ao ver-se assim entaliscado
estúpidamente entre essas duas
solicitações,
qual delas mais viva e mais tenaz, do seu
desejo. Ardia por fazer-se notar, por fazer-se
admitir ao convívio da linda americana, cuja
linha patrícia e esquiva tanto o intrigava; e
muito lhe agradava por igual
Mrs.
Edith, cujas
bôas graças não queria perder, mas
junto da
qual tambêm não lhe convinha fazer demasiado
ostentiva parada de atenções, neste momento.
Defendia-se por monossílabos, numa grande
instabilidade de movimentos, còrando como um
colegial e mirando de escape, numa idiota
solicitação
de escusa, a bela argentina, que nem
dava por êle. Por fim, ante a insistência pegajosa
dos dois, cortou a dificuldade prometendo
que breve iria, a estibórdo, ter com êles; e
[39]
tornou a còrar mais forte quando o conde, já
longe e ao dobrar a esquina do
deck,
se voltou
num gesto afável, acenando-lhe convidativo
com a cabeça.
Daí a instantes, liberto do arreliativo pesadelo,
acercou-se dissimulado do incansável rabiscador,
o qual, no momento justo, arredára,
num desvio brusco do antebraço, a grande aba
do
panamá protector de
sôbre as tiritas de
papel, que logo desparramaram ao acaso, como
arvéloas, pelo espaço. E logo tambêm o
Silveira,
agarrando o pretexto, acudiu solícito,
baixando-se e ajudando o desconcertado escritor
a recolhê-las.
―
Un millón de gracias,
caballero.
―De nada...―obtemperou, amável, o Silveira;
e com discreta atenção:―São
produções
inéditas?
―
Apuntes del natural,―tornou
singelamente
o outro, sempre em espanhol,―esquissos,
impressos, simples notas do momento, fugazes
como êste instante de vida em que
voamos.
―Deve ser interessante.
―Não vale nada...―derivou o iluminado
anotador, num gesto desprendido.―Um modo
inofensivo de matar o tempo.
Convidou o Silveira a sentar-se e acercavase-lhe,
solícito, insinuante.―Sem dúvida era
português? Pelo modo, pelo acento, via-se
logo... Muito folgava! Êle era andaluz. Um
pouco periodista e um pouco homem de negócios.―Impingia-lhe
[40]
o seu cartão de visita, impresso
em tipo gasto e vulgar, modestamente.―Ramón
Alvarez,
tout court.―Mas,
sôbre a
caligrafia tôrpe dos caracteres, um empenachado
elmo luzia heráldicamente, mais tôrpe
ainda.―Êle
era duma família da mais antiga linhagem,
família de cronistas, de poetas, de galans... e
tivera sempre um grande fraco pelas letras.
Tinha dois livros em preparação, uma novela e
um poema épo-histórico, e tambêm um
drama
prestes a ser pôsto em scena pela Maria Guerreiro.―Oh,
os intelectuais!―exclamou o incompreendido
escriba, desarticulando o busto,
rolando os olhos em êxtase e, num bravo arranque
de entusiasmo, atirando a enormidade paradoxal
da cabeça sôbre a nuca.―São a flor por
excelência, a suprema exaltação da
terra!―Infelizmente,
êle vivia... viviam os dois, que lhe
perdoasse se tomava a liberdade de o dizer...
mas lá como cá... viviam numa peste de
países
de analfabetos, onde por via de regra os pensadores,
os génios, os grandes eleitos do talento
e do saber, morriam de fome. De sorte que,
assim, havia que ser-se ao mesmo tempo um
pouco prático.―Que remédio!―com enfado
soberano rematou. E iludia o seu prosaico
mistér de caixeiro viajante num vago eufemismo,
dizendo «que vinha à Argentina estudar
o país».
―E conhece argentinos?―logo o Silveira
indagou com calor.
D. Ramón meneou negativamente a cabeça.
[41] ―Alguma das famílias que vão aqui a
bordo?
―Tampouco.
―Nem aquelas senhoras, ali assim, à nossa
direita?
Essas menos do que nenhuma. Alvarez não
conhecia nem tinha ganas de conhecer.―Muito
cheias de prosápia.
No le
gustaba.―E franzia
o nariz com displicência. Na irritação
do desapontamento,
o Silveira é que teve ganas de lhe
bater... Entretanto, na sua abundosa loquela, o
Alvarez insistia que nunca podéra aturar gente
pretenciosa. Ele queria-se com gente alegre, comunicativa,
franca,
sencilla, gente à
moda do
seu país, da sua terra... com pessoas que nos
põem à vontade, no fraternal empenho de nos
fazerem sentir que são nossos iguais, em vez de
parecer que nos querem impôr uma humilhante
adoração.―Olhe! como aquilo.
E apontava, de olhar incendido, uma linda
morenita, mui viva e coquetona, tôda de branco,
que justo lhes passava na frente. Ia ladeada por
dois outros tenros amorinhos, e as três realizavam
o mais delicioso grupo etrusco, assim caminhando
rítmicamente, sôltas e leves, as cintas
enlaçadas, os bustos dançando, o cabelo ao
vento.
―
Què monada! Aquilo,
sim... Veja! Veja!
Dizendo, o desengonçado Ramón exagerava
a sua abominável aparência fetal, ao erguer-se,
todo dobrado, sôbre a mesa, para corresponder
às provocadoras saùdações
que, passando, a rapariga
[42]
lhe fazia com a cabeça, com os olhos,
com o leque, com as mãos, batendo forte o tacão,
bolinando os quadrís lascivos. E quando a
perturbadora visão se desvaneceu, êle,
familiarmente:
―Prometi-lhe um soneto e neste momento
mesmo o terminava. Quere ver?
Procurou, com a pupila febril, nas tiras sôltas,
e erguendo uma por fim entre os dedos
trémulos, leu então,
enfáticamente, com cabotina
audácia, como sua, o puro decalque duma
das líricas mais inferiores de Manuel Palácio.
Contára antecipadamente o seu instinto com a
iletrada ignorância do Silveira, o qual, tomando
naturalmente por original a cadenciada toadilha,
em marretadas de admiração vislumbrava
agora nas insondáveis cavernas cerebrais do
Alvarez tubérculos autênticos de génio.
Porêm
já êste, num lume de vaidade, colhendo presto
a papelada:
―O meu amigo perdoará... mas ocasiões
destas não se podem perder.
La muchacha con
seguridad espera-me. Está impaciente...
Hay
que aprovechar, por Dios!
E, arredando brusco a mesa, partiu de abalada,
pequenino e torcido sob a aba descomunal
do
panamá, como um
chaparro anémico.
Desapontado, o Silveira quedou-se uns segundos
sentado ainda e imóvel, na sua atitude
de irremediável lamecha, o busto abatido, as
mãos pendendo tristes entre os joelhos. Depois,
tendo enviado um derradeiro olhar de desconfortado
[43]
apetite sôbre a espalda esquiva da linda
argentina inabordável, ergueu-se e partiu tambêm,
sacudidamente. Mal tinha dado a volta
para estibordo, quando viu que a êle se dirigia
o seu afável comensal, Euclides Pereira, ladeado
por dois graves e idosos senhores, que deviam
ser ingleses, a avaliar pelos cómicos desmanes
em que êles buscavam amávelmente contrafazer
a sua imperturbável e habitual tesura. O joven
brasileiro apresentou:―
The Right Honorable
the Earl of Horrowby―
The Captain
John Stayton.
Este segundo tartamudeou umas curtas frases
guturais, que o Silveira não percebeu, lardeadas
de profusas reverências; e o tenente
Euclides explicou então que vinham pedir-lhe a
honra de consentir em fazer parte do grande
Sports and Entertainment Committee,
e ao
mesmo tempo convidá-lo a assistir à
reùnião
preparatória, que devia realizar-se, aquele dia
mesmo, no salão de 1.ª―
the Social
Hall,―ás 9
p. m. Erguido e dobrado numa atitude de nobre
aquiescência, o Silveira agradeceu, no íntimo
envaidecido. E como que sentindo-se crescer,
importante, alegre, seguiu com afectada indolência
direito ao conde Améglio, que de longe
observára e compreendera a scena, e por isso o
acolhia agora entre atencioso e mordaz, num
risinho de conformidade patusca.―Êle tinha adivinhado...
muito bem! muito bem! Fizeram o
que deviam fazer, era de esperar.―E todo em
aprovativas mesuras:
―Sim senhor! muitos parabens.
[44] ―
Very, praiseworthy,―completou
Mrs. Edith,
com o seu cândido sorriso. Mas, encolhendo, modesto,
os ombros, o Silveira:
―Uma simples amabilidade. Nem eu esperava.
Que valor pode isto ter?
―Ah, pois então não tem! Êles bem
sabem
a quem escolhem...―acentuou, lisonjeiro, o
conde, com ar convicto; e maliceiramente rematou:―Olhe,
a mim não me convidaram êles.
―Mas, é que o devem convidar!―corrigiu
com amável intimativa o Silveira; e, num generoso
assomo de importância:―Se o conde
quere, logo à noite lembro o seu nome.
―Oh, não, não... por amor de Deus! Essas
honras, aqui, não trazem senão
incómodos e
maçadas. Para o efeito, sou da plebe, prefiro
que me considerem um anónimo, um zero. Não,
não... Muito obrigado!
Trocaram depois uma meia dúzia de frases
banais sôbre a monotonia da vida de bordo, a
extensão fatigante da viagem, a vulgaridade
chocante dos passageiros, a má comida, o calor,
o belo tempo que fazia. O conde tinha no
regaço um livro copioso,―
L'Argentine telle
qu'elle est, de Paulo Walle,―cuja leitura recomendou
ao seu amigo; mas a êste interessava-o
mais a silhueta ateniense, o abandôno
repousado e lânguido da irlandesa,―sôbre a
armchair, frente à luz,
estendida longamente,
com os pèsitos brancos traçados fóra,
no ar,
deixando a divina modelação da perna a descoberto
bastante acima do artêlho, com uma cadência
[45]
suave e tranqùila na
ondulação rítmica
do seio, os braços em ansa, as mãos inertes em
concha sob a nuca, e os grandes olhos de veludo
mirando vago, ao longe, reflectindo não
sei que molhado encanto, da ardósia fluida
das águas, e parecendo seguir o vôo dalguma
quimérica visão na claridade material do
espaço.
O toque para o
lunch veio cortar
brusco
êste primeiro ensaio de
flirt, com o qual a
alma oblíqua do conde não parecia
aliás preocupar-se...
Em baixo, à mesa, a conversação
arrastou-se monótona, cortada e dispersa, como
se cada um daqueles cinco fortuìtos comensais
trouxesse agora por distintas e opostas coisas
dividida a atenção e solicitado o
espírito. Apenas,
com familiar insistência, se falou dos próximos
festejos, sendo o Silveira e o tenente
Euclides felicitados cordialmente por fazerem
parte do grande
Committee directivo;
e tambêm
o abstruso Mackenna se desatou num panegirismo
entusiasta daquela aparatosa francesa
cuja identificação moral e social trazia todos a
bordo intrigados, graças à mirabolância
equívoca
das
toilettes, e à
suporífera mansidão e à
consciência não menos letárgica do
presumido
marido.―Helena d'Ellery se chamava ela, já
conseguira saber... mas, jurava! ainda havia de
saber-lhe tambêm práticamente a biografia.―O
flácido marquês di Mafiori teve um risinho
enigmático, imperceptível; ao passo que, na sua
libidinosa querença, o outro:
[46] ―É deliciosa! Tem o
chic, o aperitivo acre
do escândalo.
Hay que
gustarla!!
E na gulosa antecipação dêsse defeso
prazer
sonhado atacava furiosamente o pires das azeitonas.
A interminável sucessão da tarde arrastou-a
o Silveira enfastiadamente, em grande parte
pelo braço solícito do tenente Euclides, que
não se cansava de o apresentar às numerosas
famílias suas compatriotas. E assim andaram
deambulando amávelmente de grupo para
grupo, sem que o Silveira conseguisse dominar
a impaciência e vencer o tédio. As jovens
brasileiritas,
algumas bem interessantes, com as suas
meigas expansões e a sua vivacidade ingénua
não logravam entretanto cativar-lhe o espírito,
enleado teimosamente naquele obsessivo empenho
de se aproximar da argentina; os homens,
êsses sem maior atenção, mal trocadas
as primeiras
saùdações, logo reatavam o
interesseiro
diálogo interrompido, não falavam
senão em
cotações da borracha e do café,
perseguiam
miragens de fortunas fabulosas, desfiavam cálculos
que davam vertigens, denunciavam burlas
que pediam galés, antecipavam quebras iminentes,
todos ávidamente engrenados no travamento
egoista e brutal dos negócios, a que durante
tôda a sua vida o Silveira, por temperamento
e por educação, se mantivera sempre altivamente
alheio. Nada disto o satisfazia, nada
o interessava, nem por momentos o prendia
sequer. Então, num dos seus vagos e atoados
[47]
giros de bordo, atingiu o Silveira o têrmo da
coberta, à prôa, mesmo sôbre o
amontoamento
heteroclito e sórdido dos seus vizinhos da
cabine,
em baixo, aquela pobre gente da 3.ª classe.
No trecho luzidío e nu do convés que a
projecção
do grande tôldo
gris
deixava a descoberto,
êle viu que vários bigarrados e mansos
grupos subiam e desciam ao acaso, num constante
vaivêm, pelo sujo rasgão duma espécie
de
negra fossa, a um canto, e vinham em cima
amadornar-se, plácidos todos e delidos como
um sol de outono, todos na mesma calma resignada
e humilde, apagados, doces, tranqùilos.
Os homens, pelo geral, em camisola e arremangados,
a cabeça nua, alguns descalços, estremavam-se
segundo as afinidades de raça, e fumavam,
assobiavam, rilhavam fruta, falavam
tímida, espaçadamente, como que narcotizados
por aquele embalo monótono da vida que, durante
dias e dias, havia de baloiçá-los entre a
água e o céu. Muitos, num confiado
abandôno
animal, dormiam. As mulheres, acocoradas,
remendavam-se, preparavam tisanas, amamentavam
os filhitos de colo ou catavam os mais
crescidos. Numa clareira de escasso prazer, ao
centro, e de roda do mesmo incansável e
folgazão
harmonium,
passava numa tropeada
cantante um círculo folião,
dançando,―cujas
atitudes pagãs uma loira e delgada
touriste
ia esquissando a correr no seu
carnet, deliciadamente.
E o Silveira fazia a aproximação
mental desta suave chusma humana, na sua
[48]
conformidade evangélica, na sua inconsciência
fatalista, na sua plácida singeleza e passiva
sujeição
ao destino, com os gestos duros, a pupila
metalizada, a frase breve e a sôfrega ardência
dos seus insatisfeitos companheiros de 1.ª... e
achava aqueles mais felizes.
Tocava o sol o ocaso, e o Silveira como que
via agora, de roda de si, a uma outra luz, os
homens e as coisas, cujos contornos se debuxavam
numa agonia de tôda a sua vida exterior,
acendidos em tons violentos num esfumaçado
fundo de tristeza. Encarou numa instintiva
interrogação o céu e surpreendeu, no
seu
desdobramento esfusiante, êsse maravilhoso e
deslumbrante scenário cuja amplidão magnificente
tanto lhe haviam encarecido.―Era com
efeito uma imensa, uma transcendente e apoteótica
sarabanda de luz, que mais que aos olhos
lhe falava à alma, e que em parte nenhuma
como ali, em pleno oceano, podia abranger-se
íntegra na sua avassaladora majestade, na sua
incomparável beleza, tomando totalmente meio
céu, descendo suavemente do frio azul mineral
do zénite a um loiro cálido de paixão,
para depois,
à raíz do mar, inflamar-se em
sanguíneas
vigorosas, esbrasear-se em línguas de incêndio.
Na difusão ofuscante desta auréola de sonho,
as
walkirias fantásticas
de nuvens, encapeladas
cêrca do horizonte, debruadas por aquela gama
infinita de côres, facetadas nas mais atormentadas
e imprevistas formas do relêvo, tinham movimento,
tomavam volume, intenção, vida, alma,
[49]
carácter, improvisavam grupos que eram símbolos,
formavam cruas oposições, saltavam em
rondas caprichosas; e por fim tôda essa manante
claridade sideral despenhava-se, como um
Niagara de oiro, macia, translúcida, impecável,
sôbre a imensa alfombra rútila das
águas. Aí,
na linha molhada do horizonte, o mar era fogo
líquido, e nesta enorme brasa, crespa e fluída, a
granada quáse extinta do sol estrelava-se ainda
para o alto num imenso leque de violeta e oiro,
que a algodoada capela das nuvens contornava,
e cujas últimas trepidações vinham,
crepitantes e
dispersas, morrer pelas silhuetas errantes, pelas
escaiolas claras, pelas arestas vivas do navio arfando...
ao passo que já, pelo diáfano e desbotado
azul da metade oposta do céu, da penumbra
vaga do oriente, o plácido véu da noite
vinha subindo.―Era tôda uma revelação
esta
soberba e inimaginável orquestração
aérea de
aspectos, de formas e de tintas; convertia num
absurdo a impassibilidade tradicional do céu, fazia-nos
crêr na clássica sublimidade da vida
olímpica dos deuses, dava-nos como que a
sensação
viva do Infinito.
Seguia o Silveira desta hora doce e imensa
a magia incomparável, quando sentiu um toque
familiar no ombro, que o fez estremecer. Era o
pomposo Norberto Mackenna, que com um gesto
alto e desdenhoso:
―Então, que faz aqui assim, tam só, meu
caro?... Admirando o pôr do sol, não é
verdade?
[50] ―É lindo!
―
Ya lo creo.
―É maravilhoso!
Mas, num rebarbativo freio a êste entusiasmo
ingénuo, o joven chileno:
―Sim, é bonito, é... mórmente para
quem
o contempla pela primeira vez. Mas não nos
podemos ficar por aqui!―E ante a muda
interrogação
do Silveira, com infatuado ar, esclarecia:―Ora!
Nas minhas primeiras viagens,
fartei-me de fixar colisões de côres como estas;
mas não passavam de cópias servís,
hoje não
lhes atribuo importância nenhuma.―Plantava-se
com intimativo vigor diante do Silveira,
que começava a imaginá-lo maluco.―Porque
isto de pintura, meu caro amigo, tem que progredir,
como tudo o mais; tem que radicalmente
mudar de processos, entende-me?... Os valores
éticos e estéticos actuais são uma
lástima...
adstritos como ainda andam à passividade idiota
e servil de gastas formas milenárias. Temos
que fazer mais do que ficar-nos a objectivar
interminavelmente as vélhas concepções
convencionais
da beleza e do amor.
Hay que poner
patas arriba a tôdas essas
fórmulas mesquinhas.
Oh, seguramente Picasso, Boccioni, Metzinger,
Matisse, estão na razão! Há que
derribar por
completo, que arrancar pela raíz tôda essa
floresta
vazia e pedante do Passado. Pois se nós
temos de roda de nós, flagrante, inexplorada,
imensa, uma nova maneira de criar e de sentir...
Temos que renovar ao mesmo tempo o
[51]
instrumento e a música.―E movendo desordenado
a cabeça, os nervosos dedos arranhando
inspiradamente o espaço, a grenha revôlta ao
vento:―Há que fixar o movimento, a velocidade,
a conquista do espaço, o delírio da carreira,
a embriaguez do vôo, as palpitações do
éter e as vibrações
anímicas, todo êste travamento
volátil e febril da vida, tôdas as grandes
conquistas arrancadas últimamente pelo génio
humano à Natureza inerte e hostil... Não lhe
parece?
―Sim, acho que sim...―aventurou maquinalmente
o Silveira, que o escutava indiferente,
sem perceber nada, como quem ouve
chover.
Entretanto, diante do seu olhar deslumbrado
e absorto, e como um eterno protesto à vacuìdade
insolente daquelas palavras, continuava
a desenrolar-se a beleza perenal dessa agonia
de luz dulcíssima, salpicando de brilhos fugazes
a capela rasteira das nuvens, que como que se
abriam agora em magnólias, hortênsias,
lótos,
orquídeas e outras flores maravilhosas, semelhando
um imenso fogo de artifício imobilizado,
no seu fulvo esplendor e no seu rasgo alado.
Breves horas depois, no
Social Hall,
a prefixada
reùnião do
Committee directivo de
sports
e festas decorreu serena e rápidamente. Para ganhar
tempo e facilitar trabalho, o secretário leu
um programa de diversões já
préviamente elaborado,
o qual foi aprovado sem discrepância.
Procedendo-se em seguida à
distribuìção das respectivas
[52]
funções pelos membros do
Committee,
João da Silveira veio a saber, com verdadeiro
regosijo, que não lhe competia mais do que o
encargo de fazer entre os seus compatriotas de
bordo a
quête
voluntária para as despesas.―E
que não se aceitavam donativos superiores a
uma libra.―Por outro lado, a tarefa era-lhe
um tanto ou quanto fastidiosa. De portugueses,
a bordo, o Silveira não se dava conta de mais
que alguns, poucos, pequenos proprietários e
comerciantes, seguramente republiqueiros... bastava
vê-los. Não lhe era nada agradável
tratar
com essa ordem de gente. Mas, em suma, por
uma vez e como eram poucos, a coisa resultava
fácil, afinal. Era um alívio!
Daí a pouco, sôbre uma das mesitas do
smoking-room,
iniciava êle o seu trabalho, passando
ao papel os nomes daqueles que já conhecia,
quando súbito se lhe interpõe arreliativamente
à luz a figura abundosa e afável do dr.
Contreras.―Não
sabia se vinha
molestarlo...―Tinha
um risinho solícito, de pretendente, ao
explicar:―Êle
estava cêrca, ali assim, vendo jogar, quando
deu conta dêle.―E apontava uma mesa de
brigde,
em que eram parceiros o Mafiori, o Mackenna,
um inglês engelhado e esguio como um arenque
sêco, e aquele misterioso e derrancado acólito
de
M.me d'Ellery, a qual,
complacente, se lhe
sentava ao lado, de perna traçada e fumando,
num à vontade petulante. O Contreras continuou:―Estava
vendo jogar, por ver... Não
que fôsse
aficionado.
Más bien le gustaba
tratar
[53]
com as pessoas de verdadeira distinção. Oh,
sem favor nenhum! Por isso tomára aquele
atrevimento.
E levemente incrédulo, dobrando-se para o
Silveira, com o olhar astuto:
―
Es usted republicano?
O Silveira teve um gesto solene de protesto.
E servilmente o outro:
―Ora! via-se logo... Podia lá lêr por semelhante
cartilha
un caballero tam distinto!
Eu,
que sou eu, p'r'aqui um pobre
come-meajas, e
com republicanos tambêm nunca quis nada.
No
parto buenas migas con ellos. Gente sem modos,
sem educação... Nem a
rèpública, meu caro
sr., é para nós.―Dogmáticamente
confirmava,
arregalando os olhos:―Veja o que ela durou
em Espanha!―E, com dulcerosa expressão,
batendo a espalda do Silveira:―Pois, meu
caro amigo, faço votos para que êsse grande dia
da restauração lhes venha breve.
O Silveira poisára a pena e erguera uns
grandes olhos de esperança para o generoso
interlocutor, seguro senhor agora da sua grata
simpatia, e que com abandôno familiar, sentando-se:
―Diga-me, meu amigo... êle a
rèpública
portuguesa sempre suprimiu as condecorações?
―Suprimiu tudo!
―
Es
lástima...―comentou, de
pálpebra
murcha, o Contreras; e depois duma pausa, coçando
a barba, tímidamente:―Eu muito gostava
de ter uma condecoração portuguesa!
[54] ―Sim? Pois deixe estar, que quando a coisa
volte...
―
De seguro, promete?
―Alcanço-lhe uma... a Conceição, por
exemplo. Palavra!
―Ah, que agradecido eu lhe ficarei!―lamuriou
o Contreras, enternecido, de mãos
erguidas.―
En
cambio tambêm prometo fazer-lhe
un regalo, un regalo precioso...
Achegou-se e com afável intimativa, muito
em segrêdo:―Dou-lhe uma das carabinas apreendidas
aos monarquistas portugueses, de que me
fez presente
el alcalde de Vigo,
grande amigo
meu... É uma carabina autêntica de Toledo,
como aquelas que os jornais disseram que o
govêrno espanhol havia vendido para o Paraguay...―Aqui
ria grossamente, mostrando a
rala devastação dos dentes:―Para o Paraguay,
hein... Não foi má
broma essa!
E outra vez sério, e com um encarecimento
hipócrita, premindo o pulso ao Silveira:
―Uma preciosidade, uma verdadeira peça
de museu... Era do Paiva Couceiro.
III
Na manhã seguinte, ao
lunch, já ao lado de
cada talher, no comedor, havia a lista dos passageiros
e do pessoal de bordo, em papel assetinado,
impressa lindamente, e, junto, o Programa
detalhado
of games and sports para
durante a
viagem. A primeira sessão,―jogos sôbre a
tolda,―realizar-se-ia
já nessa mesma tarde. Por isso,
o Silveira havia visto, logo de manhã, um grande
quadro negro posto a prumo no
Social
Hall, o
qual era destinado à inscrição geral
dos jogadores,
e que em menos duma hora aparecia abundantemente
garatujado de caligrafias exóticas,
hieroglifando nomes bárbaros. Agora, no comedor,
o Silveira demorava com particular agrado
a atenção sôbre a beleza daquela
composição
tipográfica feita a bordo, e no íntimo rendia o
seu mais admirativo preito à celeridade e à
limpeza
como tudo ali assim caminhava.
A seguir, e quando, postos de lado a Lista e
[56]
Programa, desdobrava o guardanapo para principiar
a comer, o Silveira notou que o tenente
Euclides o mirava com uma expressão singular,
entre alviçareira e irónica, alegremente. E como
a insistência maliciosa dêste prazenteiro olhar
se prolongasse, levemente intrigado êle então
aventurou:
―Como o nosso Euclides está hoje contente!
O brasileirito fez uma pausa de importância,
e depois olhando-o fito, com um cocegante ar
de mistério:
―Tenho uma grande novidade a dar-lhe!
―Coisa bôa?
―Bem agradável, creio, lhe deve ser...
―Homem, diga lá! desembuche,―comandou,
já tambêm interessado, o Contreras dando
um murro na mesa.
Porêm, numa suave negativa de cabeça, o
tenente Euclides:
―Nada! O meu amigo perdoará... mas é
assunto só p'r'os dois. Não pode ser...
O Silveira, razoávelmente intrigado, reptava-o
a que falasse. Curioso por igual mas comedido,
o nobre Mafiori, num protesto mudo de
discreção, levou a mão ao peito,
fazendo luzir
as unhas. Porêm, a tudo resistiu a alviçareira
e enigmática expressão do brasileiro, que se
manteve impenetrável.
Por fim, quando em cima, no salão, o Silveira,
devorado de impaciência, voltou a interpelá-lo,
o bom Euclides aclarou:
[57] ―Não sabe você?... Já sei quem
é o nosso
misterioso argentino!
―De-veras!?... Falou com êle?
―Sim! falei...
―E com as filhas?
―Tanto, não. Mas poderá você
fazê-lo...
Está aplanado o caminho.
―Então? então?...
E ante os olhos interrogativamente abertos e
a bôca espectante do Silveira, o amigo Euclides
segredou-lhe então, por entre cautas miradas
em tôrno, espaçadamente,―que se tratava,
não
dum argentino de nascença, mas dum vélho
escandinavo,
o dr. Justus Wimeyer, há trinta anos
estabelecido no formoso país Del Plata, para
onde viera, moço ainda, exercer a advocacía, e
onde fôra cumulativamente jornalista e pedagogo,
sendo agora professor jubilado da Universidade
de La Plata, grande proprietário no norte
e homem de fortuna.
―Como diabo soube você tantas coisas?―exclamou,
maravilhado, o Silveira, sacudindo a
cabeça numa comoção de espanto.
―Pelo comandante do vapor, que mo apresentou,―o
Euclides aclarou singelamente.
―E que santo fez êsse milagre?
―Milagre nenhum... É que o homem é um
grande filólogo, pelos modos; conhecedor profundo
da especialidade e tendo a mania da derivação
scientífica das línguas. Quere obter certas
indicações prosódicas e
sintáxicas sôbre o português.
Uma madureza como outra qualquer.
[58]
E, dizendo, Euclides Pereira ria bonachonamente.
Mas, sôbre brasas, o Silveira:
―E depois? e depois?...
Que, depois,―continuou, aprazivelmente
irónico, o brasileiro,―depois, a pretexto de êle
falar português, aquele celebrão, rompendo com
a sua engomada reserva, pedira para ser-lhe
apresentado. E vai então êle, para se descartar
da estopada e simultâneamente fazer um serviço
a um amigo, escusára-se, alegando a própria
incompetência, e inculcára-o a êle,
Silveira,
como um chavão na matéria.
―O quê!?―bradou êste, num salto de pavor,
mas no íntimo radiante.
―Assim mesmo!―confirmou jubilosamente
o amigo.―A estas horas você é considerado
pelo homem como um verdadeiro achado. Que
mais quere?...―E levemente mordaz, batendo-lhe
no ombro:―Agora, veja lá como se
porta. Olhe que eu disse que você era um
grande professor.
―Quere não que a fez fresca!―lamuriou,
atarantado, o Silveira, rascando a
testa.―Indicações
prosódicas, sintáxicas... sei lá o que
isso
é! Estou bem aviado!
―Ande, vamos!
Foram encontrar o dr. Wimeyer no mais
discreto recanto do salão, frente a uma mesa,
sentado gravemente. No seu invariável traje
negro, e gordote, rosado, o sulco devastador
das múltiplas rugas cortando em fundas ranhuras
a descaída oval do rosto totalmente escanhoado,
[59]
com o seu ar didáctico e tranqùilo êle
parecia desfiar coisas transcendentes a dois desconhecidos,
igualmente vélhos, que num religioso
êxtase o escutavam.
Mal que viu aproximar-se o tenente Euclides
com o amigo, o grave perorador interrompeu
a douta parlenda e ergueu-se, a receber
urbanamente os recêm-vindos. Houve uma ligeira
tremura de aproximação feliz no seu primeiro
apêrto de mão ao Silveira. E, depois de
todos mútuamente apresentados, e convidados
o Silveira e Euclides a sentarem-se, retomando
a palavra, o dr. Wimeyer explanou com grave
ar doutoral, num francês correctíssimo:
―Eu estava expondo a êstes srs. a minha
teoria sôbre a morfologia secular das línguas.
É a química do pensamento. É uma coisa
evidente,
racional, matemática, infalível. Falta-lhe
um novo Lavoisier a consagrar a sua axiomática
divulgação pelo mundo... As línguas
não
são mais do que puros agregados... atómicos,
por assim dizer. Creiam nisto... É das relativas
combinações e reacções dos
elementos radicais
e fonéticos dumas e outras que deriva a
seriação
fatal do seu parcelamento.
―Mas, como se explica então a
formação
caprichosa, arbitrária, de tantos idiomas e
dialectos?―aventurou,
com timidez, um dos vélhos
ouvintes.
―Ora essa! São as migrações,
são os embates
dos povos, é a acção das latitudes,
dos
climas,―aclarou o vélho pedagogo com decisão,
[60]
a fria pupila azul momentâneamente acesa.―Nada
há aí de arbitrário. Tudo obedece ao
jugo imutável de grandes leis de que ando perseguindo
o segrêdo. São afinidades que se exteriorizam,
são electrons étnicos que se expandem.
E são êstes biológicos reagentes que
lenta
e fatalmente opéram o desdobramento das raízes
primitivas em grupos progressivamente diferenciados,
na
tessitura incomovível
dos quais se
vão manifestando e impondo então modismos
e qualidades peculiares, que lá residiam já no
estado latente. Vejam, por exemplo, entre o
sanscrito e o grego, entre o celta e o latim,
entre o mosárabe e o português...―E aqui,
enviando uma terna olhada ao Silveira:―É
sôbre o que eu tenho que pedir bastante à sua
amabilidade, meu confrade ilustre, meu nobre
amigo.
O Silveira fez-se pálido e tartamudeou um
vago assentimento.
Veio tirá-lo do embaraço uma cantante voz
feminina, clara e virginal, que junto do dr. Wimeyer
e no mais puro francês, aventurou com
meiguice:
―Poderias conceder-me um momento, papásinho?...―E
logo, um pouco perturbada e
dobrando-se, ao notar a assistência:―Ah,
perdão...
mas eu não queria desarranjá-los.
Perante a deslumbrante aparição, o Silveira
pôs-se de salto em pé, aturdido, louco de prazer.
As fontes latejavam-lhe, via tudo em
branco... Mas já o encadernado professor estava
[61]
de pé tambêm e cortêsmente
solicitava vénia
para ausentar-se. Apresentou com simplicidade
à filha o Silveira, que, mudamente implorativo,
se lhe interpusera no caminho.―Era
Iréne, a mais nova das duas... «A doutora da
casa»,―sublinhou o pai com afável desvanecimento.
E daí a instantes seguiam os três,
fácilmente
acamaradados, para a coberta de bombordo,
onde o dr. Wimeyer, na sua experiência
de vélho viajeiro e por ser êste o flanco menos
batido do sol, havia sensatamente marcado cadeiras
para a família. Aí estavam, reclinadas molemente
numa atitude elegante de abandôno, a
espôsa do professor, D. Catalina, e a filha mais
vélha, Dolores,―esta lendo uma qualquer Revista
ilustrada, aquela imersa em repousada
beatitude. Pai Wimeyer apresentou-lhes com
um sorriso protector o Silveira, a quem fez
mesmo depois sentar na sua cadeira, entre
D. Catalina e Irene.―Que sorte!... nem de
propósito...―E, trocadas algumas palavras a
meia voz com a mulher, pronto voltou para o
salão, a reatar a sua voluntária
catequése interrompida.
O Silveira ficou então só e inteiro senhor
do campo, na sua tam apetecida situação junto
das três senhoras. Encareceu com lisonjeiro calor
o seu inexprimível prazer de travar conhecimento
com uma família
tout-à-fait
distinguée
como aquela: assim lho haviam afirmado e
via-se logo... Na mais amável solicitude, buscava
pela louvaminha
à outrance
insinuar-se.
[62]
E com um desvanecimento entre altaneiro e ingénuo,
D. Catalina corroborava, explicava
então,―que era argentina, aparentada ainda
com os Alvear, uma das raras famílias de aristocracia
autêntica que podiam contar-se no seu
embrionário, no seu mesclado país de
chacareiros
sem passado e adventícios sem escrúpulos.
Regressavam duma viagem de recreio, de
seis meses, pela Europa.―E, a propósito,
iam preguiçosamente arrastando êsse mais ou
menos sabido travamento de vagos comentários,
de estribilhos banais, tôda a sorte de frases
feitas, sôbre os encantos de Paris, as maravilhas
da Suíça, as preciosas coisas da
Itália.
Neste terreno fácil de consabidas baboseiras, o
tacanho Silveira, que tinha viajado algo e não
era de todo alheio ao francês, acompanhava as
três senhoras lindamente. Mas, à medida que
o diálogo aquecia, o espírito vivo e original de
Irene estremava-se, tinha um critério seu, lampejava
em pontos de vista pessoais, em contornos
por vezes imprevistos. Discreteava com
elevação sôbre coisas da arte e do
espírito. Em
tôda a Itália, nada a cativára tanto
como Florença.―Que
ambiente divino! Ali tudo era
fino, harmonioso, tocante, puramente lançado e
superiormente belo.
―É certo. Até as mulheres...―arriscou,
com instintivo acêrto, o Silveira.
―É a cidade de mais deslumbrante e copiosa
tradição espiritual. Da sua arte divina a
mesma Natureza é tributária. É o
coração do
[63]
mundo!―epilogou Irene com brio; e depois,
voltando a fechar-se na sua tímida reserva habitual,
singelamente:―Mas tambêm, a propósito
de arte, deixe-me dizer-lhe que admiro
muito, que aprendi imenso neste rápido estudo
da arte europeia, não há duvida. Oh, mas
é uma
arte demasiado sábia, uma arte tôda facturada
e etiquetada de antemão, um curso forçado de
savoir-faire em que os rasgos de
génio são
espontados como se castigam as diabruras dum
menino mal educado. Falta-lhe a espontaneidade,
que sómente o viço criador dos países
novos poderá voltar a restituir-lhe.
―O quê! tu crês na possivel
afirmação duma
arte americana,
ché?―acudiu a
irmã de Irene,
parando de lêr, num desdem incrédulo.
―Tanto como creio em Deus! É uma questão
de tempo.
O Silveira prometeu-se interiormente consultar
sôbre o caso o Mackenna. E grado e grado
a conversa do grupo tomava vida, côr, interêsse,
e travava-se mais quente e familiar agora, no
relativo isolamento em que os ia deixando a
debandada geral; pois tudo correra a estibordo,
a presenciar o primeiro número dos jogos sportivos.
E é de saber que entre os mais entusiastas
e ligeiros
aficionados passou a
pequenina e
desmanchada figura de Ramón Alvarez, o qual,
ao ver assim de súbito o Silveira já mano a
mano com as três sechoras, teve um saltinho
de angurú e fechou num
piscar de olhos patusco
a parópsia do seu espanto.
[64]
No pequenino grupo amigo de bombordo,
depois de arte e de modas, falou-se na variedade,
na magnificência e beleza da paisagem
europeia, na doirada opulência da sua luz, nas
carícias infinitas do mar, nas perspectivas majestosas
da montanha. Mas tambêm aqui a longa
e espiritual Irene discordou, e erguendo froixamente
o braço, sempre na mesma toada modesta
e simples:
―Aí está outra coisa... Quanto a esplendores
de paisagem, a deslumbramentos e pontos
de vista inéditos, hão-de-me permitir que
discorde;
porêm tenho minhas restrições a
fazer.―E
com a expressão sincera e calma, sob o
olhar atento da assistência:―Eu não sei...
talvez seja por efeito de haver nascido num país
horrivelmente chato e monótono, mas a verdade
é que no meu conceito a Natureza, ao contrário
dessa apregoada opulência, dessa mirabolante
fecundidade e viva sucessão de aspectos
que tôda a gente lhe atribui, é duma
indigência
manifesta de iniciativa e invenção,
não consegue
renovar mais que os mesmos invariáveis
coups de
théâtre e os mesmos cansados e
gastos
espectáculos, seja qual fôr a altitude ou o clima.
Repete-se a cada passo.
D. Catalina, no íntimo desvanecida, julgou
oportuno intervir:
―Lá volta esta minha filha às suas
originalidades...
Por mais que o pai a corrija...
―
Mamita! original, eu?... quando exponho
coisas que os outros podem observar por igual?
[65] ―Os outros, não!―objectou Dolores, com
mal contido azedume:―Eu pelo menos encontrei,
e creio que encontraria sempre, o contraste
mais formal entre os nevoeiros sujos de Londres,
por exemplo, as imaculadas neves alpinas
e as escarpas sangrantes da Sicília.
Mas, na mesma dogmática singeleza, Irene,
de mão estendida, fechando com o polegar o
indicador e abatendo as pálpebras:
―Tudo a mesma coisa! No dia em que tu
tenhas o coração destroçado, essa
corôa alvíssima
dos Alpes aparece-te suja como um trapo
servido. O chamado esplendor do Mundo é tudo
quanto há de mais convencional. Depende de
nós... de nós exclusivamente. Êsse
consagrado
chavão do deslumbramento pagão das coisas
não é, no fundo, mais que o espelho da nossa
sensibilidade, o reflexo exterior dos nossos estados
de alma.―A irmã e a mãe sorriam, com
um ar incrédulo; e ela, persuasivamente:―É
certo! Tal a sensibilidade no nosso íntimo braveja
ou esplende, tal vemos de roda de nós a
vida. São as mais das vezes as
vibrações cantantes
do nosso mundo interior que ao mundo
exterior emprestam todo êsse decantado brilho
objectivo. É um esplendor de empréstimo. Sem
nós não valeria nada.
―Está bem, está bem...―comentou D. Catarina,
prolongando um risinho irónico em que
havia um mal reprimido brilho de vaidade.
De sua banda, o Silveira, de olhos muito
abertos e não sabendo que contestar, limitava-se
[66]
a assentir com vagos acenos de cabeça, idiotamente.
Assim, à medida que o diálogo ganhava
interêsse, ia-o Irene esmaltando de notas originais,
de impressões verídicas e frescas que ela
extraía e desdobrava do íntimo, como um perfume
que impregnasse o seu sangue, espontâneas,
vivas, palpitantes, e que deixavam o Silveira
imerso num atolondrado mutismo, por
serem coisas impenetráveis à sua
ignorância e
inacessíveis ao seu critério. Entretanto, o seu
temperamento sensual, agora, acobardava-se...
sofria a influência transcendente e dominadora
daquela nobre e espiritual figura. Irene inclinava-se
de preferência para êle, naturalmente,
e naturalmente ia desfiando os seus amáveis
paradoxos, sempre com a mesma voz límpida
e virginal, em frases breves como toques de
pincel, vincadas pelo acento imperativo das inquietas
mãos, incendidas no lume sideral das
grandes pupilas sombrias. E era como se na
espiritualização crescente das frases e dos
conceitos
a sua indumenta animal gradualmente se
fundisse. Tôda a impressão de matéria
desaparecia...
os seus olhos eram reflexos de astros, os
seus lábios eram tintas de emoção, os
seus braços
eram volutas de sonho; e um nimbo de harmonia
dulcíssima emanava, como um fluído
mágico, de todo o seu atenuado ser, simples
e tranqùilo. Não obstante, junto dela o
coração
do Silveira, como se aspirasse um ramo de flores
de aromas violentos, batia mais apressado.
[67]
Por fim, quando, passado algum tempo,
as primeiras velaturas do crepúsculo começaram
a abater sôbre o barco o seu véu de
tristeza, D. Catalina ergueu-se, com as filhas,
pedindo vénia para retirarem-se.―Aproximava-se
a hora de comer.―Houve uma afectuosa
saùdação de despedida,―para Irene a
última,―e
depois o Silveira, imóvel e em pé no mesmo
logar à medida como ia vendo esta fina, longa
e clara figura esfumar-se na luz fugacíssima da
tarde e delir-se na distância, tinha a ilusão de
que ela não era mais do que uma pura
abstracção,
imaterial, intangível, como êle se lembrava
de ter uma vez lido de Pierrot,―que
nascera da projecção de um raio de luar
sôbre
um muro branco...
Essa noite levou-a deliciadamente o Silveira,
embalado na casta volúpia dum vago e alado
sonho, erguido nas espírulas de oiro dum alheamento
alto e inefável. A ablução espiritual
daquele curto diálogo com Irene afinára-lhe o
sentir, infiltrára-se nas mais nobres e puras
radículas
do seu ser, e como que alimpára por
momentos a sua alma fruste das escórias brutais
do instinto. Na manhã seguinte, ao despertar,
notou que o
Almeria
ralentára a marcha, e que
lhe montava ao coração e lhe toldava o
cérebro
o que quer que fôsse de opressivo e cálido.
Ganhava-o a depressiva molenta do aproximar
dos trópicos. Pela ventanilha, mesmo da cama,
olhou ao largo e viu que barrava cêrca o horizonte
uma espécie de ciclópico muro negro.
[68]
Era o arquipélago de Cabo-Verde,―recordou.
Lentamente, com uma delidora quebreira nos
músculos dormentes, reagiu, ergueu-se.―Em
cima, na tolda, não havia sol, e a luz diluia-se
em grisáceas e densas toalhas, dispersa como
andava no peneiramento molhado da neblina,
cortada como era por êsse formidável
circuìto
de montanhas áridas e a prumo, escalando sinistramente
o espaço. Não se divisava em tôda
esta imponente massa, de ruína e de sombra,
uma nota clara, um cântico de luz, uma choupana,
um rebanho, uma árvore, qualquer perdido
oasis de frescura e de
repouso. Era o
repúdio formal da Natureza. Dentro dêste
revôlto
anfiteatro de maldição e de treva, o mar,
fundo, plácido, dum tom uniforme de pêz com
espelhamentos lívidos, parecia amortalhado, era
como um lago dantesco estrangulado na convulsa
paralização dum cataclismo. E tudo falava
de desolação e de morte neste atormentado
pórtico do Averno, nesta monstruosa cavalgata
petrificada, paìsagem de pesadelo tôda em pontas
ásperas e hostis, em escarpas que davam vertigens,
em agulhas topetando o céu, em rampas
escalavradas e adustas; terra de abominação
onde a vida parára por completo... arestas
sôbre arestas, abismos sob abismos... e cuja
trágica insensibilidade o mar, com os seus mansos
rolos, buscava em vão comover, mandando-lhe
o acariciamento deslumbrante das suas
franças de espuma.
Mal tinha o barco lançado ferro e já era
[69]
simultâneamente invadido, a bombordo e a estibordo,
por um duplo cordão de negros,―puros
bronzes vivos,―ágeis, luzentes, hercúleos,
a maior parte vestidos apenas dum pó
ainda mais negro do que êles, e que trepavam
lestos à amurada ou marinhavam pelas cordas
como símeos, para deixar-se escorregar depois
sôbre as várias cobertas, trejeiteando,
garatujando,
saltando e em risinhos duros, como de
canibais, mostrando o impecável marfim dos
dentes. Eram os carregadores de carvão que
acudiam à faina. Porêm, seguidamente, da
ensurdecedora
algarada que subia do sem-número
de pequeninas embarcações rodeando, em baixo,
o vapor, um outro impúdico enxame de simiescos
truões agora surdia, igualmente ágeis e negros,
igualmente nus, mas êstes na maior parte
ainda impúberes, limpos e de formas delgadas,
desdobrando na sua exótica invasão
adoráveis
linhas de graça gentílica,―e todos na vibrante
impaciência de disputar pelo mergulho a caça
das moedas que de bordo os passageiros lhes
atiravam, por divertir-se. Uns da casca frágil
dos botes, outros pelas enxárcias e mastaréus
do vapor suspensos, toda esta coreia juvenil se
agitava sôfrega, todos pediam clamando, cabriolando,
encrespando a figura, erguendo os joelhos,
batendo as mãos, desmanchadas nas mais
inverosímeis atitudes, zurrando tôda a classe de
ruídos bárbaros; depois, quando a tentadora
rodelita
de prata ou de oiro traçava o seu meteórico
brilho pelo espaço, êles atiravam-se a nado,
[70]
de braços em ponta, como flechas, havia um
abundante chapinhar nas águas, e daí a segundos
um dêles reaparecia, amostrando e apertando
a codiciada moeda na ponta do focinho
triunfante.
Com tôda a sua abominável selvajeria, o
espectáculo
tinha um impressionante sabor pagão
a que o Silveira não pôde manter-se alheio.
Seguiu-o por algum tempo com agrado, vibrando
ao contagioso estímulo daquele torneio
brutal de agilidade e de fôrça; e apenas, uma
que outra vez, ao lembrar-se de Irene, olhava
receoso em tôrno, tomado por ela dum instintivo
pejo... no apreensivo temor de quanto o
seu virginal recato por aquela impudente exibição
animal se sentiria ofendido.
Nem ela, nem ninguêm dos Wimeyer apareceu,
felizmente. O Silveira descortinou porêm,
não sem uma certa surprêsa, gozando muito
compadres
aquele
sport bárbaro,
Helena d'Ellery e
o Mafiori, ombro com ombro, e furtados discretamente
ao besbelhoteiro rodeio das atenções
no mais escuso ângulo da ré, em cima,
sôbre a
última coberta.
Um vélho negro, derreado e esquelético, se
lhe acercou entretanto, ofertando produtos da
indústria rudimentar do país: colares,
anéis e
broches de coral, saquitos de junco, bôlsas de
sementes luzidías e duras como azeviche, grossas
gargalheiras policromas tecidas de conchas,
de corais, de pedras polidas, de caroços de
plantas indígenas e gomas aromáticas. Exprimia-se
[71]
com dificuldade, gaguejando e mascando,
num galimatias gutural todo em monossílabos,
adulteração burda do português,
cortada,
áspera, intraduzível. De roda, uns tantos mais
mercadores mendigos, como êste, circulavam
tambêm, oferecendo laranjas, bananas, côcos.
E, vista assim de perto, a hirsuta e negra turba
perdia aquela nativa selvajeria da sua primeira
investida feroz ao vapor; buscavam suavemente
comover a esquiva indiferença dos clientes, em
gestos não isentos de docilidade, dobravam-se
tímidos, humildes, e apenas se lhes traía a
braveza
inculta da condição no ávido dilatar
das
chatas narinas, na escrutadora dureza do olhar
astuto.
Entretanto, por efeito do transbôrdo do carvão,
ganhava mais e mais a imobilidade gorda
do ar um pó negro finíssimo,
imponderável,
que tudo inquinava, que tudo afogava, que tudo
invadia, e que levado na asa fuliginosa do seu
irresistível poder emporcalhante, não havia
brilho
que êle não apagasse, não havia limpa
claridade
que êle não pontilhasse de sombra.
Então
o Silveira, que começava a ver o seu rico
fatinho claro salpicado e mordido de minúsculas
lâminas negras, como coleopteros daninhos,
teve que renunciar a seguir aquela picante
aproximação de Helena e do marquês, e
resolveu deixar a tolda e internar-se no salão,
seguindo o exemplo do maior número. Mas aí
logo, do canto duma mesa, o pequenino Ramón
Alvarez a chamá-lo em grandes gestos, com
[72]
uma intimativa insistente, quáse aflita.―Queria
em primeiro logar felicitá-lo... Que bem dirigido
assalto, que sorte fulminante! Estava um
outro Júlio César... Maganão!―Depois,
ao
notar a expressão de desagrado do Silveira,
numa brusca reviravolta, com um tom insinuante
e outra vez aflito:―Que estava muito
atrapalhado... Uma andaluza, que era um vivo
demónio, pedira-lhe para escrever um pensamento
no leque. E êle, embaraçado na escolha,
não sabia bem por que decidir-se...
―Tenho aqui tantas, tantas coisas!
E estrangulava nas mãos nodosas a cabeça
descomunal, nesta hora crítica por
fôrça ardendo
em plena gestação de baboseiras.
Daí a umas horas, no
bar,
juntavam-se os
parceiros habituais do
bridge,
faltando apenas
o marquês, que num estranhável desmentido
à
sua habitual correcção, já ia
tardando. Faltava
tambêm
M.me
d'Ellery, e o seu
imprescindível
assessor, o vélho bonzo, fazia maçaneta com as
mãos sôbre o paninho verde e franzia a
bôca
exangue, em mal reprimidos sinais de impaciência.
Então, manhosamente o Silveira tomou o
Mackenna de parte, e por entre um risinho
cheio de reticências, cujo significado exacto
êste não podia apreender, perguntou-lhe
«como
ia a coisa?» E logo, todo jactancioso, o outro
segredava-lhe que ia lindamente! era uma conquista
segura...
O intrometido Contreras, que viera familiarmente
[73]
imiscuir-se na conversa, tossicou, amolou,
coçou as barbas, incrédulo. E, com ar ofendido,
o chileno:
―Parece que o amigo duvida?
―É que o vejo tornar as coisas fáceis...
Não se caminha assim. Devagar, devagar...
Entre o pensar e o fazer,
hay que tomar el
tranvia.
―Se queria apostar?
Porêm o Silveira, que tinha dançando-lhe
pícaramente diante dos olhos o inopinado grupo
do tópe da ré, naquela manhã, encolheu
os
ombros numa ironia mansa:
―Eu já não digo nada...
Havia agora cinco longos dias a passar
antes que volvessem a avistar terra firme.
Uma larguíssima sucessão de horas, sempre as
mesmas, que seriam vividas inevitávelmente
sôbre a cálida opressão daquela
atmosfera pesada
e espessa, que haviam de arrastar-se numa
monotonia sem fim entre o proceloso encapotamento
do céu e a opacidade revôlta das águas.
Então, tôda esta grande família que o
acaso
improvisára ali, sôbre o piso encerado das
várias
pontes e cobertas, naturalmente, a iludir
a anestesia morna do tédio, vinculava-se, cingia-se
mais, buscava a cada momento pretextos
novos de aproximação, lances de mútua
intimidade; teciam-se correntes súbitas de simpatia,
[74]
havia um efusivo desborde de galanteios,
atenções, franquezas; concertavam-se
negócios
e associavam-se interêsses;―como se no precário
âmbito daquela enorme jaula ambulante
êles constituissem um universo novo, como se
dentro dêsse frágil circuìto de madeira
e aço
coubessem tôdas as suas preocupações,
planos,
sonhos, febres, ambições, desejos... o
concêrto
do seu futuro e a incógnita do seu destino. Contudo,
sobrelevando a irresistível sugestão
dêste
acercamento crescente de relações e intimidades,
o Silveira teve ocasião de notar que as
senhoras Wimeyer, coerentes e imutáveis na
sua linha de inviolada isenção, não se
davam
senão com êle.
Mrs. Edith, que se havia despido
sensivelmente
da sua dignidade senhoril, andava agora
tôda entregue à divertida
seriação dos jogos. O
ardente sôpro panteísta da desgarrada vida de
bordo acendêra-lhe a repousada candura infantil
em espontâneos ímpetos; e a cada passo ela vinha
e interrogava com vivacidade o Silveira,
na sua qualidade de membro do
Committee,
sôbre horas, datas e mais circunstâncias e
pormenores,
que a redonda ignorância do interpelado
tinha que deixar invariávelmente sem
resposta. Ela reptava-o amavelmente, em graciosos
chistes e coquetonas burlas, a que servia
de intérprete a complacência cínica do
marido.―Estranhava realmente não o ver inscrito
em nenhum dos números do Programa.
Já não dizia, em suma, no
Passo
entre as garrafas
[75]
ou na
Luta dos
travesseiros, que requeriam
predicados especiais de agilidade e de
fôrça; mas em qualquer outra coisa... por exemplo,
na
Corrida das batatas, tam
fácil... ou
então no
Combate dos
galos.―Ao desenho
grotesco desta idea, tôda a patrícia figura da
irlandesa estremeceu num júbilo: e arrebatadamente,
batendo as mãos:
―Ah, sim! sim! aí está... Queria vê-lo
de
galo... Seria tam interessante!
Redondamente, o Silveira, entre bisonho e
indignado, escusou-se. Ela então, num procurado
ar inocente e um fiosinho meigo de voz,
cheio de promessas:
―Bem, mas promete-me que vai ao menos
inscrever-se no
Enfiar da agulha.
É fino! é
lindo!
E com um risinho provocador a erguer-lhe
a púrpura sensual dos lábios:―Que
fôsse, que
fôsse... que ela lhe procuraria a vitória.
Avizinhava-se a passagem do Equador, que
seria celebrada a bordo por um grande baile de
fantasia, antecipação muito a
propósito do Carnaval,
que vinha próximo, pois terça-feira gorda
era já cinco dias depois da «passagem da
linha»,
por alturas do Rio de Janeiro. Prometia
vir a ser êste Baile o número mais brilhante do
Programa das festas, e, dois dias antes, já a
população feminina de bordo quáse se
não preocupava
de outra coisa. Haveria prémios, adjudicados
por votação geral; e admitiam-se duas
classes de trajes de disfarce,―os improvisados
[76]
a bordo e os trazidos já entre a bagagem. De
família para família, de grupo para grupo,
fantasistas,
curiosas, insistentes, as interrogações
cruzavam-se; porêm, naturalmente, cada um
furtava-se, guardando absoluta reserva, e então
as mais aventurosas hipóteses, as mais abstrusas
e sôltas imaginações cresciam e batiam
asas, como borboletas demandando a luz, de
roda dêste fechado círculo de mistério.
Boquejava-se
apenas que o Alvarez preparava um número
de sensação; que Pilarita Gomez, a desenvolta
morenucha que êle
cortejava, figuraria, a
conselho seu, num
travesti algo
picante;
Mrs.
Edith resistia inflexível às
inquirições dulcerosas
do Silveira, que apenas conseguiu registar a
renovação
freqùente das conferências dela com o
cabeleireiro; e sabia-se que a petulante d'Ellery
ostentaria um primoroso traje de odalisca.
Por sinal que, como ela, uma noite, na pequenina
tertúlia habitual do
bar,
se lastimasse de
que lhe faltava um adôrno a condizer, para a
cabeça, logo todo solícito e importante o
Mackenna
prometteu arranjar-lhe uma linda peça a
propósito, meio turbante, meio diadema, havia
de ver... qualquer coisa de abracadabrante, de
sumamente artístico e grandemente extraordinário.
E o caso foi que, na manhã seguinte, êle
aí vinha instalar-se afanoso a uma das mesas do
salão, munido de tesoura, compasso, régua,
esquadro
e um frasco de cola, e sobraçando um
volumoso fardo; e convertia abusivamente êste
liso rincão do
Social
Hall em oficina, logo extraíndo
[77]
dessa boceta de Pandora pelintra a
mais desconcertante, a mais imprevista miuçalha,
rodeando-se por um abundoso aparato de
fôlhas de lata, de cartão, de vélhos
retalhos de
cachemiras, sêdas, veludos, de lantejoulas, sequins,
rolos sujos de algodão e tiras de papel
doirado. E dois dias pegados levou ali
assim, riscando, talhando, cortando, ageitando,
unindo, compondo prègas, chumaçando relevos...
enquanto limpava açodado o suor e arredava
a melena, nos intervalos de pausa benefica
que raro lhe concedia a congeminação febril
dos dedos; e sempre espargindo uma nuvem impertinente
de ciscalhos, de trapos, de escórias
fulvas, perante a admiração trocista dos
passageiros
e a muda indignação do
steward da sala,
chocado por esta suja infracção dos regulamentos.
Por fim, naquela «quinta-feira de compadres»,
logo na antemanhã, o amplo convés de
bombordo sofria uma transformação completa.
As cadeiras de repouso haviam sido recolhidas
aos flancos, e agora a marinhagem fazia àquele
largo recinto um emparedamento vistoso, colgando-lhe
em tôrno bandeiras e flâmulas de
tôdas as nações, sujeitas de alto a
baixo por
argolas e cordagens, batendo multicolores ao
vento. Até aconteceu que, por um lapso aliás
fácil de explicar, dada a mudança tam recente
das instituìções portuguesas, a
respectiva insígnia
que aparecia desdobrada ao contôrno drapejante
do improvisado salão, era ainda a bandeira
[78]
monárquica. Não escapou êste
inocente
anacronismo ao Silveira, que, radiante mas
cauto, se limitou a esfregar as mãos num raivoso
júbilo, felicitando-se no íntimo por
êste
como que público e espontâneo desagravo que
aos seus fidalgos brios o acaso, ali assim, vingadoramente
lhe oferecia. Mas o pior foi que
daí a instantes passaram tambêm dois outros
compatriotas seus,―um caixeiro da firma Brandão
Gomes, de Espinho, e um agente da
«Camisaria Confiança», do
Pôrto―adoradores
incondicionais do Basílio Teles e antigos
revolucionários do 31 de Janeiro, os quais,
tomando por uma deliberada afronta internacional
aquela inofensiva exibição da bandeira
azul e branca, logo protestaram indignados e,
de caminho passando palavra aos correligionários
que iam encontrando, breve foram todos
levar exibitivamente perante o Comissário de
bordo a expressão do seu
veto colectivo, em
termos que o escandaloso símbolo teve de ser
retirado. Enquanto a reparadora desmontagem
se fazia, aqueles dois primeiros estrénuos zeladores
da verdade histórica miravam de soslaio,
trocistamente, o Silveira, com a pupila triunfante.
E êste então, como não havia a nova
bandeira rèpublicana a bordo, monogolava com
tristeza:―Afinal, aí se fica o meu pobre país
sem representação!―E depois, num soberano
ar de desdêm, com um risinho perverso:―Que
realmente era como estava bem... que aquilo
[79]
agora, com a rèpublica, não era
nação, não
era nada.
Fechado assim por essa improvisada cinta internacional
o recinto, a mesma marinhagem com
uma vivaz e alegre solicitude, festoava-o em
abundância de renques de flores de papel, aplicava-lhe,
a multiplicar a iluminação, pêras
eléctricas
policromas. Por último, o piso encerado foi
passado a gis, para garantir a integridade corporal
dos bailarinos. E durante todo o dia pode dizer-se
que nesta parte reduzida do convés se resumiu
o melhor da vida de bordo. Os que não
trabalhavam, vinham ver. A certa altura, desceu
mesmo a inspeccionar amávelmente o andamento
dos preparativos, a sêcca figura esquiva
do comandante. Tambêm os Wimeyer vieram,
num rápido giro, ver todo aquele arranjo, ao
que êles chamavam uma diversão
cursi, mantendo-se
altivamente alheios. Ao almôço, no
comedor, foi sensível a ausência das senhoras.
E, fechados como se mantinham nas respectivas
cabines, uma bôa parte dos
passageiros, no
vivo empenho de ultimarem a tempo os seus
disfarces, resultava assim que, por momentos, e
a não ser a mancha arrogante de um ou outro
contumaz grupo
sportivo, o dilatado
stand do
tombadilho aparecia deserto.
Ao anoitecer, mal a corneta deu o primeiro
sinal para o jantar, logo o comedor foi assaltado
e invadido com uma grossa presteza, como até
àquela noite, em tôda a viagem, não
havia memória.
É que a direcção do
Committee rogára
[80]
aos senhores mascarados a fineza de descerem
a comer, trajando já os seus disfarces; e assim
os simples
mirones davam-se pressa
em ir ocupar
os seus postos de observação, na ânsia
natural de gozarem bem, desde o começo, a
aparição picante das figuras. Daí a
minutos,
os primeiros máscaras, logo acolhidos com palmas,
desciam leves os cinco envernizados degraus
da escada. A seguir, outros e outros,
aquecendo de passo o ambiente do salão, que
estimulado por esta ronda bufona de côres
estrídulas,
de silhuetas, formas, gestos, símbolos
e brilhos imprevistos, vibrava e estralava de notas
alegres, de comentários patuscos, de aplausos,
vaias, interjeições, pilhérias,
burletas e volatas
de risos. E é que havia de tudo nesse
desfile bigarrado e inédito: traços
ingénuos e
arripios bárbaros, a trivialidade e o inédito, a
brutalidade e a elegância. Ora, eram selvagens
negruscos que vinham aos saltos, guinchando e
rolando, e
boy-scouts, zuavos,
marujos,
pierrots,
fazendeiros,
gauchos, tangedores de
gaita
de foles; ora, insulsas meninas de bôas famílias,
que, ao amparo discreto de consabidas e recatadas
formas, vestiam apagadamente de
Fada,
de
Noite, de
Minerva, de cigana ou ledora da
buena-dicha.
Na mesa do Silveira, só se mascarava o
Mafiori, que não acabava de aparecer. Não
aparecia
tambêm, por igual, o Alvarez. A sua endiabrada
Pilarita, numa
louche
figuração de
apache, estava lindamente,
adorável de canalhismo
[81]
galante e desinvôlta graça.
M.me d'Ellery
ostentava uma riquíssima túnica oriental,
tôda
oiros e sêdas, a cabeça sumia-se-lhe estrangulada
no turbante birsamal do Mackenna, e vinha
pelo braço passivo e solene do seu derreado
protector, de laço branco e
frac, tendo na lapela
uma palma de esmalte verde. Tambêm vinha
em grande
toilette, com a espalda
provocadoramente
nua e altos tacões doirados, a jovem
multimilionária
Nora Scott, uma histérica mordida
de zelos pela irredutível esquivança do Silveira.
Mrs. Edith foi das
últimas a descer, tôda grave
e senhoril, a par com a complacência orgulhosa
do marido. Trajava um elegantíssimo
costume
Pompadour, que como que a aligeirava, lhe
adelgaçava a redondeza helénica das formas e
lhe punha asas na figura,―e que era todo êle
do mais puro bom-gôsto e do mais escrupuloso
rigor, desde a maranha luxuriante do penteado,
desde as miuditas flores e as prèguinhas leves
da saia e
corset, até
às leves
mouches do
rosto,
à fina pinturilha do leque picado de oiro, e à
ténue e espumosa renda do lenço
minúsculo,
amarrotado entre os dedos.―Oh, que esplêndida!―rompeu
extático, sacudido de admirativa
gula, o Silveira, mal que a viu aparecer e batendo
palmas:―Bravo! bravo! Aquilo sim!...―E
com a face congestionada, num cotovelão
persuasivo ao Contreras:―Há-de ter o primeiro
prémio!
Quando, por fim, uma redonda e rija morenita
apareceu, com o busto saltante envolto na
[82]
bandeira brasileira, os seus compatriotas, postos
súbito em pé, aclamaram-na num brado
unísono,
ao tempo que de todos os pontos da sala
os aplausos estrugiam com delírio. E no atropelado
desdobramento desta sôlta feira animal, o
vasto recinto perdera o seu frio e composto aspecto
habitual, na sua disciplinada ordenança
um tolerante parêntesis folião se abrira. Por
entre o estrilante chocalhar das loiças e talheres,
a cada momento os comensais paravam de comer
e os moços cessavam de servir, cortados e suspensos
no contágio truanesco dêste concertante
bárbaro, fustigado a espaços por
frémitos de loucura.
Pouco depois, em cima, ao compasso dum
two-step sofrivelmente
semsaborão,
a
quêu cabriolante
dos máscaras, desfilando marcialmente,
fez o circuìto do tarraco salão de baile.
Apareceu
então o Mafiori, que vinha soberbo, encadernado
em mandarim. Porêm agora o grande
êxito da noite foi para Ramón Alvarez, que
ideára realmente uma improvisação
feliz,―montado
em andas e rodeado por uma espécie de
grande roca cilíndrica, feita em madeira leve e de
cima a baixo encoberta por uma túnica de chita
roçagante, à maneira dos santos de aldeia, na sua
terra. Assim realizava um picaresco
gigantón,
que êle animava procazmente, ao alto, com a
autêntica enormidade da cabeça, prazenteira e
afável oscilando, tôda em mesuras. E nenhuma
sorte de máscara ou atenuador disfarce nesta
estadeação impudente da figura. Apenas
êle avivára
a sépia e nankin a dura projecção das
[83]
feições, e asperisára a poder de caio
e zarcão a
macieza juvenil da face, tornada assim a raíz
lógica, natural, da adusta rubefacção
do cránio.
Era um prodígio de bom humor esta valente
ampliação caricatural, êste
autocomentário alegre
à própria disformidade.
Entretanto, de roda, à parede drapejante das
bandeiras viera cingido e compacto inscrever-se
o muralhão dos curiosos. Grupos surrateiros
conseguiam vir de fóra e insinuar-se, impávidos
e de pé, avivados pelos rostitos frescos das
midinettes
da 2.ª classe, trazidas arteiramente pelos
oficiais de bordo a gozar o espectáculo. O
Silveira não teve descanço enquanto
não abordou
a irlandesa, para lhe enaltecer numa mímica
eloqùente a impecável
distinção da
toilette.
E ela, infantilmente:
―
You like?
Êle, incendido e vibrante, confirmava,―que
sim,―e sentindo um desvanecimento ingénuo
em acompanhá-la, procurava fazer-se compreender,
num desbarato exultante de admirativas
olhadas, galanteios, vénias e lisonjas, que só
cessaram quando o impróvido galã notou que
as Wimeyer tinham vindo plácidamente tomar,
num reservado cantinho, as suas cadeiras. Êle
então desligou-se da irlandeza, e mudando de
tática, forte no seu propósito de fazer triunfar
aquela deliciosa figura, digna de fixar amorosamente
as prodigiosas faculdades de realização
dum Boucher ou dum Latour, tudo era chamar
para ela as atenções, encarecer-lhe a propriedade
[84]
impecável do disfarce, a beleza galante do
arranjo, e onde quer que êle visse alguma pessoa
do seu trato, na disposição de preencher a
respectiva lista,―fôsse embora um quáse
desconhecido,―aí
corria logo a tentar persuadi-lo, a
pressioná-lo com vivacidade, a suborná-lo pela
lisonja, no implacável desígnio de fazer vingar
o seu desejo.
Grado e grado, porêm, a pressão sufocante do
ar, a aglomeração, o calor, o contágio
erótico das
danças, iam determinando na foliona turba um
começo de enervamento que se exteriorizava em
sensíveis mostras de enfado, em estases mórbidos
de cansaço. Já os homens passavam os
lenços pelo pescoço, arejavam o nariz, enxugavam
a testa; as ventarolas e os leques andavam
abundantes de mão em mão, sempre na sua
palpitação
tremulante de passaritos assustados; e
aos compassos convidativos da orquestra a ronda
flamante dos pares ia rareando.
M.me d'Ellery
tinha calor, afogada no largo e fulvo amplexo
da sua rica túnica oriental, molestada sobretudo
por essa desgraciosa bisarma que lhe oprimia
a cabeça,―uma obstrusa composição da
qual,
para mais, ela notava que todos em roda mais
ou menos claramente se burlavam. Porque nesta
criação infeliz o Mackenna, fiel aos seus ideais
cubistas, realizara, não o canto harmonioso de
curvas que seria a condizer com o voluptuoso
coleamento e as lânguidas suavidades daquele
traje magnífico de sensualidade e de sonho, mas
uma desconforme tôrre de pesadelo, tôda em
[85]
ásperas e duras linhas, em rasos planos, em
projecções
maciças, em cruas e vivas oposições,
em
ângulos que se penetravam, em pontas que se
hostilizavam, em arestas que ofendiam a vista.
Era a cabeça do Alvarez estilizada. Um retalho
de pagode primitivo incrustado num ângulo
da muralha da China. Por fim, num gesto de
definitiva emancipação, a insofrida Ellery atirou
com o molesto diadema para trás do piano, despiu
a túnica, e provocadora e ardente, com a
frescura roliça do busto bailando agora sob
a branca blusa transparente, como lobrigasse
perto o Alvarez,―que tambêm se desembaraçara
do rodapé de chita e das andas, ficando
em mangas de camisa,―travou-lhe súbito do
braço e rompeu com êle num desenfreado
can-can,
que foi um escândalo para a porção
grave
e burguesa da assistência.
As Wimeyer haviam-se retirado antes; propícia
eventualidade que o Silveira aproveitou
para ir valsar com a irlandeza. Depois, como
o momento das votações se aproximava, ei-lo
aí
de volta na sua furiosa, na sua amoruda galopinagem,
de grupo a grupo mendigando votos,
captando adesões, forçando vontades. E o caso
foi que logrou o apetecido êxito; o primeiro
prémio para os trajes já de antemão
preparados
foi com efeito conferido a
Mrs.
Edith, por
maioria enorme. Dos homens, alcançaram naturalmente
a primeira votação o Mafiori e o Alvarez.
O prémio para o melhor disfarce feminino,
improvisado a bordo, fê-lo adjudicar a
[86]
colónia dos saxões e
yankees, por um sufrágio
esmagador, a uma inglesa esnalgada e longa
como uma chaminé de fábrica, a qual tivera a
suculenta idéa de se mascarar, figurando uma
espécie de cozinha ambulante,―para o que se
deu ao trabalho infantil de semear e pendurar
pródigamente, doidamente, ao acaso, pela sua
vestimenta servil, cortada em grossa sarapilheira,
uma heteroclita profusão de caçarolas,
tachos, cafeteiras, abanos, tenazes, pás, colheres,
ramos de cebolas, toros de couves, mólhos de
rabanetes, nabos e cenouras.
Entretanto, o Silveira, querendo tirar partido
da situação, havia passado com
Mrs. Edith
ao
restaurant improvisado no
convés de estibordo,
para celebrar com ela, a
champagne,
o
seu triunfo. Breve apareceu porêm o conde a
cortar-lhes a efusiva comunhão dos
toasts, ponderando―que
era tarde, tinha sono... e ela
tambêm devia estar fatigada.―Bebeu ainda uma
taça de
champagne,
brindando pelo Silveira, e,
em grossos bocejos, despediu-se e partiu, amparado
em pêso ao busto airoso e leve da mulher.
Os outros comensais, de momento ali, foram
tambêm passo e passo desertando; de sorte que,
em breves minutos, o Silveira surpreendia-se
quáse só e como que restando o único
assistente
ainda aos últimos acordes da festa agonizante.
Sem embargo, não se sentia em
disposição de
descer à
cabine.
Aquecia-o uma instintiva febre
de movimento; carecia do róce fresco do ar e
do embalo manso das vagas, que lhe mitigassem
[87]
a mordente excitação, derivada das
múltìplas e
opostas comoções da noite. Fazendo
então o
giro distraído do barco e erguendo ao alto a
espertinada cabeça, fixou naturalmente o seu
perdido olhar na imensidade calma do céu e da
sua eterna abóbada constelada. Liberta por agora
da forte evaporação do dia, a atmosfera
alimpára
e despojára-se do véu cendrado da neblina.
Apenas a diafaneidade imponderável do éter se
baloiçava entre as sombras vagas do mar e o
vago luaceiro do Infinito. Eram sempre as mesmas
constelações fulgurantes, a mesma
pregaría
de fogo, o mesmo brilho orgíaco, aqui semeado
ao acaso por entre flócos de neve ardente, ali
afirmando aladamente no espaço o seu fulgor
solitário. Contudo, era êste um céu
diferente do
que êle estava habituado a ver na sua terra, era
um céu menos povoado, menos esplendente,
menos loução, e que por isso mesmo lhe parecia
mais amplo, mais distante, mais solene, mais
profundo. Não tam densos e brilhantes se desparramavam
aqui, e distribuidos por outra forma,
os pregos de oiro dessa incontável poalha sideral,
esparsa pelo espaço. Seguramente era êste
o cósmico scenário próprio, a divina
cúpula de
protecção adequada às ignoradas
regiões aonde
êle se dirigia, de mudas solidões
intérminas e
imensas extensões desertas.
Dentro, porêm, da relativa parcimónia e o
discreto brilho dêsse caminho dos deuses, alguns
sóis se afirmavam potencialmente em
fulgurações
vibrantes. Um dêles, principalmente,
[88]
que bastante acima do horisonte se erguia tremulante,
faíscando, ardendo... Um grande diamante
azul, prodigioso altar tendido ao fogo
entre os astros e mantido pelas vestais incoercíveis
da Via Láctea,―suspenso pomo de luz
viva, como que prestes a desprender-se da abóbada
celeste, atraído pela noite insondável do
mar e ancioso por descer a traspassá-la com o
dardo deslumbrante da sua claridade, para decifrar-lhe
o mistério e desvendar-lhe os segredos.
IV
Com a atenção dispersa e a alma prendida
nesta viva e inédita sucessão de
impressões, dos
últimos dias, o Silveira esquecera fácilmente os
seus humildes vizinhos de bordo, e nunca mais
a sua grata sensibilidade estremecera no interrogativo
anseio de conhecer bem na essência,
de palpar mais de perto, os sentimentos, opiniões,
tristezas, projectos, angústias,
condições
e desígnios daquela corda fruste dos seus
presumíveis
correligionários, que ali assim seguiam,
mesmo a seu lado, promíscuamente esmagados,
baralhados, baldeados, delidos no empilhamento
sórdido da desgraça. Agora, porêm, o
vago amadornamento
em que a temperatura tropical como
que ensopava as vontades, e as tranqùilas
solicitações
que à batida brava dos vários jogos e
diversões naturalmente se seguiam, déram azo a
que na alma dolente do Silveira a imagem saùdosa
da Pátria esfumadamente esvoaçasse, e,
[90]
junto, a sacudisse o comovido cuidado pela sorte
daqueles tantos ignorados irmãos seus, atirados,
sabia Deus por que duros e encontrados azares,
ao traiçoeiro baloiço da Fortuna.
Por isso, numa linda manhã serena e cálida,
logo a seguir ao
lunch, ei-lo que
transpõe a
portinhola gradeada do termo do seu corredor,
e se aventura curioso pela suja e triste coberta
da prôa.―O mesmo mesquinho e sórdido
espectáculo
de sempre. No seu passivo abandôno
às ignotas flutuações do destino,
aquela caravana
compacta de obscuros ilotas da Dôr ia e vinha,
anudava-se e distribuía-se em
formações de
acaso, era como um grosso formigueiro humano,
incansávelmente montando e sumindo-se
pelo negro óculo que dava ao porão, cavado a
um canto, fundo e insondável como um
abismo.―Porêm
a inesperada aparição do Silveira causou
ali geral estranheza. A descida dêste importante,
dêste flamante e feliz desconhecido, té
as patentes e repulsivas angústias daquela densa
colónia eventual do infortúnio, fazia que as suas
desprotegidas camadas, dando-se um instintivo
alarme, se repregassem,―uns por uma vaga e
hostil desconfiança, outros como que pelo pejo
da própria miséria. E o Silveira ia passando, ia
seguindo compassadamente, manso e afável, nos
forçados torcicólos a que o obrigava o
atravancamento
pelintra do recinto; ia cruzando os grupos,
com o ouvido colhendo, atento, os cortados
trechos do diálogo, com o olhar mirando fito o
desenho e o arranjo das figuras; e, por sentir-se
[91]
ali o alvo admirativo das atenções, no
íntimo
contente. Até que, por fim, se acercou familiarmente
dum reduzido círculo de rudes gentes do
campo, quáse todos de pés nus, que se lhe
afiguraram
portugueses, pela linha, pelos trajes,
pela expressão, pelos gestos tacanhos, pelo
olhar ingénuo. Eram patrícios seus, com efeito.
E êle então, protector, insinuante:―Que era
tambêm português e ia para Buenos-Aires.
Muito estimava conhecê-los... E àqueles que
seguiam por igual para a Argentina, muito prazer
teria em vê-los e servi-los por lá...
―
Agardecido, muito
agardecido, senhor!―balbuciou,
de lábios confusos, um meio ancião
vestido de saragoça, rapado e calvo, descobrindo-se.
Dulcerosamente o Silveira completou:
―Em fazer-lhes todo o bem que possa.
―Ai, que palavras de anjo! que rico senhor!―exclamou,
com a voz molhada, uma
trigueira e rude quarentona, de saia de fólhos,
cabeção de morim branco e uns pequeninos
olhos doces, perdidos na aspereza da face enrugada
e curtida. E num cotovelão entusiasta ao
companheiro:―Ouviste?
Êste arrastou meladamente, dobrado numa
mesura e parando de rilhar uma banana:
―Não faltará ocasião.
Procurando gradualmente insinuar-se, o Silveira
tornou:
―Vêem então procurar fortuna?
―Se aquilo por lá está tam mau... senhor!
[92] ―Então?―o Silveira logo comentou, com
um risinho perverso:―É o que vocês ganharam
com a rèpública.
―Eu cá nisso, senhor, não sei falar...
―Êle a coisa já lá vinha
detrás...―aqui se
permitiu arteiro observar, adiantando-se um rapagão
amplo e forte, de calça de bombasina,
camisola e grande chapéu cinzento, enquanto
raspava um fósforo no quadril, para acender
o cachimbo.
O Silveira teve uma azêda, imperceptível
contracção dos labios.
―Parece-te?
―Sim, que isto é com'o outro que diz...―retrucou,
sempre no mesmo ar intencional e
altivo, o marmanjão.―Com rei ou com roque,
nós cá, os pobres, ficamos sempre com'o o
carrapato
na lama.
E aspirava voluptuosamente as primeiras fumaças
do tabaco ardendo.
O Silveira, despeitado, manteve uns segundos
de arreliativo silêncio; mas logo, dominando-se:
―Bem! pois, repito, naquilo em que eu os
possa servir... Interessam-me todos muito. Já
vêem que vim de propósito para
conhecê-los.―E
num refinamento interesseiro da sua amável
solicitude:―Qual de vocemecês é o que canta
tam bem o fado?
Houve de roda uma vibração unânime de
envaidecimento alegre.
[93] ―O guitarrista? Ah, isso há-de ser ali assim
o Matias
gingão.
―Matias! ó Matias!
―
Adrega aqui, demónio!
Dirigiam-se a um pobre rapaz, delgado, pequenino
e doente, que junto dum outro grupo,
de pernas cruzadas, no chão, estava vendo jogar
as cartas; e que ao ouvir que chamavam pelo
seu nome com tam empenhada intimativa, rolou
moroso os olhos, primeiro, depois ergueu-se
com dificuldade, indeciso, e veio por fim avançando,
a cabeça nua, arremangado, descalço,
derreado e inerte, preguiçosamente.
Acolheu-o o Silveira numa efusiva expansão
de agrado, ameigando a voz, erguendo os
braços.
―Ora viva lá! meu caro Matias.
―Em bem o diga e bem lhe vá tambêm,
senhor,―murmurou com humildade o recêm-vindo.
―Algarvio?
―De Fornos de Algodres, fidalgo.
―E p'ra onde se dirige vocemecê? Argentina
ou Brasil?
―Com sua licença, vou-me até à
Argentina,
senhor.
―Bem, muito bem! Palpita-me que ainda
lá havemos de ser dois bons amigos.―E ante o
olhar oblíquo e a bôca de espanto do Matias,
batendo-lhe afável no ombro:―Eu queria ―Bem, muito bem! Palpita-me que ainda
lá havemos de ser dois bons amigos.―E ante o
olhar oblíquo e a bôca de espanto do Matias,
batendo-lhe afável no ombro:―Eu queria
felicitá-lo
pela sua rica voz, por aquelas tam lindas
trovas... cantadas realmente com uma intenção,
[94]
com uma expressão, com um mimo e uma fé
que querem dizer muito...
―Nada, senhor.
―Ora! não me diga você que as não
escolhe,
que não exprime nelas o seu verdadeiro, o
seu íntimo sentir...
Mas simplóriamente o Matias, de braços pendentes,
como um môno, encolhendo os ombros:
―Eu não sinto coisa nenhuma.
―Então, aquela
piada ao
Afonso Costa, na
outra noite?
―Sei lá! Aquilo é uma moda que anda
lá
na minha terra. Que seja essa ou que seja outra,
que minga faz?
O Silveira estremeceu e os olhos chisparam-lhe
furiosos, num repelão de contrariedade. Os
demais sorriam.
―O quê!? pois, verdade, você não liga
maior sentido aos versos? não é
contrário à
rèpública?
―Ó fidalgo, é que a minha pobre guitarra
está um chanfalho vélho, e eu
mesmamente de
políticas nada entendo...―E, estimulado pela
olhada atrevida que o homem do cachimbo lhe
mandava, o Matias acentuou com firmeza:―E
é como está certo, sim! Que essa gente
graúda,
com o devido respeito, faz tam pouco caso de
nós, que ainda o menos que nós podemos fazer
é pagar-lhe na mesma moeda.
Desconcertado, nervoso, o Silveira mendigava
de roda, com o olhar imperioso e intranqùilo,
uma simpatia, uma adesão, um qualquer
[95]
desmentido a estas descabidas e arreliantes
afirmações,
tam longe da sua espectativa como fóra
do seu desejo; e como fixasse com particular
insistência um aldeão alto, espadaúdo e
sêco,
logo êste, singelamente, o destroçado
chapéu
de palha girando na concha das mãos calosas:
―Eu cá, meu senhor, a minha política
é ver
se alcanço a juntar uns cobres com que possa
depois viver tranqùilo no meu torrãosinho,
mal'a mulher e os filhos. E já que me não fui
à
África, malhar nos pretos, resolvi deitar té ao
Brasil, em cata da famosa árvore das patacas.
O que a sorte quiser...
―Quere então dizer que tambêm você se
conforma com essa usurpação tôrpe da
rèpública?
―Se ela está, já agora deixá-la
estar.
No íntimo vèxado por mais êste
desengano,
renitia entretanto o Silveira na sua raivosa
inquirição.―E
você?... E tu?... E tu que dizes?―Todos
se fechavam porêm no seu invariável
obstinamento humilde; e foi ainda o mocetão
do cachimbo quem pôs termo ao inquérito,
sentenciando
implicativamente:
―Está muito bem! O que é que se ganha
agora com mudanças?
E atirava, arrogante, o chapéu para a nuca,
as narinas e os lábios fumarando num regalo.
―Súcia de palermas!―não se pôde o
Silveira
conter que não exclamasse, na insofrida
explosão do seu despeito.―Por isso haveis de
ser sempre os eternamente explorados.―Deu
[96]
de roda umas passadas curtas, arrepelou o bigode,
coçou a nuca; e depois, conciliadoramente:―Mas,
em suma, não vale zangar... Sou
aqui vosso vizinho, e amigo, repito, apesar de
tudo.―Deu dinheiro ao Matias para uma guitarra
nova; depois, num largo gesto altaneiro,
ao grupo:―Bem! adeus! Ainda vos hei-de
fazer abrir os olhos.
E desandou bruscamente, perante a indiferença
burlona da assistência.
Daí a minutos, em cima, e amarfanhado
numa das espêssas poltronas do
Social
Hall,
ruminava em desalento êste propagandista infeliz
o imprevisto e burlesco insucesso do seu
inquérito, quando se lhe dirigiram Euclides Pereira
e o conde de Horrowby, que precisamente
o andavam buscando. Tinha que descer com
êles à
peluqueria, a escolherem as prendas
para
os prémios ganhos nos diferentes jogos, e cuja
distribuìção solene estava marcada
para antes
do grande Concêrto final, naquela noite. Era
uma diversão a propósito, à
quebrantada pressão
do seu desânimo. Não se fez rogar; e aí
descem
os três a internar-se na
cabine inimaginável do
barbeiro de bordo,―um cubículo acanhado e
abafadiço, batido àquela hora ardente pelo sol,
com duas exíguas lucarnas apenas sôbre o mar,
e que alêm do mobiliário e utensílios
indispensáveis
ao completo exercício da profissão, era
todo riscado em prateleiras, e oprimido, atravancado,
estrangulado, povoado de lés a lés,
tomado de alto a baixo, por uma aluvião
inverosímil
[97]
de tôda a sorte de pequenos artigos para
negócio, desde as jóias, as mil luxuosas
bugigangas
de perfumaria e
toilette,
até às peças mais
comuns de vestuário e adôrno, e um perfeito
arsenal de brinquedos infantís. Havia espaço para
tudo, menos para o ar, neste pequeno recinto
aplastador que realizava um paradoxal desmentido
à impenetrabilidade da matéria. Uma temperatura
de fogo e um arranjo de
casa de
prego.
A bonachona espôsa do conde chegou ao
mesmo tempo. E logo o mestre-barbeiro,―um
francês ruivo e claro como um cacho da Champagne,―a
saltitar vivo e ligeiro em tôrno dela,
pedindo indicações, apontando, mostrando,
trazendo
coisas. A cada nova oferta, que o meliante
sabia alertemente encarecer, a bondadosa e imperturbável
senhora, sossegadamente, examinava
rejeitava ou escolhia, e solicitava gentilmente o
parecer dos seus três colegas, que se limitavam a
baixar num assentimento cortês a cabeça.
Então,
logo o esperto
figaro apartava
contente a mercadoria,
anotava qualquer coisa no seu
carnet
e
passava a impingir outro artigo. E assim monótona,
infindável, secante se foi prolongando a
tarefa, êste duelo picante de aplicação
ferido
entre a esperta indústria do barbeiro e a solicitude
impávida da condessa, insensível ao calor,
refractária à impaciência.
Não assim o Silveira,
que enjaulado naquela inacção e enervado pela
temperatura asfixiante, mudava de posição a
cada momento, tressuava, sentia tonturas, e ia
buscar a incidência mais favorável do ventilador
[98]
ou abanava-se com duas ventarolas ao
mesmo tempo, increpando-se íntimamente por
ter vindo. E neste abrasador suplício passou
uma hora que lhe pareceu um século.
Por fim, à noite, realizou-se no
Social
Hall
a solene distribuìção dos
prémios, rodeada dum
cerimonial quáse diria litúrgico, atenta a
dignidade,
a seriedade, a compostura, a
tenue
escrupulosa e as compenetradas atitudes por
todos ali invariávelmente mantidas, desde as
primeiras às ultimas figuras. O mostruário
faíscante
das prendas pompeava as suas gulosas
tentações esparso em abundância
sôbre uma
grande mesa, colgada de veludo-cereja, no tôpo
do salão, sôbre um estrado; à roda,
exibia-se
o grupo esfíngico dos membros do
Committee,
de
frac e laço branco, e
a condessa de Horrowby,
em grande
toilette, sentados todos
gravemente.
Posto em pé o conde de Horrowby e
feito um grande silêncio, êle então,
arqueando
numa atenta
reverence o peitilho
reluzente, mordiscou
por entre dentes
for the select
assembly
um pequeno
speech, quáse
inaudível,―dobrado
e pregado sempre no mesmo ademân cortês,
inexpressivo e imóvel, os braços longos e hirtos,
de punhos sôbre a mesa. A seguir, sentou-se,
e simultâneamente, como que impelidos pela
mesma mola, erguiam-se a condessa e o capitão
Stayton; passando êste a chamar em voz alta os
premiados, cada um dos quais, em traje de cerimonia
tambem, avançava, franqueava em respeito
o majestático recinto do estrado, colhia
[99]
das palmoiras enormes da condessa a bugiaria
que lhe fôra destinada, e retirava mudo e feliz,
num vago atordoamento de prazer, ante as palmas
convencionais e os
hurrahs
complacentes
da assistência.
Seguiu-se o concêrto, cujo programa houvera,
em bôa verdade, um certo embaraço para
organizar. Não abundavam a bordo os
virtuosi
nem os amadores, tornando-se assim deveras
árduo o problema de reùnir e combinar alguns
números mais, alêm do chirroteio
mercenário
da orquestra. Prestou o Silveira na apertada
emergência um assinalado serviço, pois conseguiu
o concurso difícil das meninas Wimeyer,
que condescenderam graciosamente em exibir-se,
por uma atenção muito especial para com
êle,
executando Dolores ao violino uma melodia de
Schumann, acompanhada ao piano pela irmã.
Por isso lhes couberam a bem dizer as honras
da noite; assim como ao Alvarez, que recitou
uma desgrenhada elegia
sentimental,―
Corações
famintos,―composta, informava o Programa,
expressamente para aquela noite; e tambêm a
um vélho inglês, todo branco, de olhar menineiro
e afável, que se distinguiu improvisando
um humorístico monólogo todo obrigado a
contracções
faciais, trocadilhos ingénuos e risíveis
infantilidades, com que os seus conacionais gozaram
imensamente.
O
God save the King, pela orquestra,
e por
tôda a sala, de pé, escutado religiosamente,
pôs o
termo de rigor a esta escovada tertúlia da noite.
[100]
E foi a última diversão do Programa de festas.
No dia seguinte ia começar o progressivo
êxodo dos passageiros, atingida como seria
então a costa das primeiras terras do Brasil.
Foi, primeiro, Pernambuco,―a lucilante Veneza
tropical,―luminosa e tranqùila emergindo,
como uma evocação de balada, da brava
fúria
impotente das ondas, incansavelmente erguidas,
roladas e desfeitas contra a ruiva muralha irredutível
dos seus recifes; e prolongada depois
suavemente, para léste, por uma fresca, macia
e tenuíssima restinga de terra que pelo mar
fóra se estirava indefinidamente em ponta, como
uma imensa piroga verde, empenachada pela
umbela grácil das palmeiras, salpicadas de chacaritas
brancas. Foi, trinta horas depois, a esbelta
Baía,―o vélho empório tradicional do
tempo das lusas descobertas,―reclinada molemente
sôbre uma luxuriante alfombra de mato
e flores, esmagada de tôrres, pletórica de
igrejas,
e àquela hora matinal batida e incendiada
em cheio pela carícia gloriosa do sol nascente.
Tôda a clara cidade assim palpitava, fulgurava,
ardia numa crepitação paroxísmica de
côr que
emprestava a êsse quente deslumbramento panorâmico
o mais antitético relêvo, na crua passagem
do verde espêsso e sombrio dos ásperos
taludes, a seus pés tendidos, para a policromía
bárbara dos trajes da multidão formigando ao
longo dos cais e para as tintas berrantes saltando,
ladeira acima, no anfiteatro loução da casaria.
Dois dias depois,―justo em terça-feira
gorda,―já
[101]
devia o
Almeria
lançar ferro na incomparável
baía do Guanabara. Era um dos grandes
acontecimentos da viagem. Reganhára agora
uma inquiritiva animação a vida de bordo, onde
todos mais ou menos expressivamente manifestam
o seu interêsse, todos aguardavam com vivacidade
crescente o recorte feérico e deslumbrante,
na linha molhada do horizonte, dessa
esplendorosa, dessa surpreendente e colossal
orquestração de luz, de côr, de
exuberância e de
relêvo, que era Rio de Janeiro, a maravilha do
mundo. Os nacionais tinham um legítimo sentimento
de vaidade, os estranhos nutriam uma
não menos legítima sofreguidão do
inédito.
Entre os mais interessados e inquietos, era
de notar a vibrante impaciência do joven Mackenna.
Porêm certo que não era própriamente
a antecipada visionação das pinturescas
maravilhas
do Rio que num alvorôço idealista lhe
sacudia os nervos de artista; uma outra oculta
determinante havia, mais prosaica, mais animal,
a acender-lhe no olhar e a fazer-lhe correr
nos gestos esta sôfrega palpitação de
todo o
seu ser, irrequieto e ávido. É que precisamente
no Rio de Janeiro a formosa e esquiva
M.me
d'Ellery ia desembarcar; iam os dois ali separar-se,
talvez para sempre, neste limite fatal
posto ao seu ameno convívio; e assim êle tinha
forçosamente que precipitar a solução
ao seu
assédio galante, nesse apertado prazo de dois
dias. Com uma assiduidade, uma persistência
incansável, com um calor por vezes audaz, nos
[102]
últimos tempos o jactancioso galã fôra
apertando
gradualmente o seu amavioso cêrco, e
segundo as mais ostensivas indicações, com o
melhor êxito; porêm não obtivera ainda a
rendição
definitiva. Ao mesmo tempo, acontecia
que o seu feitio demonstrativo e pomposo fizera
com que êste singelo episódio de
cortesanía banal
désse bastante nas vistas. Havia um pequeno
grupo de besbelhoteiros trocistas que o
espiavam; e os mais íntimos a cada momento
lhe disparavam chistes, o estimulavam com
depreciativas alusões, celebravam antecipadamente
o seu fracasso, assediavam-no de burlas
molestas e sátiras importunas. Não havia pois
um minuto a perder. Na prova, ruidosa e fulminante,
do seu triunfo estavam igualmente
empenhados a linha do seu amor-próprio e o
fogo do seu desejo.
Foi o motivo pelo qual, na noite dêste domingo,
o Mackenna impôs um implacável bloqueio
sentimental aos domínios afectivos da
francesa. Havia no convés de bombordo o costumado
baile semanal; e o meliante tôda a noite
dançou com ela, e nos intervalos levava-a ao
bar, a beber, e insinuava-lhe coisas
cálidas e
perversas, despedia-lhe frases imperativas, aventurava
proposições equívocas, a tudo o que a
ladina respondia com sorrisos que eram incitamentos,
com evasivas que eram provocações,
com abandonos que eram capitulações, com
estremecimentos
que eram promessas. Mas nada
de lhe conceder a aquiescência nítida, formal,
[103]
a uma entrevista. Exasperado então, mas
sempre optimista e fátuo, o Mackenna deliberou
recorrer ao assalto. Seria o supremo
recurso salvador. E filosofava convicto:―Serem
tomadas à viva fôrça era, com efeito, o
melhor prazer para estas taboletas avariadas
duma menos que problemática virtude. Era o
que aquela bêbeda queria... Era o mais seguro
caminho. Mas tomá-la de surprêsa, com
êxito, como?... Naquele meio acanhado e bulhento,
sem a tácita anuência dela, era
difícil.
Só se fôsse de manhã... O derrancado
Sganarello
levantava-se tarde; os seus pêrros movimentos
de tabético e a indolência filha do
tédio
retinham-no de ordinário na
cabine, até muito
por êsse dia dentro; por êste lado estava seguro.
Se êle então, nessa propícia hora
matutina,
pudésse surpreender Helena! mas surpreendê-la
bem de-veras, apanhá-la de improviso,
em condições morais e materiais de não
poder oferecer-lhe maior resistência...―Inflamado,
enardecido, espremia a inventiva, planizava,
rebuscava. E súbito, batendo na testa, com
um relâmpago genial na noite ardente dos grandes
olhos negros:―Ah, aí está! No banho...―Passou
imediatamente ao
deck da sua
imaginada
vítima; abordou com discreção o
steward,
cuja cumplicidade concluiu por obter a
trôco duma bôa gorgeta; e recolhendo depois
à
cabine, todo o resto da
noite levou
embalado, aquecido na regalada antevisão do
saboroso triunfo que para êle seguramente
[104]
ia marcar o delicioso alvorecer do dia seguinte.
Na primeira manhã ei-lo logo a pé,
lésto e
pimpante, procedendo às habituais
abluções,
fazendo uma
toilette minuciosa.
Depois, mansamente,
deixou a
cabine e escoou-se para o
corredor,
tendo vestido um garrido
pijama todo
em borlas, alamares e viézes de sêda, a
cabeça
nua e a perfumada melena ondeando. Sem perda
de tempo estava em cima, no
deck de
Helena,
e aventurava-se afoito ao recinto dos banhos
destinados ás senhoras. Aí trocou um breve e
furtivo olhar com o
steward, que lhe
fez um
sinal afirmativo de cabeça; avançou
ágil uns
passos, relanceou em tôrno os olhos cautos, e
tendo-se certificado de que ninguêm passava
cêrca, arpoou o botão duma determinada porta
com os dedos trémulos, entreabriu-a... e ia
entrar de salto, quando de dentro estrugiu um
grito de pavor, um argênteo e agudo grito feminino,
ao passo que de dentro tambêm, acudia
súbita e inesperadamente, ante a mirada atónita
do Mackenna, o sobrecenho grave e a mão
rosada do Mafiori, a cerrar a porta.
Foi a bordo um pequenino escândalo. Apesar
da sua relativa presteza e moderado ruído, esta
scena picante não passou de todo despercebida.
Ao partir para a sua
donjuanêsca investida,
não
se deu conta o Mackenna de que dois dos seus
alegres espias, atraídos por não sei que
divinatório
instinto, o foram seguindo. E êstes, naturalmente,
da esquina do exíguo corredor, mal
[105]
assomando as cabeças, haviam saboreado o
burlesco fracasso da desastrada aventura; ao
tempo que, simultâneamente, das portas dos
banhos contíguos alguns interrogativos bustos
surdiam tambêm, ao aflitivo alarme daquele
agudo brado feminino. Nem uns nem outros
alcançaram contudo divisar a ponderada silhueta
do Mafiori, dentro da
cabine,―o que
teria sido para a sua curiosidade doentia o cúmulo
do regalo. Mas haviam visto o bastante
para a nítida compreensão do sucedido. De
sorte que, daí a minutos, já a notícia
do truanesco
sucesso havia feito o giro alegre de
bordo, com fulminante rapidez solicitada ávidamente,
de grupo para grupo, e logo passada e
acolhida em acres segredinhos, vivas chamadas
e perversas reticências. E de bôca em
bôca,
êste singelo episódio ia tomando vulto, agrandava,
complicava-se; por último, já
afiançavam
a vingadora intervenção do marido, falava-se
em vias de facto. Daqui, uma notoriedade bem
pouco invejável para o desabusado Mackenna,
que arrastava agora pelos recantos mais escusos
a sua vaidade amarfanhada, como um sátiro
batido, e já não sabia por fim onde meter-se,
certo como era que por tôda a parte um malicioso
interêsse acolhia a sua aparição, logo
farto sublinhada de bisbisoteios de risos, facécias
e burletas. As mulheres olhavam-no com
piedade indulgente, os homens com humilhante
mordacidade, não isenta de inveja. E agora a
leve e adoidada
Pilarita, mais do
que ninguêm
[106]
intrigada e impaciente, querendo à fina
fôrça
saber
lo que pasara, batia os
pésitos e golpeava
com os punhos a pequena mesa onde abancava
o Alvarez, o qual se mantinha impenetrável,
enquanto zombeteiro e veloz anotava o episódio
nos seus inseparáveis linguados, desorbitado
em trejeitos loucos.
Nesta divertida manhã, à hora do
almôço,
nem
M.me d'Ellery baixou
ao comedor, nem o
Mackenna. Entretanto à mesa dêste, o picaresco
assalto matinal foi o têma obrigado da conversa,
apreciado com jocosa vivacidade por todos,
à excepção do Mafiori, que se manteve
mudo, bonachão e plácido como nunca, nos
intervalos
de comer fazendo bolinhas de pão e
mirando desvanecido as unhas.
Pouco tempo depois, em cima, e de pé contra
um ângulo da amurada, reùniam-se em
íntimo
grupo o Silveira e o Contreras, com o tenente
Euclides e mais dois amigos. Aí veio
naturalmente à balha o caso-Mackenna.
―
Picarón!―comentou
ruidosamente o Contreras,
desmanchado em grossas gargalhadas.
O brasileirito, vendo o magno acontecimento
pelo seu cândido prisma de noivo, fulminava-o
com sincera indignação, taxando de
«imperdoável
desafôro» um desacato assim, àquela
hora do dia.
―Eu acho imensa graça... É cá dos
meus!―acudiu,
tolerante, o Silveira, esfregando as
mãos de contente.
O conde Améglio, que chegára justo ao
[107]
tempo de recolher as homílias ingénuas do
brasileiro, rugiu então ameaçadoramente.
―Havia de ser comigo.
Todos se voltaram, a encará-lo com fixidez
espectante. E êle, num sobrecênho de arrogante
desdêm:
―Conheço de sobra os processos e os ardís
dêsses pulhastras.
―Ó conde...―murmurou baixinho o Contreras,
mirando cauteloso de roda e puxando-lhe
do braço.
Améglio porêm, de olhar duro, alteando a
voz, minaz e insensível ao aviso:
―Mas conheço-lhes tambêm a grande cobardia
essencial. Sei que êsses bandalhões não
são fortes senão diante de saias.
―Ah, sim?...―interveio o Silveira, picado
de interêsse, adiantando-se.―Ó conde, amigo
conde, se não é
indiscreção, conte-nos lá...
―Bem simples! Tenho mulher, sabem...
Pois nunca hesitei um momento em lavar com
sangue, no campo da honra, tentativas de ultraje
semelhantes.
Era agora o Contreras que pávidamente, apurando
o ouvido, se acercava; ao passo que o
Silveira, positivamente desconcertado por esta
súbita revelação, no conde, de
inimaginados
brios, inquiria, em dúvida:
―Algum duelo?
―Cinco. Nada menos de cinco.
―De morte?
―Não! nunca chegamos a tanto...―aclarou
[108]
o conde com moderada importância; e num
assômo quixotesco, arredando as bandas do jaquetão
e enfiando os polegares nos sovacos:―Mas
a todos tive a sorte de aplicar o merecido
castigo.
O tenente Euclides voltou-se discretamente,
a dissimular um risinho incrédulo. O Contreras
afastou-se, manso e humilde, coçando compenetrado
a cabeça. De sua banda, o Silveira rejubilava.
Êle desconhecia o conde neste seu
intempestivo disfarce cavalheiresco e brigão;
aquelas teatrais bravatas de espadachim pareciam-lhe
uma contrafacção absurda, não as
tomava
a sério, não cria nelas.―Minotauro travestido
de Othelo, podia lá ser!―E contudo a
pundonorosa explosão do conde estimulava-o.
Ante a ameaça cocegante de perigo, um lume
de reacção viril lhe afogueou o rosto ardente,
e o seu carácter amorudo e ribaldo espertava,
vibrava de belicosos ímpetos, latía de energias
novas.―Agora sim! é que êle ia afervorar nos
seus pérfidos galanteios junto da irlandesa. Até
à provocação! até ao
escândalo!―A ver se
conseguia fornecer ao marido o pretexto para
mais um lance de honra que lhe permitisse, porêm
desta vez com sorte adversa, contar a meia
dúzia.
A chegada ao Rio de Janeiro realizou-se infelizmente
de noite. Um pouco de marejada e
o vento contrário haviam ralentado a marcha
do
Almeria, que assim, quando
lançou ferro,
da formosíssima capital brasileira apenas deixava
[109]
entrever vagas formas de relêvo, manchando,
amplas e azúis, a imensa téla diáfana
da
sua claridade deslumbrante. Muita gente desembarcava
aqui; de sorte que, já horas antes, eram
algo de inabordável as imediações do
portaló,
onde se acotovelavam e prensavam duramente,
numa gerarquia bárbara, as famílias impacientes
por chegar; e onde, tambêm, sôbre improvisadas
alfombras de lona, se amontoavam, num
grosso empilhamento inverosímil, fardos, malas,
caixotes e baús de tôda a espécie,
mantas, chapéus,
paráguas, papagaios, cachorros, saguís,
cêstos de flores e cabazes com fruta. Por tôda
a parte havia câmbios cerimoniosos de cartões
de visita, ou efusivos apertos de mão, amáveis
oferecimentos, beijos, abraços, risos, tristezas,
miradas saùdosas, lágrimas furtivas. Mas
aos felizes que tocavam então o termo da viagem,
havia que agregar ainda os que se propunham
desembarcar como simples turistas, para
verem alguma coisa, para gozarem, movendo-se
um pouco, estas quantas horas de paragem benéfica
do vapor ali; e sobretudo, sentindo-se
dominados pela ardente baforada de loucura
que lhes vinha de terra, para irem ali passar
uma bôa noite
de garufa.
Apesar de bastante instado para baixar
tambêm, o Silveira resolveu ficar. O tenente
Euclides oferecera-se amavelmente a ser-lhe
companhia e guia na cidade, mas por aquela
noite sómente;―êle bem devia compreender,―a
noiva esperava-o com ansiedade, e tinha
[110]
que seguir no primeiro trem para S. Paulo,
logo na manhã seguinte. Por igual os Wymeyer,
tímidamente sondados, redarguiram,
com mal contido desdêm, «que não
desciam...
que para quem, como êles, vinha da Europa,
não valia a pena». Para mais, a colónia
inglesa
de bordo, ponderando muito sensatamente
o horror de bérrata, confusão e desordem que
devia ser, para um recêm-chegado, aquela noite
de Entrudo, no Rio, resolvera, em vez de desembarcar,
fretar antes um vaporsito onde
passasse despreocupada e íntimamente, ela
só, algumas horas, bordejando a baía, fazendo
o suave e demorado contôrno daquela fantástica
decoração, vogando plácidamente ao
voluptuoso
embalo daquele mar de sonho. Era
uma idéa deliciosa.
Miss
Nora Scott convidára
o Silveira para a encantadora excursão. Os
Améglio iam tambêm.―Que mais queria
êle?...
Para ver o Rio tinha o dia seguinte.―Resolveu,
pois, ficar; e, depois de jantar, sem fazer
maior caso da estrepitosa festa carnavalesca
que a criadagem de bordo organizára na
ponte da 2.ª classe, tomou ao portaló e desceu
ligeiro ao vaporsito, cuja silhueta coqueta se desenhava
em baixo, convidativa e luzente, no regaço
manso das águas trepidando, fumarando,
bailando alegremente. Daí a minutos, punha-se
em marcha, e sobre o seu minúsculo convés,
escassamente alumiado, foi difícil nos primeiros
momentos a identificação das figuras. A infeliz
Nora Scott foi a primeira a fazer-se reconhecer
[111]
pelo Silveira, abordando-o e abandonando-se-lhe
com carinhos, incendida como ela vinha
nos seus propósitos firmes de
seducção, provocante,
amorável, tôda tules e rendas. Porêm,
ao primeiro pretexto decente, o Silveira afastou-se;
e pronto aí estava êle já ao lado da
sua
apetecida irlandesa, trepados, muito amigos e
compadres, os dois à mesma clara-bóia que
dava luz às câmaras interiores, à falta
de mais
cómodo assento. O conde mantinha-se longe
e a velatura crepuscular do ambiente era o
mais discreto cúmplice, agora, a esta doce e
inefável aproximação, sem testemunhas
e sem
peias.―O ar estava tépido, tranqùilo e na sua
morna quietação o crespo afago da brisa passava
como a carícia dum leque de plumas. De
roda, pelo caprichoso e largo desdobramento
da cidade, as avenidas e os cais da beira-mar,
iluminados profusamente, eram um colar faíscante
de pedraria e oiro, riscavam rútilas e
esplendorosas curvas. E não tinha fim, não
tinha limite esta invasão delirante da claridade.
As suas imensas linhas de fogo sinuosavam,
penetravam-se, contrapunham-se, prolongavam-se,
cortavam-se, profusas, ondeantes, e por fim
seguiam sôltamente ao largo, pontilhando a
vaga opacidade da tréva, densas, vivas e espertas
sempre, embora grado a grado amortecidas
e apequenando, na distância. Se o vapor se
aproximava da terra, junto com os jorros da
luz branca, que davam uma nítida visão
fragmentária
das coisas, vinha então o grosso éco
[112]
da foliona febre da multidão, em lufadas
alucinantes.―
Mrs.
Edith e o Silveira seguiam muito
amigos e unidos, sentados sempre a par,―e
isolados no seu mútuo embevecimento, alheios
ao tempo e ao logar, a favor da parcimoniosa
luz postos a seguro de vistas importunas,―gozavam
juntos, mudamente, a infinita delícia daquela
hora incomparável, admiravam enleados,
pela borda sinuosa dos cais, aquela parada
inflamada e ardente, essa corda, êsse rosário
interminável de sóis, mais rubros, mais claros e
mais firmes que os sóis do alto... esplendente
barra de oiro cravada no dôrso glauco do mar
por alfinetes de prata, aguada mágica de luz
esparsa, no insondável mistério da noite subindo
e indefinidamente alastrando, diluindo-se, esbatendo-se,
perdendo-se, a dançar anamórfica pelo
espaço.
A certa altura da noite começaram as
libações.
O estalar das primeiras rôlhas de cerveja
e de
champagne foi o apetecido sinal
para
o fácil repúdio das fórmulas coercivas
da etiqueta.
Gradualmente agora iam sendo postas
de banda as peias, as convenções banais da
cortesia, para deixarem um pouco de campo
ao exercício livre do instinto. Muitas das senhoras
então soltavam os
voiles
ou deslaçavam
as blusas, afogueadas; os homens arremangavam-se.
Num progressivo calor, e numa contagiosa
e audaz alacridade, dentro de cada
grupo os movimentos, os gestos abastardavam-se,
e subia o diapasão delirante das
saùdações
[113]
e dos
hurrahs. Veio mais tarde o momento
em que, por uma adaptação condizente
ao epicúreo abandôno desta hora libertina, alguns
deixavam-se resvalar das suas
cadeiras e
tamboretes para as tábuas rasas do convés,
onde se quedavam molemente estirados, numa
beatitude inerte, a cabeça pesada oscilando, o
dorso contra a amurada. O Conde Améglio, esquecido
da mulher e dando ao démo os seus
brios postiços, divagava de grupo para grupo,
abundante e palreiro, feliz, o olhar empanado
e a taça vazia na ponta dos braços froixos,
cambaleando. Havia uma única nota de
excepção,
um absurdo protesto passional, em todo
este côro vibrante de alegria; era a longa figura
trági-cómica da desgrenhada Nora, hirta e de
pé,
amparada ao mastro de pôpa, mirando com decisão
o mar, num pendor teatral ao suicídio...
Ao passo que não muito longe, o Silveira e a
irlandesa, cada vez mais cingidos, trocavam,
amorosos, as taças, afim de penetrarem-se
mútuamente
os segredos, e êle, não podendo, em
linguagem compreensível para a sua amada, expressar
tôda a veemência do fogo que lhe abrasava
a alma, substituia com vantagem o calor
sugestivo da frase pela eloqùência muda dos
contactos.
Na manhã seguinte, sim, deu-se pressa o Silveira
em demandar a terra. E ao avançar, curioso,
[114]
os primeiros passos pelo liso empedrado
do cais Pharoux, sentia-se bem, o coração
dilatava-se-lhe,
estimulado e contente ao reconhecer-se
num ambiente amigo. Tudo ali, com
efeito, lhe avivava impressões flagrantes, lhe
evocava de Portugal a lembrança próxima e
querida, tudo,―desde a analogia cantante da
linguagem aos traços e ademanes conhecidos
das figuras, desde o tipo sóbrio e maciço das
construções à brita miúda e
ao desenho do mosaico
dos passeios. Tomou um automóvel e
mandou bater ao acaso, num giro de reconhecimento
rápido às mais celebradas coisas da
cidade. O
chauffeur era
português, tomou familiarmente
assento ao lado dêle. A bôa
disposição
do ânimo fazia-o mais acessível, o simpatismo
sugerente do meio tornára-o jovial,
aquecia em frémitos de fraterna expansão a sua
sensibilidade agradecida. Por isso, a cada momento,
naquela vertiginosa abalada, o feliz viajante
ia cortando os esclarecimentos fugazes
do condutor por admirativas exclamações e
brados entusiastas, quando não descia a
indagações
mais íntimas, inquirindo com afectuoso
interêsse o
chauffeur na
sua filiação, antecedentes
e condições morais e materiais de
vida.―«Se
viera para a América havia muito tempo?
Se estava contente? se tinha valido a pena?»
―Alguma coisa se faz, meu amo...―contestou
afável, num risinho esperto, o interpelado.
―E muita família lá em Portugal?
[115] ―Mulher e três filhos. Quanta
mosca posso
forrar, p'ra lá vai inteirinha.
―E saùdades da pátria, não tem?
―Que pátria, senhor?...―acudiu com amarga
resignação o
chauffeur, olhando de
espaço
o Silveira.―A gente, em vindo p'r'aqui assim,
não temos mais pátria. Por cá
chamam-nos
galegos; se volvemos a Portugal,
somos
brasileiros.
E encolheu os hombros com tristeza. Assim
mano a mano chalrando, indagando e informando,
mutuando fugazes impressões, colhendo
notas inéditas, percorreram os dois o amplo coleamento
áureo-verde da avenida Beira-mar,
visitaram Botafogo, fizeram o rodeio dêsse retalho
paradisíaco que são as praias do Leme,
Copacabana e Ipanema, internaram-se pelo delicioso
dédalo de sombras, palacetes,
parterres
e jardins do bairro das Laranjeiras, deitaram
ainda ao Jardim Botânico, e foram por fim
almoçar ao morro de Santa Teresa. Larga e
formosíssima jornada. O Silveira estava encantado,
aturdia-o a cálida vitalidade do ambiente,
sentia-se bêbedo de magnificência, de luz, de
côr, de movimento e de ruído. Feria-lhe com
agrado a atenção o escrupuloso aceio das ruas,
a variegada tinta das construções, o abundante
luxo decorativo das árvores e das flores, e, por
uma estranha anomalía dêste scenário
mole de
prazer, o tom sempre atarefado, o côrso afadigado
e ligeiro da multidão, palpitando, tumultuando,
fervendo numerosa e incessante, como
[116]
uma grossa onda de renovação a correr, generosa
e fecunda, por essa densa rêde de artérias
da abundância e da fortuna. Bem mais porêm
que a obra magnífica do homem o impressionou
o esplêndido vigor da Natureza,―as colossais
dimensões e o atormentado aspecto dessa
grande paìsagem eruptiva tôda em bruscas
oposições e em arrancadas titânicas;
prodigiosa
armadura cujo torso arfante, rompida, aqui, ali,
a sua espêssa crôsta verde, fôra atirado
vertiginosamente
a prumo, formando atrevidos minaretes
naturais donde se abrangiam panoramas
maravilhosos; estonteadora ronda de montanhas
fechando zelosamente na concha dos seus flancos
viridentes, como entre mãos de gigantes um
brinquedo, o formigueiro policromo e frágil da
casaria. Mas era demasiado grandioso e solene.
Perante a melindrosa sensibilidade de europeu,
do Silveira, tanta soma de majestade raiava já
pela tristeza; sobrelevando à sua extática
admiração
por tam desconcertante e caprichosa exuberância,
havia o que quere que fôsse de vagamente
constritivo e grave, que o esmagava, que
lhe pesava na alma, como um fatídico prenúncio
de desgraça. Porque êle não encontrava
aqui,
nesta luz crua, nestes mamelões adustos, a
vegetação
suave e amiga, as delicadas e múltiplas nuanças,
o brando afago, as acariciadoras sombras
do torrão bemdito que lhe embalára a
infância.
Aqui, na sua fechada monotonia, a sombria capa
verde do sólo áspero e convulso tinha um
não
sei quê de opressivo, de hostil, de trágico; na
[117]
impenetrável noite do seu mato torcido e hirsuto
pressentia-se tôda a sorte de quimeras
ruins, de reptís, de feras, de monstros, espiando-nos.
Era um Éden traiçoeiro... inadaptável
seguramente à poesia dos contos de fadas, à
simplicidade ingénua das bucólicas tangidas
melancólicamente, na grave e dulcerosa paz
dos campos, pelos contemplativos pastores da
sua terra.
Horas depois, à noite, e quando outra vez
a bordo, o temperamento vibrátil do Silveira
ardia por expandir-se, debatia-se no vivo empenho
de transmitir impressões aos companheiros.
Os Améglio acolheram-no com frieza, fortemente
ressentida como estava
Mrs. Edith
por
não haver ido com êles. Ramón Alvarez,
envernizado
e rubro como um tomate, tambêm
pouco o atendeu:―«não estava de acôrdo,
ia
morrendo assado... tinha achado uma estopada!»―Voltando-se
para o Mackenna, êste
não o deixava falar, porque, no seu fátuo
egoísmo, tudo era por sua vez encarecer-lhe os
surpreendentes
motivos que
esquissára para um
soberbo quadro simbolista.―Havia de ver!―Valeu-lhe
por fim a sua grande amiga espiritual,
a loura e tímida Irene, que com amável
complacência o escutou longamente.
No dia seguinte tocavam em Santos; e enquanto
o Silveira se debruçava atento sôbre o
aparatoso e sólido desdobramento e o tráfego
colossal do pôrto,―bem comparável ao de
Liverpool,
lhe haviam dito, e via que com razão,―aí
[118]
de acercar-se-lhe o pai Wimeyer, que,
sempre no antegôsto falaz do seu tam almejado
inquérito gramatical, todo o oportuno ensejo
aproveitava para lisonjeá-lo. E com
familiaridade
cativante,
numa
erudição
muito a
propósito:―que
êle, como bom português, devia
sentir-se orgulhoso e contente, ali... vendo, e
pisando podia dizer-se, terra da celebrada baía,
pitoresca e tranqùila, onde, quatro séculos
antes, aproára a primeira expedição
enviada de
Portugal para colonizar o Brasil; e que era ali
a outrora ilha de
Enguáguassú,
sabia bem...
assim como foi dali que partiu breve para o
interior, nesse tempo, trepando e transpondo
épicamente a abrupta Serra do Mar, a
expedição
que havia de fundar a legendária
Piratininga,―a
encantadora S. Paulo de hoje.―Confundido
por esta exótica demonstração de
tanto saber, o Silveira aplaudia, num risinho
envaidecido; e quanto à embaraçosa
iniciação
dessa prometida sabatina gramatical, o aterrado
argùente ia engenhosamente iludindo―que já
agora, por poucos dias, seria melhor, com outro
descanço... em Buenos-Aires.
Bastantes passageiros mais desembarcaram
aqui; gradas figuras da finança e da indústria,
ricos fazendeiros do interior, caixeiros-viajantes,
mulheres de prazer, artífices, obreiros, peões,
representantes de empresas estrangeiras. Assim,
aquele reduzido mundo que o berço reluzente
do
Almeria sôbre as
águas baloiçava alegremente,
ia em repetidas golfadas rareando; e ali
[119]
dentro a vida fechára-se em pequenos círculos
de discreta intimidade, cada vez mais singela,
mais suave, mais familiar, à medida como o
termo da viagem se acercava.
Amiudavam-se agora e edulcoravam-se, naturalmente,
aqueles almos e fraternais
colóquios
de Irene com o Silveira,―o que não era para
êste, aliás, empresa fácil, apetecido
alvo como
êle se sentia, a cada momento, do
contrôle
implacável
de
Mrs. Edith, ávida por
igual da sua
presença e ciosa do seu convívio. Ele
porêm
sabia, sempre que isso lhe convinha, desembaraçar-se
dela, invocando déstramente os seus
compromissos gramaticais para com o pai Wimeyer;
depois, uma vez junto dêste, difícil lhe
não era tambêm deixá-lo, na improvisada
simulação
de qualquer solícita
démarche junto da filha;
por fim, quando, de longe, a querençosa
mirada de
Mrs. Edith lhe significava
a impossibilidade
formal de manter-se mais tempo, sem
escândalo, junto da linda argentina, êle
aí expressava
pezaroso, perante esta, o seu inadiável
dever de cumprir para com os Améglio uma
qualquer obrigação de cortesia, e partia
imediatamente.
E assim neste divertido círculo vicioso
de inofensivas invenções ia salvando com arte
as dificuldades e preenchendo saborosamente as
horas. O certo era que a doce
freqùentação espiritual
de Irene fornecia ao Silveira uma derivante
deliciosa cada vez mais dominadora e mais
atraente, aos desafíos sensuais da irlandesa. Não
raro passavam agora horas seguidas sós os dois,
[120]
já caminhando mui camaradas, par a par, a fazer
uma e muitas vezes o giro completo do convés,
discorrendo com interêsse juvenil sôbre
coisas de nada, ligeiros, felizes, a frase sôlta e
leve no ar cortante; já imobilizando-se sôbre um
ponto ao acaso da amurada e aí, sonhadores e
mansos, balbuciando a sua mútua emoção
em
termos vagos, imprecisos, como a dança incoerente
dessas fugazes
libélulas
do mar, os peixes-voadores,
que êles viam em baixo mergulhando
e saltando atoadamente na imensidade
azul das ondas. E momentos havia em que o
espírito subtil de Irene, ao calor desta casta intimidade,
se alava em sublimados conceitos,
desatava-se em coisas transcendentes, soltava
palavras raras e profundas. Uma que outra vez
sucedia o temperamento másculo do Silveira
aquecer e inflamar em arroubados ímpetos a
sua alma enamorada... Porêm então,
invariavelmente,
a cada discreto ensaio de galanteio,
a alma timorata e nobre de Irene fechava-se
como em março um botão de rosa; se êle
permitia,
com um pouco mais de vivacidade, ao
coração pronunciar-se, ela acolhia-se a um
mutismo
impenetrável, não perdia o ensejo de levemente
lhe fazer sentir quanto a trivialidade
mesquinha do amor à hora era insofrível para
a sua sensibilidade e ofensiva para o seu orgulho.―Queria
ver nêle um amigo, nunca um
adulador.―Contrito e humilde, o Silveira resignava-se...
e a figura melindrosa e isenta de
Irene aparecia-lhe então como um dêstes tipos
[121]
de virtude sólida e doce que nos reconciliam
com a existência e nos fazem tomar em respeito
a vida.
Em breves dias, uma linda manhã veio em
que, no balanceio perpétuo do mar, a translucidez
movediça das águas agora
engrossava,―embaciava-se,
parecia coberta por uma bostelosa
máscara de lama. Eram as infinitas aluviões
terrunhosas do Plata, cuja foz incomensurável,
avassaladora e ampla como um mar, a
prôa arrogante do vapor atingia neste momento.
Já por estibordo se descortinava a airosa silhueta
do
Cêrro de
Montevideo.―Um outro nome bem
português...―voltava a observar-lhe o pai Wimeyer
com amável solicitude.―Corrupção de
monte vi eu, não era
assim?... Perpetuava a
primasia na descoberta e acusava sintáxicamente
uma linda transposição, como tantas
havia na formosa língua de Camões. Tinham
muito que conversar...―E batia-lhe no ombro
afávelmente. Mas o Silveira mal o ouvia. Neste
feliz momento, os seus brios patrióticos empolgavam-no,
sobrelevando aos quiméricos terrores
pela ameaça das doutas interrogações
do
pedagogo. O coração dilatava-se-lhe envaidecido,
porque êle notava como durante a sua viagem,
no decurso de todo êste largo roteiro
abarcando dois hemisférios, desde a largada
inicial das bôcas de luz e oiro, do Tejo, té
à
embocadura brumosa e intérmina do Plata, êle
viera medindo, reconhecendo, verificando, palpando
sempre, ininterrompido e eterno, o traço,
[122]
a marca indelével dêsse temerário
arranque das
descobertas... viera seguindo as aladas fugas
do sonhador espírito português, tivera a prova
constante do seu génio marítimo afirmada e selada
épicamente, cruzára o imperecível
sulco
aventureiro do seu caminho de glória.―Que outro
povo podia vangloriar-se dum prodígio igual?...―Perante
esta íntima evidência, sacudia a cabeça
com arreganho e atirava uma depreciativa mirada
de desdêm a essa humanidade inferior que o rodeava...
a êle, senhor do Universo.
Passada a encantadora capital uruguaia, não
restavam agora ao
Almeria mais que
oito escassas
horas de viagem. Todos tinham pressa de
chegar e afanosos seguravam o tempo, compondo,
cerrando as malas, dando instruções aos
stewards, buscando e preparando a
continuìdade
das relações ocasionalmente entaboladas.―Os
Wimeyer ofereceram ao Silveira a sua
casa de Buenos-Aires,
calle
Paraguay. O Mafiori
a todos anunciava bem alto que ia hospedar-se
no
Plaza-Hotel. Mas os mais, pelo
geral,―como
o Mackenna e o Alvarez,―não sabiam;
iam confiados ao acaso ou haviam-se entregado
ao solícito critério dalgum amigo. Os mesmos
Améglio não haviam tambêm escolhido
domicílio.
Assim, para poderem depois vir a saber
uns dos outros, concertaram reùnir-se ou enviar
o seu
adresse ao
Café da Paris, na noite
seguinte.
E ainda, da suja promiscuìdade da 3.ª
classe, não deixou de vir humildemente o Matias,
na companhia confortante de mais dois patrícios,
[123]
a demandarem interesseiros o Silveira,
confiados na sua espontânea promessa de
protecção,
para lhe pedirem numa lacrimosa lamúria
que não os olvidasse, e desejando saber onde
haviam de procurá-lo.
A cada momento, espontâneos, vivazes, por
entre a atramochada barafunda das bagagens,
formavam-se grupos e travavam-se furtivos diálogos,
palpitando da inquieta indecisão daquele
instante. Mas diálogos eram êstes que na sua
impaciência mordente, no seu vôo fantasista, em
vez de aproximarem os interlocutores, distanciavam-nos.
Cada um íntimamente se perguntava―que
sorte iria ser a sua?... Aquelas quentes
e efusivas palavras ninguêm as apreciava maiormente,
ninguêm lhes dava inteira atenção,
porque
elas mesmas logo em cada um dêsses insatisfeitos
espíritos sugeriam e despertavam, para alêm
do seu significado real, outros planos, idéas,
desejos, ambições e projectos que os levavam
para muito longe... Porque é assim neste vertiginoso
e dissolvente aturdimento que nós vivemos
hoje a vida. Ninguêm se instala nela com
permanência,―nem nas casas que alugamos
agora, já com o antecipado desígnio de as largar
àmanhã, nem nas dedutivas evidências da
nossa
razão, nem na voz instintiva da nossa consciência,
nas nossas paixões, apetites, ódios, amores,
interêsses. Nada para nós é hoje santo,
grande,
estável, firme, definitivo. Mudamos com uma
rapidez assustadora e uma lamentável
inconsciência,
de ocupação, de família, de ideal, de
[124]
carácter. Nada há duradoiro. A febril
obsessão
de «edificar o futuro» furta-nos ao gôzo
tranqùilo
e salutar da hora presente. A glória duma
invenção feliz, o lucrativo êxito dum
negócio, o
aplauso por uma obra benemérita,―que foram
o produto de longo e persistente labor, as mais
das vezes,―contudo, apenas conseguidos e já
não nos satisfazem, não nos arrebatam,
não nos
empolgam; raro a compensadora embriaguez do
seu triunfo nos senhoreia por completo a alma.
Devora-nos o apetite inquietante, e sem repouso,
de novos riscos, lances, emoções, aventuras
novas.
O torvelinho trágico da vida desliza e corre
sôbre nós sem nos penetrar, como a água
pelas
penas dos cisnes. A nossa existência
atropelada
e incerta tem a
allure constante
duma carreira,
é um
film alucinativo e
ardente, cuja precipitada
mímica nem nos abonda à vontade, nem nos
cumula o desejo. É uma hiperbólica e vertiginosa
curva sem termo, cujos ramos ideais mergulham
no Infinito. Assim, andamos incessantemente
aos cotovelões à felicidade, sem saber
vê-la, sem a apreciar, sem a sentir. Ao cabo,
morremos sem haver vivido.
...Quando, seguramente, a base mais sólida,
mais coerente e mais lógica para a plena posse
do futuro, seria, à maneira antiga, organizarmos
o presente com serenidade, tratarmos com esmerado
carinho as fugitivas delícias de cada hora
que passa, apreciarmos, em suma, e penetrarmo-nos
bem do valor intrínseco de cada dia,―como
se o mundo fôsse a acabar nessa mesma noite.
V
Buenos-Aires, finalmente! O
Almeria
agora
avançava à cautela, flanqueando devagar as
sucessivas
bóias distribuidas, como um rosário de
lumes, ao longo do estreito canal que dragagens
contínuas mantinham aberto, cavando um sinuoso
sulco de lôdo na chata pastosidade daquele
estuário imenso. Anoitecia. O céu conservava-se
nublado, mas calmo, e nessa infinita tela
gris o
carvoamento confuso das linhas da costa adquiria
transparência, tinha um encanto singular,
banhava-o uma poética e vaga suavidade. Na
bruma indecisa da noite já o Silveira podia descortinar,
convidativa, avançando e crescendo do
boleado mistério do horizonte, uma linha caprichosa
de farolitos e de mastaréus, primeiro;
depois uma complicada e imensa teia flutuante,
a mais inextricável maranha de tôda a sorte
de embarcações, trechos de docas, atributos
[126]
náuticos, pontes-levadiças, guindastes,
galpões,
bandeiras; a seguir, a linha quebrada e geométrica,
o viveiro apoplético das
azoteas, das tôrres,
das cúpulas; das agulhas, terraços,
chaminés
e cornijas rendilhadas, marcando por uma extensão
sem limites, no seu pululamento proteiforme,
o contôrno manso da cidade; e logo,
já nítidos, já no primeiro plano, os
alinhados
globos eléctricos, a calçada
embadornada e os
pantagruélicos armazéns marginais da terra firme.
Aí a tinha agora, a célebre, a grande cidade
de trabalho e de esperança, de pensamento e
de acção, de labuta e de prazer, de maravilha e
de sonho. A Terra da Promissão actual, o
Eldorado
mais em voga, o símbolo da abundância
paroxísmica, do homem próspero na terra
magnânima! A metrópole ideal da
magnificência
e da fortuna, da opulência e da belêza! Emfim...
Buenos-Aires!
O ar, pesado e espêsso, impedia a visão clara,
e era como se todo o espaço se houvesse diluido
numa obliteradora meia-tinta, numa suja mucilagem
que delia os contornos e comia o brilho
às coisas; contudo, tanto quanto podia adivinhar-se
das condições de desarolo e vida daquela
planura intérmina, o âmbito dêste
pôrto modelar
era enorme e colossal o seu movimento. Um
enxame, um delírio. Crescia grosso para o alto
um como que resfolegar de opressão, a
afirmação
potente, a rebeldia sujeita de fortes energias
represas, dessa floresta de chaminés fumarando,
dêsse empilhamento marítimo de monstros de
[127]
tôdas as idades, de máquinas de tôdas as
formas,
dimensões, feitios, côres, que latejavam e arfavam
com veemência, ora premindo-se, ora evitando-se,
em risco de se entrechocarem e que a
limosa torrente do Plata no seu gigantesco dorso
embalava brincando, docemente, por uma extensão
sem termo e sem medida. Pela carcassa
formidável dêste báratro de enormidades
os
homens, iluminados de escape, lidavam como
formigas. Saltavam choques brunidos de metais
do alto bôjo flamante dos grandes transatlânticos,
havia roces de cremalheiras, roldanas, cordagens,
quedas surdas de fardos, vozes agudas
de comando, tangiam as sinetas de bordo, as
sereias apitavam; na gorda pacificação do ar,
saturado de maresia, sentia-se, a quando e
quando, um chapinar de remos, batendo claro
no intervalo dalgum trinado lamento de guitarra;
e no fundo humilde de alcatroadas barcaças
fumegavam, a um lume discreto, caldeiradas
apetitosas. E agora já, com o avanço lento
e crescente do paquete, aquele primeiro esfumado
e negro bosquejo da cidade povoava-se, tomava
volume, aclarava, definia-se a cada momento;
aqui, alêm, bisbilhoteiras luzitas saltavam, riscando
arruamentos, desvendando interiores, trémulas
e brancas como estrêlas; ou eram os
grandes rèclames luminosos que no seu relampaguear
interesseiro chispavam súbito, como
borboletas de fogo, estremando planos, talhando
duras silhuetas na sombra e em manchas fortes
como
gouaches lambendo os panos do
muro;
[128]
esbatidamente. E agora tambêm, a favor da
molhada ressonância que lhe emprestava a proximidade
das águas, vinham acariciar o ouvido
atento do Silveira as sonoras trepidações da
vida urbana,―o
tlim nervoso dos
tranvias, o
lento arrasto das carroças, o pregão dos
vendedores
de diários, o buzinar dos automóveis, o
trapejar das oficinas.
Atracado ao cais o
Almeria, e
enquanto a
marinhagem ajustava a
passerelle
para o desembarque,
João da Silveira buscava com afã em
baixo, na multidão apinhoada cêrca, sob a
marquise monstro da aduana, a figura
pequenina
e viva do seu amigo Pedro Azeredo.―Um
convicto monárquico tambêm, igualmente
fidalgo, da linhagem seis vezes secular dos Azeredos,
senhores de Penamacôr e redondezas,
alferes de cavalaria ao tempo da revolução, e
que naturalmente, incompatível com o salafrário
regímen da Rèpública, seis meses havia
que
viera para a Argentina, com licença
ilimitada.―Lá
estava êle,―via-o agora!―plantado bem
na frente, mesmo na orla do cais, e correndo a
amurada com a mão em pala sôbre os olhos,
ao alto erguidos. Soltaram um simultâneo brado
de cordealidade alegre, ao reconhecerem-se; e
o Silveira, tam pronto como pôde, desceu, rompendo
em cunha a atropelada impaciência da
grossa onda cosmopolita que jorrava de bordo.
Um quente abraço, no cais, de efusiva ternura;
logo o Silveira confia do corretor do hotel e
tediosa revisão e entrega da bagagem; e breva
[129]
saltam os dois para um automóvel, que, à
indicação
dada pelo Azeredo, partiu roncando.
―Então, como vais tu?...―rompeu êste,
num claro riso, saltando e sacudindo a espalda
ao amigo com a mão em leque, todo voltado
para o recêm-vindo.
―E tu, meu alma do diabo?―acudiu vivaz
o Silveira, fitando, confiado, o companheiro e
premindo-lhe afável os joelhos.
―Menos mal, meu vélho. Ganha-se
plata.
Hei-de-te contar...―E com desdenhosa arrogância,
atirando o palhinha para a nuca:―Bem
melhor do que lá nessa pepineira de
rèpública.
Mas o Silveira, que não cessava de mirar a
um e outro lado, interessadamente:
―Parece-me uma grande cidade, esta?
―
Como no!
―E bela, caramba!
―Grande, grande...―corrigiu com sentencioso
ademan o Azeredo.―Sobretudo grande.
Quanto a beleza,
hay que distinguir.
Com efeito, o Silveira achava tendido sôbre
aquela vastidão sem termo um como que mortiço
pano de melancolia... Escasso movimento
e pouca luz. Seria por motivo talvez do enfado
da viagem, mas parecia-lhe aquilo triste.
O automóvel deixára a larga avenida marginal
e subia agora uma pequena rampa, empedrada
a paralelipípedos, sulcada de
rails e tomada
a todo um lado por um maciço casarão
banal, atijolado e de balcões em arcaria, de comesinho
[130]
aspecto colonial, sem vôo, sem majestade.
O Azeredo aclarou:
―Aqui tens a chamada Casa do Govêrno...
La Casa Rosada. Residência
do Presidente e
instalação de vários
ministérios.
―Não vale o nosso Terreiro do Paço,―com
impertinente fatuìdade o Silveira anotou.
―Foi feito noutra época, noutras
condições.
Não se comparam.
Seguia-se uma grande praça rectangular,
definida pelas cimalhas caprichosas de imponentes
palácios barôcos, e num dos extremos,
longitudinalmente cortando-se, à direita, uma
colunata helénica de templo.
―Ali é a Catedral, vês?―ciceronava entretanto
o Azeredo.―Logo ao lado, a Municipalidade.
Aqui à ilharga o
Banco de la
Nación, a
Bôlsa. Tens pois aqui assim, logo por entrada,
o coração, o índice
político do país, o centro
burocrático da cidade.
O vasto recinto, tirante as ruas periféricas,
estava quase totalmente tomado por uma caótica
profusão de materiais em osso, via-se coberto
por um pejamento heteroclito e informe
de linhas abstrusas, bárbaras, de coisas duras,
cortantes, agressivas, sujas,―montes de saibro,
caliça, areia, pilhas de beton, caixas de
latão, barricas, vagonetes, vigas de ferro, cabrestantes,
escadotes, carretas, arames em puas
hostis, barracas de taipa, casotas de zinco, pastas
de lama. E desta hirsuta barricada, ao centro,
[131]
sôbre esta aluvião industrial monstruosa,
de destroços de ruína e de tesas
projecções suspensas,
uma ingénua figurita, espécie de Palas,
no vértice duma pirâmide de
confiture, débil e
só no espaço, assomava com tristeza.
―Tôda esta confusão é por causa das
obras
do ferrocarril subterrâneo,―tornou o Azeredo,
solícito.―Como o
Metro
de Paris... Ou melhor!
muito melhor! Ah, indubitávelmente é um
grande melhoramento.―E enquanto o automóvel
rodava à esquerda, passada a Catedral:―Eu
queria levar-te pela Avenida de Maio, a
principal artéria da cidade; mas creio que não
será possível.
―Tambêm anda em obras?
―Tambêm... em parte. Mas não é por
isso.
É que estava defeso, e muito bem, estender
hoje o
côrso por aqui;
mas, a despeito da proìbição
municipal, a multidão agora à noite conseguiu
invadir a Avenida e todo o campo é
pouco para ela. Não ouves?...
Pelo ar gordo e parado montava e alastrava
um grosso resbunar pagão, o relincho orgíaco
da multidão em febre, avassalando, acanalhando
o espaço, tomando e prostituindo tôdas as
direcções, sobrepujando e sujando todos os
ruídos. Havia um vago clamor sobrenadante,
assobios, gritos, risadas, fanfúrrias desafinadas,
canções estúrdias, e a
espaços buzinava áspero
pelo ar o trilo irritante das cornamusas de
barro. Era a despedida foliona do Carnaval,
retida com ardor, prolongada com delírio. Eram
[132]
os últimos arrancos da bruta bambocha anual
em que a essa fera travestida, que é o homem,
se permite desdobrar à sôlta as suas
inclinações
e regressar à sua origem. Naquela noite
dionisíaca,
a pressão cálida do ambiente era engrossada
pela onda impúdica dos desejos. Adivinhava-se
a vulgaridade, a brutalidade, a volúpia
sórdida, a fúria erótica, os grotescos
desmandos
do instinto plebeu, nesse asfixiante
turbilhão animal, brigando, rugindo e tressuando.
Como se por completo se houvessem delido
tôda a luminosidade, todo o espiritual enlêvo,
todo o fino ar, tôda a aristocrática leveza da
magnífica cidade, paresiada neste momento por
um espasmo vêsgo de loucura.
Na raíz mesmo da Avenida, ao fundo da
praça, o automóvel teve que parar. Dois
polícias
a cavalo davam-se a pêrros para regular aquela
desordem e facultar o trânsito aos veículos,
positivamente
bloqueados, na frente, pelo marulho
compacto da multidão, nos flancos, pelo aprumo
bisarmal dos prédios. Num ligeiro estremecimento
de contrariedade, disse o Azeredo para
o
chauffeur:
―Bem, tome aí por Rivadavia e veja se
pode dar a volta por Cerrito. Apeâmo-nos
em seguida.―E, com ar enfastiado, para o
amigo:―Aqui, o entrudo é o que tu vês:
é
uma coisa antipática, vulgar, uma festa do populacho.
Depois, quando o automóvel, desandando
lentamente, conseguiu retomar caminho:
[133] ―Mas que mania foi essa de hotel?
―É o mais prático, meu filho.
―Bem: se chegasses aqui só, absolutamente
sem conhecimentos, de acôrdo. Mas tendo-me a
mim... Instalavas-te na minha pensão. Eu até
falei à dona da casa... Estarias mais cómodo e
mais barato. Como em família.
―São essas familiaridades que eu detesto,
que eu temo,―objectou num instintivo horror
o Silveira.
―Tonto! Ao contrário, é delicioso...―insistiu
o Azeredo; e, saltando sempre, com o seu
riso escarninho:―Há lá um matrimónio
sério,
provincianos
burgêssos,
que convidam tôda a
gente a jogar o quino. Quando não há
plata
p'ra gastar fora, compreendes, é excelente... Há
mais duas francesas, muito reinadias, que tem
a excentricidade de não receber visitas senão
meia-noite passada. Há uma professora de
tango,
um estudantito de medicina, um caixeiro da
Ciudad de Londres ... e
então uma
gaja chilena,
menino!―aqui o Azeredo sublinhava o seu entusiasmo,
mirando em alvo, com requebros lúbricos,―uma
viúva,
morenucha,
gordota, com
uns olhos assassinos que trespassam a gente!
―Atiras-te?
―Ela parece-me amável, isso é... Tem um
filho que é um
pibe
insuportável... Outro dia,
com uma seta, de papel, ia-me vasando um ôlho.
Ah, mas pelas celestiais delícias que se adivinham
na mãe, aturam-se bem as diabruras do
filho.
[134]
Prudencialmente, ao cabo duma pausa, João
da Silveira mascou:
―Bem, tudo isso eu acho detestável... Quero
estar independente, livre, absoluto senhor meu,
entendes?―E como fazendo um exame de
consciência:―Não que às vezes, sem
querer,
prendemo-nos, e é uma maçada depois para sacudir
essas seresmas.
―Ora!―com um desdêm superior objectou
o Azeredo.―A gente defende-se...―E voltando
a insistir:―Vê lá, meu vélho, se
preferes,
anda. Ainda estás a tempo.
―Não, não... Prometo ir, mas de visita.
Uns minutos depois, junto a uma esquina,
apeavam-se; e o Azeredo deixava o seu amigo
no
Cecil Hotel, onde lhe
tomára alojamento. E,
ao despedir-se:―que no dia seguinte não poderia
vir logo de manhã, porque tinha o escritório;
mas pela tarde, ás 4, viria buscá-lo para
darem uma volta por Palermo e
fazer
em seguida
a
calle Florida.
―Vê lá não te constranjas...
―Qual! Se é o que eu faço habitualmente.
É o
chic...―E com o
ôlho ladino:―
Noblesse
oblige.
―Bem, está direito. Depois jantas comigo.
Na manhã seguinte, o Silveira que dormira
como um bispo, levantou-se bem cedo, banhou-se
com deliciada pausa, e enquanto esperava
[135]
o
desayuno, foi abrir os dois
largos batentes
da porta do seu quarto, rasgada em balcão
sôbre a rua. Era no último andar do hotel, a
uma altura onde chegavam já mortiças num
adormecimento lânguido as pulsações
fortes do
exterior.―Ele queria ver a cidade com ar de
dia, no seu fresco aspecto matinal, no brio potente
da sua vitalidade, erecta e liberta emfim
das vagas figurações da sombra, daquele pesadelo
de animalidade e desordem, da passada
noite.―Saíu ao ar livre e avançou o busto com
avidez, a mirar a extensa, a plena toalha de
movimento, de vida e de luz que lhe oferecia,
em baixo, o traço imponente da Avenida de
Maio. Era um golpe de vista bem digno duma
grande metrópole, não havia dúvida,
essa formosa
e ampla linha correndo dum jacto, inflexívelmente,
limpa e direita, da pirâmide rudimentar
da Praça de Maio à esbelta cúpula
monumental
do Palácio do Congresso. E esbeltos
eram por igual os opulentos prédios marginais,
caprichosos, brincados de formas, atirados com
arrogância para o espaço: Traziam-lhe
reminiscências
de Paris na sua
patine cinzenta e
monótona,
nos seus rendados balcões floridos: e de
Paris eram tambêm a atmosfera velada, o asfalto
luzidío, o ar discreto, as filas de mesitas
redondas acaparadas sob os tôldos dos
cafés e
restaurants, a entestarem, numa
disciplina idílica
perfeita, com os renques de plátanos muito escovados,
tosquiados com simetria e alinhados
marcialmente ao longo dos passeios.
[136]
Contudo, abrangida daquela altura, a magnificente
artéria resultava estreita em relação
com
o vôo possante, com as maciças
dimensões da
casaria; das franças das árvores, dos postes
telefónicos,
dos colunelos da luz eléctrica, de tôdas
as arestas, de todos os ângulos, de tôdas as
curvas e ressaltos daquela floresta arquitectónica,
restos ignóbeis de serpentinas pendiam esfarrapados,
tremulando ao vento; e aqui tambêm,
a intervalos, tomando por vezes a extensão
de quarteirões inteiros, voltava o Silveira a ver
com desgôsto o mesmo pejamento industrial
com que, durante o seu breve percurso, esbarrára
na véspera,―havia trechos largos de calçada
esventrados de lés a lés, fundidos em abismos
de tréva, rasgados e cavados em boqueirões
hiantes, como chagas, que geométricas
vedações
de zinco ondulado debruavam, polvilhadas de
purulências de cisco, escoradas por eczemas de
barro, e de cujo negro ventre revôlto subia incessante
um bater ciclópico de picaretas e ferragens,
na mais irritante dissonância com a gritada
fúria dos pregões, o compassado chouto
das tipóias, todo êsse marulho vago das ruas.
Pelo ladrilho pardo dos amplos passeios marginais
farandunava uma peonagem atarefada e
compacta, de tôdas as origens, de tôdas as idades,
feitios, tamanhos, côres,―o mostruário ofegante
do universo, o resíduo aventureiro de
tôdas as raças, sôbre cujo
movediço plasma,
salvando a onda banal dos jaquetões e dos chapéus
de palha, se afirmavam, aqui e ali, exóticamente,
[137]
figuritas nervosas e amarelas de
nipons,
o tudesco sólido e arrogante,
képis, turbantes,
chimarras,
ponchos; grupos de homens
espadaúdos e arremangados, de avental, a cabeça
de boina e o grosso artelho nu sob o
farto
calcetin branco; tipos
refeitos de mulheres
de aspecto arisco, o rosto acobreado e extático,
a saia muito farta tecida em tons berrantes, e
descido o cabelo esfíngicamente, à frente das
orelhas, em duas tranças negras. Correndo a
parte central da Avenida que se mantinha viável,
pelas suas porções livres, uma dupla fila
de côches e automóveis subia, e outra descia,
infindáveis, incessantes, sem claros e sem
trégua,
aglomerados e suspensos por vezes, em nódos
de embaraço, ao cruzarem as ruas transversais,
donde perpendicularmente golfavam a jôrro
mais automóveis, mais côches, mais ciclistas,
mais cavaleiros, mais pregões, tôda a ordem de
obstáculos, na sua invasão resfolegante
engrossados
ainda pelo pesado tropear das galeras,
dos
camions, das carroças
e tranvias. E desta
forte trepidação material e espêsso
escoamento,
o fluxo e refluxo interminável, era regulado, às
esquinas, numa sorte de automatismo consciente,
pelo bastão vigilante dos polícias.
O comedor do hotel era na
planta
baja, furtado
às vistas do público por brancas e discretas
brise-bise, mas invadido em cheio
pelo
marulho atroador da rua. Tudo isto estimulava
mais e mais a espertinada atenção do Silveira,
que, apenas findou de almoçar, subiu a tomar
[138]
a bengala, o chapéu e as luvas; e num momento
aí o temos no pequeno vestíbulo outra vez
esperando
que o porteiro lhe tomasse um
taxi,
onde a asa pitoresca do movimento lhe acalmasse
a actividade e lhe désse pasto ao interêsse.
Não tinha fim determinado. Queria ir dar
uma volta de aventura, ao acaso, puramente ao
arbítrio do
chauffeur e
ao sabor do imprevisto.
Mesmo que outra coisa podia êle querer, por
agora, não conhecendo nada da cidade?...
Apenas recomendou à silhueta automática do
condutor, que, de mãos ao leme, sem olhar
aguardava indiferente,―que não queria estar a
parar constantemente... e então que fôsse por
onde houvesse menos confusão, menos movimento.
O vélho
auto partiu logo,
tomando a oeste,
e pronto desembocou numa praça amplíssima,
desbordante de luz, num aceio irrepreensível
as suas largas avenidas de asfalto reluzente, e
orlada apenas, como que provisóriamente, de
casitas abarracadas e construções mesquinhas,
na cimalha
tape à
l'oeil duma das quais, espécie
de mercenário frontespício de
instalação de
feira, mugia a toada populacheira e aldeã dum
realejo. A todo o fundo, desdobrava-se e crescia
majestoso para o alto, no seu deslumbramento
marmóreo, o Palácio monumental do
Congresso, vaidoso e lindo no estadeamento
olímpico das suas colunatas, nos seus astragalos
e florões clássicos, nos seus génios
de bronze,
nos seus grupos alegóricos, na linha puríssima
[139]
e alada da sua cúpula sem par, traçando
suavemente,
na mansa tela lilás do céu, uma grande
parábola de arrogância e de sonho. Entretanto,
e apesar da nobre e empolgante linha geral do
seu conjunto, esta mole colossal, erguida ali,
não suportava a vastidão da perspectiva,
sentia-se
esmagada pela imensidade absorvente do
recinto. E êste aparecia-nos tambêm inexoravelmente
tomado pela mesma grossa e incómoda
farfalha industrial que, parecia, aqui avassalava
tudo; por tôda a sorte de vedações, de
máquinas, de materiais, de esboços de
construção
e montes de escórias. Uma como que subversão
de terremoto se produzira, ao centro,
protuberado horrivelmente de pequenos Atlas
de ferro e aço, de Himalaias de cascabulho, de
Jungfraus de lama. Apenas, neste estrangulamento
de sórdidas durezas, algum triste e anémico
trecho do relvado, mais resistente, conseguia
oferecer ainda uma acariciadora mancha
de frescura; e num dêsses perdidos oásis de
plácida harmonia debuxava-se, solitário e
nostálgico,
o bronze do atlético
Penseur, de Rodin,
na sua acefalía paradoxal, na sua absurda
corpulência.
O mesmo edifício do Congresso, que
o Silveira deixára agora à sua esquerda, estava
por concluir, com o poderoso flanco sem epiderme,
amparado em andaimes, esperando o
revestimento para as arestas descarnadas e o
tijolo ennegrecido.
Internou-se a seguir o automóvel por uma
rua espaçosa e clara, espécie de
boulevard, no
[140]
seu arranjo cuidado e simétrico, na sua dupla
fiada de árvores, no delírio policromo das
taboletas,
nas artísticas vidreiras, na sua vida sussurrante.
Alongava-se a perder de vista, e na
sua orla barulhenta as
étalages comerciais e os
tôldos dos
restaurants
sucediam-se e disputavam
primazias em alternâncias coruscantes. No
letreiro duma esquina, de corrida, o Silveira conseguiu
lêr―
Rivadavia; e
então recordou que
esta era talvez a principal artéria
porteña, e decerto
a mais extensa, a de maior tradição, como
que a coluna vertebral da cidade. Depois, fortuìtamente
e a intervalos, consoante o giro caprichoso
do veículo, o Silveira deu-se conta de
passar por uma rua Andes, cruzar aí com um
grande edifício pesado e austero, meio hospital,
meio academia; a seguir outros arruamentos,
quáse iguais, todos com lacónicas
designações,―Córdoba,
Triunvirato, Santa-Fé, Las Heras,
Montevideo... por fim já nem tomava tento por
onde ia e abandonava-se, alheadamente, à incerteza
voluptuosa do desconhecido. Mas eram sempre
as mesmas ruas infindáveis, riscadas a cordel,
invariávelmente chatas e implacávelmente
direitas. Em vão se buscava neste taboleiro de
xadrez colossal, a adoçar-lhe a hirta algidez sem
termo, o desafôgo verde e livre dum
square, o
perfume sorridente dum jardim, um refúgio amigo
de sombra, a carícia duma curva, o boleamento
duma colina. De onde a onde, algumas
tacanhas
plazuelas se riscavam,
é certo, porêm
submetidas por igual à mesma implacável
esquadria,
[141]
como que incrustadas na massa barrenta
dos prédios, e na sua tímida penumbra alimentando
uma flora de claustro, recolhida e triste. E
por tôda a parte tambêm, mais ou menos, o
mesmo pejamento de coisas tôscas e informes,
o mesmo prurido desconcertante de renovação:
ou era a calçada, esburacada em longos trechos
e o trânsito impossibilitado pela
aglomeração
impertinente de paralelipípedos, em monte, de
tubagens em linha, de rolos de cabos, de maçaricos,
paz, alviões, lanternas; ou eram os primeiros
ensaios de
rascacielos, com seu
rodapé
de tapumes lambusados de cartazes irritantes e
aprumando hirsutos no vácuo os seus esqueletos
de tijolo e de ferro.―Uma cidade colhida
em gestação flagrante, sacudida num
estremeção
apoplético de vida, onde tudo estava por
fazer, onde nada se concluíra ainda. No seu subsolo
esfarrapado e arfante, sob a sua carapaça
movediça e áspera como o dôrso dum
monstro
antediluviano, bravejava uma caudal fremente
de energias, reacionava no mistério a química
formidável dos interesses e a impetuosidade brutal
dos instintos. Nada quieto, nada seguro, nada
inerte. Havia um eterno ponto de interrogação
suspenso sôbre o seu arranjo definitivo, não se
atinava com o termo a esta sua cavalgada frenética
na conquista delirante do progresso e da
fortuna.
Em contraste aberto com os populosos aglomerados
das grandes capitais europeias, aqui em
Buenos-Aires as casas, de frente angosta e profundamente
[142]
esticadas, não tinham, pelo geral,
mais que o andar térreo. A lisura convidativa da
pampa, deserta e sem
obstáculos, incitava a esta
expansão libérrima, o que explica que
Buenos-Aires
abranja hoje uma área superior à de Londres.
Alêm disso, como o valor da terra nas zonas
de vida mais intensa sóbe vertiginosamente,
por isso tambêm, na economia do seu lógico
desdobramento, as sucessivas construções tendem
a irradiar para a perifería, como os tentáculos
dum aracnídeo colossal, neste seu denso
rastejamento sem freio e sem medida. À
proporção
que se distanceiam do centro, as edificações
apequenam-se, rustificam-se, vão gradualmente
despindo o carácter urbano, solidarizam-se,
confundem-se com a terra, e a sua construção
é mais e mais simples, até descerem às
combinações
rudimentares do tijolo, da taipa e do
adôbe. E não é fácil fixar o
limite a êste encurralamento
galopante para o Infinito.
O Silveira considerava com particular interêsse
a fisionomia, tôda peculiar, das
construções
principais,―essas altas bisarmas que rompiam
desamparadamente, aprumadas e esguias,
do rasteiro cordão habitual da casaria, e que
assim desdobravam no espaço livremente os
seus flancos, não impenetravelmente murados,
ao modo de Lisboa, como tumbas, porêm abertos
e entremostrando a trechos a sua estrutura
intestina, no escalonamento paralelo dos vários
andares sobrepostos, e, em cada andar, na sucessão
linear dos compartimentos, cujas portadas
[143]
se entreviam superando, muito alinhadas, a
aresta do parapeito discreto dos
pasillos. Tambêm
lhe chamou a atenção o decorativo luxo
exterior, o rebuscado adôrno das fachadas. E
êste vicio era geral; nos palácios mais opulentos
como nas vivendas mais comesinhas, prevalecia
e ressaltava inalterável uma indumenta excessiva
da
pâtisserie italiana; em
todos havia, um
gongorismo de ornatos desbordante, uma ânsia
eruptiva de contornos, um espolinhamento doido
de torcicólos barôcos, de emblemas, de
florões,
de amorinhos, cariátides e quimeras. As
paredes mais modestas não dispensavam alguma
máscara de fauno ou uma lira entre malmequeres
e rosas; mas eram sempre capas e capas
de redundâncias sobrepostas, era um atropelado
derroche de cimentos e argamassas que retinham
a luz, que arranhavam o gôsto e varriam tôda a
sobriedade e pureza de linhas. Não havia arquitectura,
mas apenas
albañilería.
Contudo, esta pesada obsessão do relêvo
era vantajosamente resgatada pela nobre linha
geral das construções, elançadas
sempre e escalando
a altura com brio, num soberbo arranque
de abastança e de fôrça. As janelas
não prescindiam,
em geral, do confortável resguardo das
persianas, de madeira ou de ferro, e adiantavam-se
em amplos balcões rendados, muitos dêles
picados garridamente de floritas rubras e
com finas enrediças verdes colgando. Mas nem
uma vaga silhueta de mulher neles vinha debruçar-se,
ninguêm se via às janelas, cujas persianas
[144]
impertinentes, inexoráveis, se mantinham,
de alto a baixo, herméticamente cerradas. E as
portas, estreitas, igualmente impenetráveis, sentinelas
fieis da felicidade e do amor... Impossível
surpreender a mais fugidía nuança da vida
interior destas esquivas bocetas, furtadas tam
melindrosamente ao róce brutal do mundo. Isto
dava-lhes um tom singular, um ar recatado e
discreto, o que quere que fôsse de aristocrático
e isento, contrastando afinadoramente com o
grosso industrialismo plebeu que lhes marulhava
em tôrno. E um outro mundo se adivinhava,
com efeito, tecendo o seu manso ambiente inefável
adentro dêstes misteriosos ninhos da paz
e da virtude. Como se o carácter argentino, carinhoso,
manso e precavido, cavasse um deliberado
abismo de meticulosa defesa entre a rude
guerra aberta dos negócios e a macieza
impenetrável
do seu ninho! Como se a feição e o
cálculo, numa trégua prudente do seu antagonismo,
o levassem a lançar uma barreira irredutível
entre as doçuras plácidas do
home e os
atrictos desgarradores do interêsse, entre o
coração
e a banca, entre o lar e a rua! Cá fóra
um balcão, ali dentro um altar.―Seria assim?...―A
verdade era que, com tôda a sua pacotilha
ornamental, o seu aspecto provisório e o seu
precário arranjo, a grande cidade voltava agora a
oferecer e como que confirmava, ante a sensibilidade
esperta do recêm-vindo, o mesmo inédito
e especial encanto, a mesma poética e vaga
suavidade daquele esquissado carvoamento das
[145]
suas primeiras linhas na calma téla
gris do céu,
na passada noite... Um não sei quê de atraente
e aprazível, de afávelmente acolhedor, de
harmonioso,
de limpo, de fidalgo, que êle, um hóspede
de horas, não sabia ainda se atribuir à claridade
essencial das almas, se ao respiro salutar
das coisas.
E sentia-se bem, afinal. Tendo voltado ao
hotel, e agora reclinado molemente numa poltrona
modesta do seu quarto, o desabusado morgado
de Mosteirô repassava mentalmente o seu
expatriamento voluntário e iludia o tempo numa
saborida evocação retrospectiva de gratas
lembranças,
de projectos, de sonhos, de scenas vividas,
de prazeres, de desejos suspensos. Primeiro
a Pátria; mas o intervalo ainda curto do
seu distanciamento e o torvelinho de ineditismos
ofuscantes que, desde a partida, o vinham
assediando, não permitiam que o vinco nostálgico
por enquanto se afirmasse na vibratilidade
demasiado inquieta da sua alma; depois, aqueles
tantos dias de bordo, essa deliciosa bambocha
de pequeninas audácias, desilusões,
surprêsas,
flirts, intrigas, tédios
e ridículos de raiva que
era brisas e de gozos que eram espuma, correra-lhe
um pano de olvído sôbre o passado; entre
o que êle fôra, e o que era, haviam marcado
uma eternidade e cavado um infinito.―De
Portugal, agora, queria lá saber!―Apenas
[146]
recordava, num desdêm superior,―que aquilo
lá devia ser uma maçada, com os
carbonários
a ditarem a lei, os conventos feitos quarteis,
os novos sem religião, os vélhos sem garantias,
e uma mania de escolas por tôda a parte,
tudo muito malcriado e ninguêm conhecido.
A seguir, recordou vagamente os dois irmãos.―O
que fariam êles?...―Ainda o mais vélho,
o José, advogadote rábula e manhoso, saberia
tirar proveito dos conflitos jurídicos que, com a
Rèpública, eram agora bastos como os cogumelos
depois da chuva; mas o Bernardo, o mais
moço, um pateta feito agrónomo à
fôrça de empenhos,
um
come-santos sempre metido por
lausperenes
e romarias, como se aguentaria, agora
que o Afonso déra com os santos em terra?...―Ora!
não fôsse
tanso.―Por fim, ao evocar
a visagem chorona e os ademanes trágicos da
noiva quando lêsse a sua carta de despedida, o
lábio varonil ergueu-se-lhe num leve sorriso, entre
comiserativo e trocista, e os olhos fátuos,
erguidos ao teto, semicerraram-se, a seguir a
indecisa imagem da pobre Laurita, que em espiralamentos
caricaturaes êle via subir, envôlta
na fumarada ténue do charuto, seguida pela
ronda desolada e grotesca da família.
O derivativo patusco da viagem, isso sim...
tinha sido bom a valer!―E já de repente voltava
a dançar-lhe, efémera e jovial, pela retina
tôda a divertida sucessão de episódios
que durante
êsses deliciosos vinte dias haviam marcado
um dos capítulos mais saborosos e interessantes
[147]
da sua vida. De tudo um pouco êle havia
logrado provar nesses adoráveis
instantâneos breves,
e fugazes como
fogos-fátuos, feitos de
saltantes
contradições e antíteses
súbitas. De tudo,―desde
os trágicos pavores da tempestade té
aos desmanes hilares do ridículo.―Que rico tipo
aquele pedinchão Contreras, com as suas intrujonas
promessas e os seus apetites decorativos...
e a cabeça e as piugas do Alvarez, as fanfarronadas
postiças do conde, as doutas madurezas do
Wimeyer... o Mackenna com a sua pomposa
inépcia, o Mafiori com a sua astúcia mansa. E,
das mulheres, quanto não valia essa esnalgada e
insípida Nora, a querer teimosamente enredá-lo
na tentação paradoxal dos decotes... e que
apetite
de formas, que rico amor, a irlandesa... e a
formosura alada, o requintado espírito, a
indecifrável
isenção de Irene! Esta, sim, que dava que
pensar...―Por uma natural associação de
idéas,
o Silveira conjugou mentalmente a púdica
absténção,
o carácter retraído e tímido da linda
argentina,
com o ar recatado e discreto que êle de passagem
surpreendera, por igual, na fisionomia atraente
da cidade. E todo êste ambiente embocetado e
austero, longe de o acobardar, estimulava-o, era
um desafio picante ao seu génio enamorado e
volteiro, acendia-lhe os brios varonís em tonadas
ardentes de desejo. Na segura antevisão dos mais
belos triunfos, dilatava guloso as pálpebras, movia
numa pregustação sensual os lábios
gordos.―Ah,
que o seu instinto adivinhára! Devia por
ali assim vir a passar bem bons bocados...
[148]
E aplaudia-se de ter vindo.
Pouco depois das 4, fiel ao seu compromisso
da véspera, chegou o Azeredo. A tarde estava
um encanto. A luz esbatia-se suavemente na
mole carícia do ar, húmido e
tranqùilo. Tomaram
pronto um
auto os dois amigos e
dirigiram-se
ao parque famoso de Palermo, anunciado
nobremente, ao começo da avenida Alvear,
pelas faustosas decorações da
Recolêta, em cujo
preguiçoso declive majestosas linhas
arquitetónicas
enquadram harmoniosamente rasos e amplos
taboleiros verdes, mosqueados de tintas
policromas, um precioso
bouquet de
frescos relvados,
de minúsculos jardins, de bosquetes, sébes
floridas e tosquiadas sombras. É aristocrático
e é lindo. E a seguir, descendo sempre
suavemente, a mesma sumptuosa e ampla artéria
se continua, atirada com arrogância numa
dilatada conquista de espaço, numa extensa
projecção
rectilínea sôbre cujo asfalto polido deslizam,
rodam e se cruzam alegremente as equipagens
luxuosas e os automóveis de preço.
Definindo a todo o comprimento o eixo da bela
avenida, acompanha-a e ergue-se a perder de
vista, no seu fino recorte aéreo, uma floresta linear
de esbeltas lâmpadas ornamentais, da renda
brônzea dos braços tendo suspensos grandes
pomos brancos, e a lavrada raíz mergulhando
na macieza de esguias e escovadas
pelouses, picadas
de estatuetas decorativas. Depois, naturalmente,
e fiel aos consabidos dogmas triviais
da estética urbana, o formoso côrso, deixando
[149]
o largo aprumo inicial, passa a desdobrar-se e
a colear em mesurados lacetes de roda do grande
lago, ao qual por seu turno não faltam as casotas,
pontes rústicas, lilipucinas cascatas, esguichos
anémicos, barquinhos, grutas do estilo,
e o gongórico
restaurant
de rigor. Agora,
neste consagrado circuìto da moda, é de-veras
embaraçante, pejorativa, enorme, a afluência de
veículos, cuja marcha se torna grave e cheia de
importância. Há um refinado propósito
de ostentação,
uma patente fúria exibitiva; a cada
passo, neste afluir compacto da assistência, produzem-se
engorgitamentos, empastes, nódos, que
obrigam a paragens sucessivas; tudo servindo
de pretexto amável à
mutuação de sorrisos,
acenos, agrados, câmbios de frases familiares
entre as pessoas conhecidas. Há vida, há
movimento,
há opulência, há ruído; mas
tudo cerimoniosamente
espontado, sem espontaneidade
e sem brio. De família para família, de curva
para curva, a cada novo cruzamento neste mostruário
ambulante de vaidades, as vêsgas miradas
perscrutadoras, os desapontados gestos, a
raivosa estupefacção, as bôcas sumidas
de inveja,
impõem-se ao brando rodar das equipagens
e ao bisbisoteio da chalra sobrenadante. E
em tam pomposa parada de atrelagens, alguns
vélhos
fiacres
vão ainda derivando de escape,
ao largo, num repúdio de instinto, humildemente,
como que vèxados no seu anonimato de
miséria.
Ao mesmo tempo, uma afluência enorme,
[150]
desbordante e luzida por igual, circula e galreja
a pé, bordejando abundante as
aceras
laterais,
taquinando com airosa presteza a areia fulva
dos passeios. Com saltitante orgulho o Azeredo
vai mostrando ali ao amigo uma que outra figura
conhecida. O Silveira, todo na hora presente
intercala com gulosa vivacidade as sôltas
interrogações que lhe acodem a
propósito, no
impressivo relato da sua excursão da manhã.
Nota com espanto como, aqui, adoráveis grupos
de
señoritas se permitem
deambular, rir,
volitar livremente, fóra do ôlho suspicaz das
mamãs, desenvôltas, seguras, num confiado
aprumo e em plena independência. Nota igualmente
que os homens vestem em geral com
desafectada elegância, e que as mulheres teem
uma
allure cheia de
graça, uma linha de conjunto
harmoniosa e fina.―Mas a moldura que
a Natureza oferece a êste palpitante quadro social
é tristemente desataviada e mesquinha. A
vegetação é pobre. Abunda a mancha
verde-sujo
dos
eucaliptus, formando por vezes
tufos
gigantescos, e avultam alguns maciços mais de
chorões, de plátanos, de cedros, de salgueiros;
porêm a maior extensão dêste chato
parque embrionário,―meio
square, meio
pântano,―é
povoada por uma fruste vegetação arbustiva,
sem brilho, froixa, mal cuidada; e há avenidas
inteiras orladas por pobres palmeiras
dépaysées,
o tronco anão, a folhagem esfarrapada e lívida,
que na sua enfermiça invalidez são um
eloqùente
protesto mudo contra a incongruência
[151]
edílica, arrefecem o ambiente e tornam a perspectiva
dolorosa. E ainda é de notar que, para
alêm dum reduzido perímetro, neste
arremêdo
incipiente do
Bois, o
traçado pretencioso dos
bons caminhos de rodado, das áleas luxuosas,
se interrompe súbito a cada momento, cortado
por tôda a sorte de obstáculos. Se em qualquer
direcção o desprevenido turista pretende um
pouco mais ao largo aventurar-se, logo aí lhe
barra arreliativamente a marcha uma passagem
de nível de ferro-carril, a armatura bisarmal de
alguma grande construção em osso, ou os
intransponíveis
valeiramentos de charcos, barrancos
e atoleiros de tôda a espécie. As rodas dos
veículos afundam-se e peganham impotentes na
revôlta viscosidade das argilas empapadas. Não
há continuìdade nem segurança de
trânsito
nesta desarticulada rêde de aberturas. E debalde
alongamos interrogativamente, a um e
outro lado, a vista morosa e cansada. Por tôda
essa monótona extensão de rústicas
parterres,
a luz rasante do crepúsculo apenas faz agora
saltar o estagnado espelho dos lameiros e aguaçais,
que salpicam bastos, com as suas placas
corrosivas, como pústulas, a inevitável
sucessão
das lamas de mato ruço e rasteiro estranguladas
entre a via-férrea e o Plata, onde a luz falta
e a humidade abunda.
Na volta, já noite fechada, o
boulevard aparatoso
de Callao flambeava de côr e regorgitava
de vida. Outra das grandes e opulentas
nervuras da cidade. Tudo brilha, tudo vibra,
[152]
tudo reluz neste largo e inquieto diorama. Na
mesma sombra há movimento. Sôbre o piso esmerado,
de madeira em paralelipípedos, os numerosos
veículos teem um rodar suave e acariciador,
sem estrépitos e sem sobressaltos,
como se corressem sôbre alfombras. Pelos largos
passeios marginais, na onda ronronante da
multidão, saltam vivas as arestas e as figuras
cortam-se com violência, surpreendidas em flagrante
e trazidas ao máximo relêvo pela
modelação
crua em que, do mesmo passo, as envolve
o grande jôrro de luz branca, dos candelabros
do alto, e as espadanas de luz doirada
golfando dos
escaparátes
scintilantes.
O Silveira seguia interessadamente o inédito
desdobrar desta cinta magnífica, com a
alma tôda nos olhos e a ventoínheira
cabeça
passando, em súbitas e incansáveis
alternâncias,
dos florões repolhudos dos palácios à
toalha
esplendente da rua; quando, de repente, imperativo,
nervoso, arpoando forte o braço ao
amigo:
―Ah, ó menino! pronto, pronto... ali!
manda parar.
―Aonde?
―Ali! ali!―insistiu, na mesma imperiosa
querença, o Silveira.
E apontava um grande letreiro, projectado,
à altura dum 2.º andar, perpendicular
sôbre a
rua, onde em fla
E apontava um grande letreiro, projectado,
à altura dum 2.º andar, perpendicular
sôbre a
rua, onde em flamantes caractéres sucessivamente
brancos e rubros, se lia―
Idiomas
Berlitz.
[153]
Mas, incommovível e suspenso, o Azeredo,
sem perceber:
―Ora essa! e porquê? Estás doido?...
―Não, filho! manda parar, já te disse...
Preciso adestrar-me no inglês, p'ra me entender
com uma criatura deliciosa que conheci a
bordo. Se tu a visses!
Agora o Azeredo ria a perder, sacudindo esperto
o busto, espalmando as mãos sôbre os
joelhos.
―Ah! ah! ah! Essa nem parece tua.
―E então?―retrucou, fazendo um mômo
de sério, o Silveira, quáse ofendido.
―Pois tu não vês?... Por mais
apurado que
quizesses andar, nunca lograrias arranhar algo,
e bem pouco, do inglês, senão passados dois
ou três meses.
―Tanto tempo?
―Seguramente. E entretanto a mulhersinha
teria sabido arranjar... quem melhor a entendesse.
Cabisbaixo e um pouco triste, o Silveira ruminava
mentalmente uma aquiescência. E com
o ôlho ladino, o amigo:
―Não me sejas zonzo, rapaz! Em matéria
de amor as mulheres não querem saber de palavreado.
Obras, obras...―E com um desprezivel
dar de ombros:―Que diabo! nem pareces
português.
O
auto seguia sempre, mole e
suavemente.
Deixada para trás a falaciosa esperança
dêsse
letreiro redentor, já os dois amigos atingiam de
[154]
novo a Praça do Congresso e seguiam ao longo
de Rivadavia, a internar-se no chamado
centro
da cidade.―Infindáveis ruas estreitas e banais,
perpendicularmente enastradas, no seu hirto
paralelismo e na sua esquadria inflexível riscadas
sempre indefinidamente. A esta hora ruidosa
e opressiva da noite, elas são como que
meteóricas fendas lineares talhadas a prumo,
num rectilíneo enfiamento sem termo, ao longo
do ferro e o cimento
recocó dos grandes
quarteirões
maciços. Não há um desafôgo,
uma abertura,
uma fuga de espaço livre ou um claro
de benéfico repouso, neste atropelado escoamento
de coisas bárbaras e difusas. Foram ruas
bastantemente espaçosas e amplas, há quarenta
anos, para suprirem então ao movimento de
duzentos ou trezentos mil habitantes; porêm
hoje, deplorávelmente adstringindo ainda o
coração
duma cidade cuja população quintuplicou,
tornadas duma lamentável e nociva insuficiência.
No seu estrangulamento arcaico chocam-se,
cruzam-se e baralham-se delirantes tôda a casta
de obstáculos e de ruídos. A cada momento
há
que parar. De quarteirão para quarteirão, a cada
passo o moroso avanço é cortado por
embaraçosas
suspensões, em inalteráveis sucessões
de
minutos que parecem séculos. Enfastiado e impaciente,
o Silveira propôs ao amigo apearem-se.―Não
podia aturar mais aquela maçada! A
pé sempre girariam melhor.―Mas nem por isso
a mudança de instrumento locomotor lhe trouxe
a ambicionada largueza de movimentos. Pior
[155]
agora, talvez... Pelos passeios laterais, mancos
e exiguos, mal podem caminhar duas pessoas a
par; e ainda há que seguir com invariável aprumo
e a maior cautela, afim de evitar o róce
brusco dalgum dêsses tilintantes e monstruosos
tramways que teimosos e incessantes
lhes passam,
com estrepitoso fragor, rasos mesmo pela
aresta, em risco de nos levarem um braço ou
estriçarem uma perna.
Debalde no cruzamento das ruas a polícia,
numerosa e atenta, faz cabalísticas manobras
com o seu bastão providencial, no honesto
esfôrço
de regular os detalhes da circulação. Resulta
sempre uma empresa árdua, por vezes
heróica, a ordenada canalização da
túrbida torrente,
do atrito cosmopolita dessas grossas
mangas
humanas, jorrando em sujas golfadas por
um afunilado labirinto a sua hipertrófica
exuberância.
Bem queria, uma por outra vez, o Silveira
deter-se um pouco, a analisar uma figura,
a sondar uma perspectiva, a anotar um pormenor,
a observar as
montras... breve
reconhecia
ser, ali, tam singelo acto um cometimento defeso
à maior destreza humana; e tinha que arrancar
brusco e retomar caminho, entalado, enovelado
entre os cotovelões nervosos do amigo
e a congestiva onda da multidão que o levava
por diante. Depois, se êle por acaso, inadvertido,
voltava a abandonar a sua posição de
equilíbrio
periclitante para contornar o arreliativo tapume
dalgum prédio em obras, para dar o passo a
uma dama, para alcançar o amigo, para atravessar
[156]
a rua, logo de chamá-lo à brutal
realidade,―e
por vezes simultâneamente,―a busina
dum
auto, as campaínhas
das bicicletas ou o
timbre estridente de mais um grande
tramway,
cuja massa atravancadora, farfalhante, enorme
lhe cortava súbito a frente, ringindo, pesadamente,
com a esmagadora fúria dum mastodonte
a abrir caminho pela selva.
O Silveira sentia-se enervado, aturdido.
Aquele caminhar fatigante à fôrça de
opressivo,
o grosso marulho sobrenadante, a profusa luz
dos cafés, dos teatros,
tiendas e
cinemas, entontecia-o.
Entretanto, prendia-lhe a atenção a
étalage
caprichosa e berrante das numerosas lojas
de engraxador,―peculiares de Buenos-Aires,―com
as suas estravagantes decorações, o seu afanoso
saracoteio, e o imprescindível fonógrafo,
ao fundo, sob o relogio, entre arbustos anémicos
e hilariantes cartazes, roncando alegremente.
Mas nem aí lhe era permitido o gôzo inocente
dum pouco de exame tranqùilo; porque, se
um instante êle parava à porta dum
dêstes
interesseiros especímens da fantasia napolitana,
logo de assalto, à altura do ouvido, lhe
rompia o tímpano, fazendo-o estremecer e fugir,
a estentórica voz do pregoeiro, tam nasalada
e estrídula como as vibrações do
fonógrafo
do fundo, para a rua a sibilar clamorosamente:
―
Gay ass...
―
Gay asiento, cabayero!
Teriam os dois caminhado assim pouco mais
[157]
dum quilómetro, quando muito prazenteiro o
Azeredo, sustando o passo ao amigo:
―Cá estamos em Florida. Uff! Aqui não
há trânsito de veículos a esta hora.
É tudo para
o belo
flirting...―E todo aos
saltinhos, tomando-lhe
do braço:―Anda ver o
chic, meu
rapaz!
O mesmo alinhamento angosto e banal das
demais ruas em tôrno, cujo inflexível e cerrado
travamento forma o clássico sistema vascular
desta parte da cidade. A mesma congestiva
afluência, o mesmo côrso embaraçoso e
difícil,
o mesmo movimento, o mesmo ruído tambêm;
mas tudo isto aqui constituido apenas pela dissonância
de vozes, o afanoso giro e o formigueiro
sussurrante da multidão a pé, que,
livre do tropêço aplastante dos
veículos, em
plena alegria e em plena expansão, revoluteia,
aflúi, chalra, insinua-se, resvala e afirma-se prepotente,
tomando à vontade a rua tôda, as suas
impressivas silhuetas saltando nítidas e as sombras
mordendo em vincos de agua-forte a espelhada
fluìdez do asfalto reluzente. É a hora elegante,
a hora preferida. Sente-se e sôa brando o
peganho abundante das passadas, ao longo dêste
grande salão a céu aberto. Ao alto, pela noite
nevoenta do céu, superando o estrangulado limite
dos prédios, recortam-se, penduram-se, cruzam-se
e dançam em profusão tôda a sorte de
rèclames
e adornos luminosos, formando por vezes,
de lado a lado, caprichosos viadutos, ou suspensos
em esplendentes rosários que entornam a sua
[158]
luz gloriosa sôbre o boleamento arquejante e
febríl desta grande feira gentílica. Em baixo,
a sucessão dos estabelecimentos luxuosos é
interminável:
é uma dupla feira, magnífica, deslumbrante,
de grandes
magasins de modas,
livrarias, floreiros,
bibelotages,
tea-rooms,
étalages
industriais, armazêns de música,
adoráveis
pequenos salões artísticos, rijos
mostruários
de artigos de
sport que prendem um
momento
a atenção dos homens, cristais de ourivezarias
faiscantes que incendem em pecaminosas tentações
o perdido olhar das raparigas.―Qualquer
coisa como a
Rue de la Paix ou
Bond Street,
porêm com mais ímpeto, mais côr, uma
vida
mais compacta e mais intensa, e sobretudo com
uma percentagem muito superior de mulheres
bonitas.
É ver a harmoniosa graça com que elas caminham,
no seu passo miudito e firme, airosas,
leves, naturalmente distintas, requintados exemplares
da espécie, felizes pelo segrêdo dêste
seu donaire especial, feito de nobreza, de doçura,
de confiança e de vaidade. Os homens
marcham com uma tonada, uma segurança e um
garbo igual, pisando ademais como senhores,
no convicto orgulho de si mesmos, incompatíveis,
vê-se, com o instinto da economia, altaneiros
e certos na generosidade sem fim do seu
torrão bemdito. E todo o mundo anda ligeiro.
Claro que no corriqueiro programa dêste obrigado
passeio elegante, de cada dia, a melhor e
mais grata função é consagrada ao
galanteio feminino.
[159]
À pinturilada porta da confeitaria
L'Aiglon
estacionavam grupos de
mirones, a
cada
momento renovados, tam de-pressa sumidos no
grosso embate da onda, como logo refeitos galhardamente;
por tôda a parte se disparam frases
amáveis e se despedem olhares gulosos ao
venusino apetite das lindas
señoritas que por entre
o deslumbramento mágico das lojas desfilam
incessantes,―mais claras que as luzes,
mais adoráveis que os
bibelots, de maior preço
que as jóias; mas tudo isto é expedito, fugaz e
feito com sôlta decisão varonil, em breves pausas
de cavalheiresca excepção abertas na febre
geral do movimento, deixando a perder de vista
e afundando num abismo de ridículo a pasmaceira
lamecha habitual da nossa Rua Áurea e do
Chiado.
―Que tal achas,
ché?!―indagou o Azeredo
vivamente.
E com os olhos extraviados de júbilo, o Silveira:
―É encantador, é divino! Esta é a
minha
terra!
Assim fizeram os dois o percurso total da
formosa rua, desde as aristocráticas
instalações
de Harrods, passando pela arte postiça da
London Gallery, a arcaria pedante do
Jockey-Club,
a branca portada do
Charpentier, as
montras
suculentas da
Rotîsserie
Sportsman, té ao
grosso amontoamento burguês dos armazens de
Gath & Chaves. Ao cabo, já sôbre a Avenida
de Maio, o Azeredo assinalou trocista à curiosidade
[160]
ávida do amigo a chamada
esquina de
los otarios,―pascácia aresta de
voluntário suplício
onde o amor pelintra dos caixeiros e
amanuenses vem baboso e marruaz aguardar
a saída das costureiras. E aqui nêste estrepitoso
cruzamento de duas das suas principais artérias,
atinge o máximo da intensidade e da
côr a agitação resfolegante da cidade.
Dêsse
compacto torvelinho, da baralhada onda de tôda
essa grossa turba em delírio, ergue-se em quentes
lufadas e toma e embebeda o ar uma clamorosa
ressonância, que é a
evidenciação triunfante
do bem-estar físico, da fecunda actividade,
da pletóra de fortuna e de riqueza desta moderna
Cartago,―a vontade feita moeda, um dos
grandes fócos da capacidade potencial do homem
sôbre a terra, portentoso centro de
atracção,
empório colossal do trabalho fascinante e
criador, caldeado na protéica ardência das mais
válidas esperanças e as energias mais potentes
das raças de todo o mundo.
VI
Bem disposto e ávido por continuar o seu
interessante exame objectivo da cidade, o Silveira
no dia seguinte ergueu-se cedo e desceu
pronto a rua. Andadas não mais de três
cuadras,
ei-lo de novo na Praça do Congresso. Dez
horas da manhã. Fazia um dêstes claros, suaves
e incomparáveis dias de outono de Buenos-Aires,
em que do céu alto e límpido, de pura
safíra desce uma luz de oiro vélho a acariciar
tranqùilamente as coisas. Os raros relvados do
centro da praça, com a sua rociada lanugem
verde, formavam apetitosos ninhos, e a airosa
cúpula do Parlamento, ao fundo, cortava-se na
frescura opalína do ar em figuras de aguarela.―Mas
agora o Silveira notou que logo ao primeiro
ângulo do vasto recinto, à sua esquerda,―junto
á base duma estátua que era a
consagração
ornitológica dalguma grada personagem, de
matacões e labita, desta as abas dançantes
brigando
[162]
simbólicamente com as asas duma águia,―um
joven de lunetas e gravata branca, desbarbado
como um
clergyman, trepado a um
banco,
acenava e arengava com entusiasmo a um hipotético
auditório que não vinha.
Atraídos pelo colchete dos seus dedos suplicantes
e pelos seus brados convictos, acodem
primeiro alguns rotos
canillitas,
vendedores de
jornais; vários cocheiros e
chauffeurs em repouso
vão depois até êle
preguiçosamente
arrastando-se;
véem ainda, estimulados por êste comovedor
desbarato de eloqùência no vácuo, os
poucos desocupados que pelos bancos próximos
amadornavam a sua indolência. Curioso e atento,
o Silveira acercou-se tambêm.―Discreteava
sobre política êste improvisado
apóstolo da
rua. Falava em civismo, em liberdade, em
igualdade, em consciência, no sagrado exercício
do sufrágio, nas inauferíveis regalías
do
povo. Figurava enfáticamente o concurso às
urnas como a «benéfica corrente
arterial» da
vida colectiva, como a maior conquista e o mais
grato dever moderno. A sua persuasiva parlenda
rola sempre sôbre a mesma idéa, torturadamente
exibida num laborioso acrobatismo
de logares-comuns; dir-se-ia que êle prolonga
deliberadamente o seu exórdio, a dar tempo a
que a assembleia cresça. Agora há já
mulheres
tambêm entre os ouvintes. E o glabro orador
então aquece, afervora no entusiasmo. Imagina-se
compreendido e ala-se em conceitos galantes,
em primores de frases, desbrida-se em
[163]
raptos de baixa lisonja sôbre as
reivindicações
feministas e a sublime missão social da mulher.
Gesticula como um energúmeno, os desmanes
da inspiração e o tom da voz sobem de ponto,
já com jupitereanas fulminações contra
os abusos
de caudilhismo, a influência despótica da
riqueza e a corrupção sistemática dos
«grandes
satrapas» do poder,―inofensivas
objurgações
abrangidas entretanto pela alçada coerciva da
polícia.―Porêm o Silveira acha êste
mandado
charlatão político menos interessante que os
seus pitorescos competidores
callejeros, os barafustantes
pregoeiros de pomadas e elixires
maravilhosos. E o assunto não o prende maiormente.
Afasta-se com tédio.
Segue então percorrendo a pé a
esplêndida
rua Callao, num regalado vagar, saborosamente.
Fareja com libidinoso apetite as morenas crioulitas
que passam, em cabelo; esmiuça com a
vista maravilhada e cativa tôda essa opulenta
sucessão de
magasins
elegantes, luzidas
étalages,
soberbos hoteis e palácios sumptuosos. Mas eis
que, ao desembocar na praça Rodriguez Peña,―oh!
fastidiosa surprêsa!―
mutatis
mutandis,
ele aí vem encontrar repetida a mesma scena
de há pouco. Igualmente aqui um veemente e
fogoso orador bólsa sôbre um auditório
escasso
e mesclado, por igual, a mesma encomendada
torrente de diatribes e proclamas. Com a
diferença que êste é trigueiro e
barbado, de aspecto
façanhudo, tem um
taxiauto por pedestal,
e à sua ilharga flameja com triunfante arrogância
[164]
uma bandeira partidária. O pior foi que
numa das mais impetuosas fugas da sua inflamada
homília, um polícia aproxima-se,
intervêm,
exige-lhe a apresentação da licença; o
interpelado
titubeia, estaca, empalidece, busca em
vão um papel salvador nas algibeiras... e por
fim lança mão resoluta ao leme do
auto, vôa e
desaparece, entre os bonachões aplausos e as
casquinadas trocistas dos assistentes.
O Silveira lembrou-se então de ter lido, ou
lhe terem dito, que naquele momento a luta
eleitoral
battait son plein na
grande capital
porteña. Estava-se em
pleno período eleiçoeiro,
para a renovação parcial de senadores e
deputados.
Os socialistas, na impetuosidade juvenil
da sua formação, tinham perante os
vélhos
partidos arreganhos nunca vistos. Êstes respondiam
com uma animação e um calor igual. Daí
a encarniçada vivacidade da luta, e a dispersiva
abundância de tôdas essas arrebatadas
prédicas
de moral política, cuja copiosa fúria palreira
o Silveira ligou naturalmente à profusão
berrante de cartazes com muitos pontos de
exclamação,
e de anodínas efígies de bons burgueses,
aspirantes a pais da pátria, que êle via
por tôda a parte colados às
paredes,―sôbre
todos batendo o
record da
flamância e do réclame
o busto implicante dum já maduro candidato
a senador, de grande flor na lapela, no redondo
carão sensual uns olhitos muito vivos e
o grisalho bigode erguido.
Assim se explicava essa divertida e basta
[165]
erupção de relâmpagos de civismo, por
conta
própria ou encomenda alheia, um pouco à maneira
inglesa. Porêm nada disto podia maiormente
interessar quem, como o Silveira, se expatriára
de vontade, muito de indústria para furtar-se
ao galimatías político e não mais ser
parte nem presenciar, sequer, as sujas dissenções
e as chinfrineiras brigas em que se esfacelava
a sua querida terra. Tambêm, pelo momento,
êle começava a sentir que já conhecia
demasiado,
para um hóspede de horas, como êle, os
aspectos exteriores, o ambiente vulgar e comum
de Buenos-Aires.―Isto só não lhe bastava,
não
era nada. Queria ir mais alêm...―Mordia-o o
desejo veemente, picava-o o apetite agudo de
transpôr essas portitas de sacristia, de franquear
essa freirática barreira de inexoráveis
persianas com que êle esbarrava por tôda a
parte, tendidas herméticamente; queria, em
suma, desvendar um pouco o pensamento, a
alma da encantadora grande cidade que êle escolhera
para refúgio, surpreendê-la nos castos
mistérios do
hogar,
conhecer-lhe as características
morais, penetrar-lhe a vida íntima,―o
que êle de antemão sabia, pelo Azeredo,
«ser
algo difícil».
Entretanto nessa tarde, para aproveitar o
tempo, e, como bom táctico do galanteio, para
não perder o contacto com as áticas
perfeições
e as claras promessas de
Mrs. Edith,
decidiu ir
de visita aos Di Paoli. Tinha-os ali assim cêrca
do hotel, na mesma Praça do Congresso. Uma
[166]
modesta pensão que lhes haviam agenciado, em
casa duma «distinta camarada de
arte»,―explicára-lhe
o conde pomposamente. Era um simples
rés-do-chão, como tôdas as antigas
casas de
Buenos-Aires, com a porta e a seguir duas janelas.
No humbral da porta havia um singelo
placard de metal brunido, onde em
negros caractéres
se lia:
Lady Cowpel, miniaturista.
Entrava-se,
subiam-se três pequenos degraus, e
passada uma estreita porta envidraçada, tinha-se
o invariável e minúsculo vestíbulo,
estiradamente
continuado por um álgido corredor descoberto,
que uma longa fieira de discretas portas
flanqueava, e que era alto, fechado ao fundo por
uma esguia charola de dois andares.―Uma
mocita de touca e avental branco acudiu à entrada
do Silveira, a inquirir:
―
Qué desea,
señor?
Os Améglio haviam tomado o primeiro compartimento,
logo à direita,―o melhor da casa,―correspondente
às duas únicas janelas dando
sôbre a rua. A esperta
mucamita adiantou-se e
foi golpear à porta, melindrosamente blindada
de persianas fixas de madeira, como tôdas as
mais. O mesmo conde veio abrir; e logo com
expansiva alegria, ao dar com os olhos no amigo:
―Ah, o meu caro Silveira! Que bela surpresa!―Abriu
convidativo a tôda a largura o
batente da porta:―Entre, entre... queira entrar.
O Silveira hesitou, ao ver o conde em mangas
de camisa, e do mesmo passo surpreendendo
[167]
num relance a atravancada desordem do
aposento.
―Venho talvez incomodar...
―Quê! Incomodar?... De modo nenhum.
Pelo contrário! Entre... Fez muito bem!―E
para o interior, num altear imperativo da voz,
anunciou afávelmente:―Edith! o snr. João da
Silveira.
O recêm-vindo arriscou então alguns
tímidos
passos no baralhado pejamento do recinto. Era
uma vasta peça, alta e triste, forrada a papel
vulgar, esfarpado a trechos e comido junto ao
teto por eczemas de humidade. Sôbre a lisura
de bistre do soalho encerado, arrastavam-se um
pouco por tôda a parte as maletas, as caixas de
chapéus, os sacos de viagem, e havia
pulverulências
lineares de terra e lixo definindo geométricamente
o bôjo de grossos caixotes de pinho,
intactos uns e outros já eventrados, com
as desprendidas tampas postas ao alto e eriçadas
de grandes prégos, hostís e recurvos como
garras.
Em meio da sala o conde, sempre convidativo
e afável, e depois de haver cerrado a porta,
apressou-se a explicar:
―Não repare neste desarranjo, meu amigo.
Eu estava desenfardando e arrumando p'r'aí assim
de qualquer forma os meus ricos quadros.
Parece que não sofreram com a viagem.
―E são muitos?
―Ao contrário. Mas valem pela qualidade.
Um tesouro!―E num convencional arrebite de
[168]
vaidade:―Oh, que deslumbrante exposição eu
vou fazer aqui!
Passou a mão nervosa pelas negras ondas
do cabelo, moveu o tórax numa leve opressão
de cansaço, e mesureiro, abundante, sempre
inalterávelmente pálido, apontou desvanecido
ao irracional exame do Silveira a atramochada
distribuìção das suas telas, umas
já penduradas,
outras ainda provisóriamente postas de espalda
contra o rodapé surramposo da parede. E tambêm
junto a esta um petisito obreiro, arremangado
e trepado a um escadós de tesoura, como
que aguardava ordens, inexpressivo, imóvel, de
braços pendentes e o pesado martelo da mão
suspenso.
O Silveira julgou oportuno convidar polidamente:
―Bem, mas porque não continua?... Eu não
quero que façam cerimónia comigo.
―Cerimónia, nenhuma. É muito
amável...
É que estou um pouco cansado,―obtemperou
naturalmente o conde, enfiando o seu leve jaquetão
cinzento. Fez um sinal ao mocito da escada,
que desceu e saíu em seguida; e tranqùilamente,
sentando-se, acendendo um cigarro:―Temos
muito tempo.
Neste momento abria-se uma espécie de envidraçada
porta de alcova, no mais escuso recanto
da casa, e por ela fazia a sua apetecida
aparição essa sonhada delícia de
Mrs. Edith,
singelamente vestida,―uma saia corrida de fina
sarja negra, blusa branca de
liberty,―e o mesmo
[169]
liso penteado em bandós à Cléo, o
mesmo divino
perfil de Madona, o mesmo ar repousado
e ingénuo, a mesma ateniense modelação
das
formas. Avançou sorridente ao Silveira,
saùdaram-se
familiarmente, como dois bons amigos.
Logo ela recolheu pronto a mão, perturbada e
esquiva ao beijo demasiado expressivo do seu
admirador; e tudo era depois circunvagar, perante
êle, os confrangidos olhos pela sala, e enconchar
e alargar e mover com vivacidade os
braços, em adoráveis gestos de escusa.
O marido solícitamente interveio:―que o
seu nobre amigo já sabia... desculpava tudo. E
para o Silveira continuou, desabusado e simples,
aclarando:
―Obtivémos por muito favor esta pequena
instalação, que está longe de ser
decente... e
muito mais longe de ser barata. Imagine: esta
sala e dois pequenos quartos, interiores, escuros,
nada mais... quinhentos pesos por mês. E a sêco.
Uma barbaridade! Temos que ir comer ao
restaurant
Santini, que nos fica a cinco
cuadras, na
calle Paraná.―Aqui a
condessa fêz notar com
repulsivo enfado, que, demais, tôdas as manhãs
a laboriosa preparação dos banhos e
abluções
«era uma tragédia». E no mesmo tom o
Améglio
confirmava:―Uma roubalheira! uma maçada!
Conheço Londres, Viena, Berlim, S. Petersburgo...
pois, senhores, já vejo que não há
como
Buenos-Aires para fundir dinheiro!
―Não é nada tranqùilizador
êsse anúncio
para mim.
[170] ―Aqui o pretexto para tam alta renda é que
as peças estão mobiladas. Mobiladas!―comentou
o conde, com uma desdenhosa mirada em
tôrno, encolhendo os ombros.―Mas de que
maneira!
Não se recomendava com efeito o mercenário
recheio da vélha sala nem pelo confôrto nem
pelo aceio. De reposteiros, cortinas ou alfombras,
não havia vestígio. Ao meio da principal
parede, um aparatoso e ratado grande contador
japonês, ainda com preciosas
incrustações de
laca e marfim, mal amparava a poder de cunhas
e remendos a sua ruina claudicante. Havia mais
uma meia dúzia de desparelhadas cadeiras, tamboretes
e
fauteuils, com o estôfo
esfiampado e
sujo; uma
étagère banal
com conchas e búzios,
um piano; e ao centro uma mesa redonda, coberta
por um coçado e lustroso pano franjado,
de lanujem verde, agora ciscado abominávelmente
de pequenas ferramentas.
Com um novo lastimoso dar de ombros, tornou
o conde para o Silveira:
―Nem uma chávena de chá lhe podemos
oferecer!
―
To morrow...―acudiu a mulher com
adorável
carinho.
E muito solícito o conde, interpretando:
―Àmanhan... Oh, àmanhã, certamente,
com
o maior prazer!―E obsequiosamente lembrava:―O
que podemos agora é preparar-lhe um
punch. Vai feito?
O Silveira recusou delicadamente.―Por modo
[171]
nenhum! bastava-lhe gozar a sua amável
companhia.―
Mrs. Edith ofereceu-lhe
bonbons,
atalhando assim gentilmente o previsto fluxo de
consabidas frases lisonjeiras que de seguro ia
seguir-se. E levemente ruborizado, o Silveira,
a derivar, com os lábios melados da guloseima
e do desejo:
―Diga-me, conde... e a sua exposição onde
a vai fazer?
―Ainda não sei... Sei apenas, isso sim!
que vou
épater
tôda esta gente―rematou com
a mais segura ufania, atirando fóra o cigarro, os
olhos muito brilhantes.
E posto súbito em pé, tomando com
decisão
o braço ao amigo:
―Isto é um mostruário de puras maravilhas.
Veja, veja... venha ver! Comecemos por o que
está já aqui assim à vista. Aqui tem
mesmo na
sua frente um Hobbena, o maior paisagista holandês
depois de Ruysdaelf; a seguir, um Corot,
o grande psicólogo da paisagem; e agora em
figura, note! um dêsses graves e aristocráticos
retratos de Gainsboroug, que se pagam hoje a
peso de oiro; outro, do seu émulo e contemporâneo
Reynolds; ali, um belo estudo de Salomon
Konink; mais alêm, vá anotando sempre!
uma cabeça de Ticiano, de quem o Tintoreto
dizia «que pintava com carne moída». E
por último,―plantava-se com intimativa diante
do Silveira boquiaberto,―por último, nada menos
que um Velasquez! um genuino Velasquez,
ouviu?... o maior, o mais assombroso
[172]
pintor de todos os tempos.―A seguir, indicando
pelo soalho os caixotes intactos:―Fóra o
que está ainda p'r'aí assim...―E sempre na
mesma teatral fatuìdade, dando um giro triunfante
pela sala:―Não lhe dizia eu!?... É realmente
uma dôr de alma ter de desfazer-me de
coisas tam raras e tam belas... oh, mas ao menos
encontro lenitivo na idéa de que o meu sacrifício
há de dar brado! e de que ficará
memorável
na grata lembrança dêstes bons
porteños
a maravilhosa selecção de obras-primas cuja
aquisição eu venho facilitar-lhes... um
relicário
de Arte como êles não viram nunca, como
não
teem nada que nem de longe se pareça sequér!
Mrs. Edith, que depois de cautelosa
inspecção
acabára por sentar-se no menos avariado
dos tamboretes, seguia esta flamante parada estética,
sorrindo vagamente, numa complacência
tranqùila. E do fundo do seu obtuso espanto o
Silveira, para o marido:
―Devem ser telas muito caras?
―Seguramente.
―Próprias talvez melhor para Museus.
―Ah, não... aqui todavia há
riquíssimas
colecções particulares. Duas ou três,
pelo menos.
Eu estou bem
renseigné...
Sei como hei-de
manobrar.―E ladinamente, piscando o ôlho:―A
coisa é segura!
Perante tanta soma de glória e de fortuna,
uma instintiva dúvida chispou na pétrea
ignorância
do Silveira, que aventurou tímidamente:
[173] ―E, perdoe o meu amigo, são bem autênticos?
Um claro riso triunfal aqueceu a cínica face
do charlatão.
―Ora eis aí precisamente a garantia do meu
êxito, a chave do meu segrêdo! É o caso
daquela
minha invenção... Eis o ponto onde eu
queria chegar.
Convidou o amigo a sentar-se, sentou-se
defronte, e sentencioso, pausado, dobrando à
frente o busto, os cotovelos sôbre os joelhos:
―Oiça... O amigo sabe que tem sido sempre
um problema difícil poder constatar-se com
segurança a paternidade dum quadro, especialmente
dos antigos, recorrendo apenas aos meios
indutivos e dedutivos até agora em uso. Vamos
a ver...―Contava pelos dedos.―A análise
química das côres empregadas não basta:
primeiro,
porque os discípulos dos grandes mestres
ficam usando, geralmente, as mesmas pastas
e as mesmas tintas, o que já estabelece confusão;
segundo, porque, alêm disso, as melhores ou
piores condições de
conservação duma tela, a
humidade, o calor, as tropelias dos vários retocadores
e técnicos, e mil outros malefícios, chegam
muitas vezes a pô-la em estado de não ser
possível emitir uma opinião segura
sôbre a sua
idade e procedência. Bem, mas poderá
então recorrer-se,
dir-me hão, ao exame e confronto do
estilo, da maneira do artista. Ora aqui igualmente
o bom critério falha, falto de apoio sério,
porque não só, para cada artista, essas variantes
[174]
no processo pictural se produzem de ordinário
caprichosamente, senão que ainda, quantas vezes!
os adeptos e os continuadores duma escola
acabam por apaixonar-se pelas características de
execução do chefe e vão até
assimilá-las maravilhosamente.
Aí tem o meu amigo Perugino e
Rafael: dois temperamentos artísticos de bem diversa
índole, não é certo? E contudo,
comparados
em algumas das suas melhores obras, parecem
idênticos.
Contrariado e aborrecido por êste giro erudito
do diálogo, o Silveira esboçou um gesto de
impaciência e mandou uma implorativa mirada
a
Mrs. Edith, que folheava uma
revista ilustrada,
distraídamente. O conde prosseguiu:
―Há ainda a considerar os testemunhos da
época, os chamados documentos históricos, dum
grande auxílio, seguramente. Mas tambêm
êstes
só por si não bastam. Porque é por
igual freqùente
deparar-se uma ou outra tela atribuida
a qualquer dos grandes mestres da pintura, sob
cujo nome tal ou tal quadro foi inscrito nos
Catálogos, e afinal vir a averiguar-se que êle
para semelhante obra não contribuira mais do
que com a idéa e déra a firma, tudo o mais
tendo sido feito por algum dos seus discípulos.
Olhe, aí tem: o famoso
Retrato do
Rabbino,
durante muito atribuido a Rembrandt, porque
em tudo correspondia à
maneira consagrada
dêste genial pintor, hoje é catalogado como
obra de Salomon Konink. E quantos exemplos
mais!
[175]
Agora, sim, a condessa, condoída da mortificada
expressão e a confrangida atitude do Silveira,
tossicou, ergueu-se e veio de novo oferecer-lhe
bonbons, piedosamente. Enquanto,
palreiro
e implacável, sempre sentado o marido:
―Esta deplorável deficiência de elementos
de
contrôle dá
como resultado que a gente percorre
os principais Museus da Europa e aí vai
encontrar, ainda hoje, muitas das suas melhores
obras registadas e inscritas sobre designações
deficientes
ou imprecisas. A célebre
Visitação e a
Ressurreição,
do Museu de Berlim, ainda hoje
se não sabe a que primacial pincel atribui-las.
O mesmo acontece com duas
Madonas,
um
São
Lourenço, um quadro do
Gólgota, um
Retrato
de Guerreiro e vários outros, todos
peças de
subido valor, no Museu de Budapesth. O Catálogo
contenta-se em nos dizer que são «da Escola
italiana». E semelhantemente em todos os
grandes museus do mundo. Pois bem! amigo
Silveira...―acentuou com jubiloso orgulho,
abaritonando a voz, aprumando o busto,―para
preencher tam lamentáveis lacunas achei eu o
processo!
Eureka! É a
minha grande descoberta,
a minha glória, o meu segrêdo. Todos
cá virão ter... é
infalível! E quere saber onde
pela primeira vez ficou irrefragávelmente provada
a eficácia, a importância, a utilidade mundial
do meu invento?... Foi em Londres, na
National Gallery. Conhece?...
Há ali um grande
quadro,
The Old Grey Hunter, que
andava catalogado
como obra original de Paul Potter. Porêm,
[176]
recentemente, o dr. Bredius formulára a
êsse respeito dúvidas ponderosas, inclinando-se
a atribuí-lo antes ao belga Verboeckoeven.
Grande polémica nos jornais e revistas da especialidade,
socorrendo-se cada um dos contendores
às suas melhores razões e argumentos,
numa renhida discussão sem fim... e sem resultado.
Vai eu, que me achava então em Londres,
aproveitei... a ocasião era formidável!...
propus-lhe
crânement resolver a
dificuldade, pôr a
limpo a questão, aplicando o meu processo
microfotográfico.
Acolheram-me a princípio com
um scepticismo incrédulo, mas acederam por
fim. E sabe o que aconteceu?...―E arrebatadamente,
erguendo-se, num fogoso ímpeto de
vaidade:―Provou-se, mas provou-se por uma
forma insofismável, entende? que o quadro fôra
realmente executado por Potter... porêm Verboeckoeven
pintára o cavalo.
No manso rosto complacente de
Mrs.
Edith,
e ante a estupefacção alarve do Silveira,
perpassou
o comentário burlão dum sorriso. Enquanto
doutoralmente o Améglio, em pé diante do
amigo:
―Porque êste meu processo não só nos
dá
a segurança absoluta de saber se um quadro é
antigo ou moderno, mas qual artista, moderno
ou antigo, foi o seu autor.―Sacudiu a cabeça
e ergueu as mãos com encarecimento.―O que
então se nos revela é portentoso! Tenho
aí provas...
hei-de-lhe mostrar.―E agora modestamente,
encolhendo os ombros:―E contudo é
[177]
um processo bem simples e ao alcance de qualquer
que tenha uma certa prática de fotografia.―Voltou
a sentar-se, e com dogmatismo pedante,
feita uma pausa de importância:―A
questão é esta: cada artista, quando pinta, e
considerado
êste acto sob o ponto de vista puramente
mecânico, poisa as tintas
na tábua ou na
tela
inconscientemente, tem um toque
digital invariável,
traça inadvertidamente uma grafia peculiar,
que as centenas de pontas do seu pincel
vão de improviso riscando, numa impressiva
obediência ao automatismo nervoso, e naturalmente
rítmico, da sua mão. É um movimento
irreflectido, instantâneo, um rasto imperceptível,
que ao mesmo artista escapa, que o seu espírito
não dirige, que o seu ôlho não
alcança...
e contudo ficará marcando por uma forma incontrovertida,
eterna, insofismável, a genuína
autenticidade da sua obra. Qualquer coisa,―entende?―como
o reconhecimento duma assinatura
por um perito calígrafo, visto que a pena
pode considerar-se como um pincel de duas
pontas. O certo é que os trabalhos de qualquer
pintor,―quere sejam as tentativas indecisas da
primeira mocidade, quere os documentos fortes
da idade madura, quere ainda as já cançadas
produções da sua última
maneira,―quando submetidos
à prova microfotográfica, e basta
ampliá-la
oito a dez vezes, revelam todos um traço,
um toque, uma característica idêntica. Em cada
uma dessas minúsculas análises se apura sempre,
invariávelmente, que as sêdas do pincel, uma
[178]
por uma, vão deixando um fino sulco, ora
retilíneo,
ora quebrado, ora curvo, ora mixto,
afectando infinitas formas, porêm
idêntico sempre
quando se trata do mesmo artista, e diverso se
se comparam artistas diferentes.―E novamente
posto em pé, sem pausa, sem piedade, no seu
monopólio sem tréguas da enfriada
atenção do
Silveira, que debalde ensaiava um derivativo
inocente da fugitiva contemplação da
irlandesa:―Que
me diz a isto, hein?
―Eu acho maravilhoso!―acudiu compenetradamente
o Silveira, na sua ingénua credulidade;
e erguendo-se tambêm:―Deve dar-lhe
um dinheiral!
―Dinheiro e fama.
―Não precisava deixar a Europa. Tinha a
sua fortuna feita.
―Alguma coisa se fez já por lá...
Porêm a
divulgação de benefícios
dêstes deve estender-se
e apregoar-se bem por todo o mundo. Havia
que trazê-la a estas improvisadas
organizações
sociais da América.―Esfregava as mãos de
contente:―Vou
acabar com a perniciosa oligarquia,
com a daninha praga dêsses falsos «peritos
de arte», verdadeiros criminosos, que por
tôdas as grandes cidades enxameiam e manobram
impunemente! E, aqui em Buenos-Aires,
conto limpar as galerias particulares de todos
os falsos mamarrachos que uma cabotinagem
sem escrúpulos tem sabido impingir-lhes, a
pêso de oiro, como obras primas. Vai ver! vai
ver!
[179] ―Uma tarefa benemérita...
―E lucrativa, pode dizer sem escrúpulos.
E os negros olhos ladinos do conde tinham
a metalizada expressão duma voraz confiança,
ao atribuir-se por êste modo, com o mais audaz
desplante, o primado da invenção e o exclusivo
da aplicação dum processo que, ao tempo, estava
sendo praticado com êxito notável por
Laurie nos Museus inglêses e por Thionville nas
Pinacotécas da Bélgica e França.
Por fim o Silveira anunciou que ia retirar-se,
desapontado galã, ante o fracasso formal da
sua visita. E solícitamente o conde:
―Então já?...
―São horas.
―Bem, mas volta àmanhã, não
é assim?
Queremos muito vê-lo aqui.
―
Without fault, to-morrow,―instou numa
sublinha amável a condessa.
―Teremos já então a casa um pouco em
ordem e as télas tôdas à vista,―tornou
afável
o marido; e persuasivamente, quáse ao ouvido,
batendo-lhe no ombro:―Tenho aí um pequeno
Boucher e um Bastien Lepage que lhe devem
convir... Há-de gostar.
O Silveira sentiu frio na espinha e tomou
pronto o chapéu, para despedir-se. Crescia-lhe
agora na alma, contra a gananciosa estratégia
dêste charlatão sem igual, um vivo movimento
hostil, de tédio e de repulsa. Pensou vagamente
em não voltar... Porêm quando, ao receber as
ordens da condessa, sentiu nos lábios a carícia
[180]
do veludo tépido daquela mão pequenina, todos
os seus apetites ribaldos espertaram e o reganharam
num instante. Rejubilou, aqueceu... e
saíu, leve e ufano, todo já no fantasioso encanto
das delícias da tarde seguinte.
Era uma quinta-feira, dia habitual de
carreras.
Um passeio ao Hipódromo estava indicado.
Para poder obsequiosamente acompanhar o amigo,
o Azeredo obtivera permissão de faltar
nessa tarde ao escritório. À hora
própria, tendo
antes apalavrado um
taxis, seguiram
alegremente
para Palermo os dois, e em breve se incorporavam
e deliam na grossa e luzida
queue
interminável, de peões de tôdas as
classes e matizes,
de veículos de todos os preços, de meios
de condução de tôda a
espécie, que, naquele
desapoderado côrso à favorita diversão
bonaerense,
de tôda a parte afluiam e acudiam avassaladoramente,
bolsando gente a monte do estribo
plebeu dos
tramways, atirando de
golpe as
portinholas dos
wagons na
via-férrea, fazendo
pomposamente buzinar e rodar a sua opulência
pelo brunido asfalto das avenidas.
Considerava o Silveira com estranheza tam
nutrida e animada concorrência a um dia de semana,
um dia de trabalho. O Azeredo explicou-lhe:―que
todo o mundo ali jogava, moços e
vélhos, pobres e ricos, enfermos e sãos, mortos
e vivos... as mulheres e as crianças. Era a tintineira
[181]
geral. Quem não podia dar-se ao luxo
de vir a Palermo, fazia obra pelos palpites alviçareiros
das gazetas. É que o jôgo, a alicantina,
a exploração, a fraude, o interêsse, a
indústria
da burla e o recurso ao azar, eram o vício, a
paixão, o móbil dominante, o despótico
nervo
propulsor da vida da grande cidade. Os que não
apostavam nas carreiras especulavam em terras,
jogavam nas loterias ou na Bôlsa. E ainda havia
os que tudo isto sabiam muito bem fazer, ao
mesmo tempo. Da coisa mais inocente nos surdia
um
estafador, das mesmas pedras da
calçada
nos tomava de assalto, a cada passo, um ladrão
ou um agiota.―E abrindo depreciativamente
os braços, rematou:
―Uma grande banca ao ar livre, uma batota
ao abrigo das leis, é o que é tudo isto.
―E tu?...―indagou o Silveira, num despreocupado
sorriso.
―Ah, eu das corridas gosto. Bem vês... sou
de cavalaria. Aos domingos sou infalível.
Cruzavam ao tempo a aparatosa
grille
de
bronze, da entrada, e penetravam no largo e
luminoso desafôgo do
stand, que, com as suas
luxuosas tribunas, rústicos palanques, pequeninos
rondós,
pelouses e
minaretes, recordou ao
Silveira Longchamps, porêm mais pobre de paìsagem
e com menos perspectiva. E, de roda,
em pintalgados grupos sôbre a escovada areia
sôltamente ondeando e farandunando, a mesma
concorrência habitual a êstes logares, em
tôdas
as grandes cidades; os homens, grandes, fortes,
[182]
serenos, trajando com severa elegância, o tipo
do espanhol com vontade, no inteiro domínio
de si mesmos; as mulheres, desgarraditas e leves,
numa harmonia de conjunto impecável
aquatintadas finamente, a airosa silhueta cingida
com meticuloso escrúpulo ao córte dos figurinos
parisienses, mas sem afectação, numa
tenue de bom-tom, num
virtuosismo ponderado
e honesto, a que faltava aqui a nota
criarde
das
demi-mondaines
lançando o estouvado pregão
das últimas extravagâncias.
Era um pouco tarde. Já os primeiros números
do Programa haviam passado, e estava-se
num intervalo. Havia um grosso embate mundano
junto aos vários
guichets
dos côbros e
vendas. Cortava a suavidade pacífica do ar o
zangarreio áspero, burlão, de dois aeroplanos.
Cêrca do recinto da pesagem, um rijo mocetão
trigueiro, desbarbado, gordote,―de gôrra,
veston de presilha e polainas,―ao
defrontar
com o Azeredo exclamou familiarmente:
―Ó amigo Azeredo,
como le
va?
―Bem,
gracias! meu caro Jorge. E
Usted?―acudiu,
com um cordeal apêrto de mão, o interpelado.
E seguidamente, apontando ao lado o
Silveira:―Permite-me que lhe apresente o meu
querido compatriota e amigo João da Silveira?―E
logo para êste, com insinuante expressão,
completava:―O sr. Jorge Saavedra, argentino,
cavalheiro muito distinto, um dos meus melhores
amigos.
―
Ah, tanto gusto...―mastigou
entretanto
[183]
Jorge, numa sublinha indiferente àquele
shakehands
banal a um desconhecido. Mas, tomado
de súbita simpatia ao encarar melhor a figura
aberta e varonil do Silveira, tornou com interêsse:―E
há muito que se encontra em Buenos-Aires?
―Recêm-chegado apenas... há dias.
―E que impressões tem do meu país? Agrada-lhe?
―Enormemente! Uma linda cidade e um
povo cultíssimo. Deve ser encantadora aqui
a vida.
O Saavedra sorriu, num jubiloso estremecimento
de vaidade. Enquanto, tocando-lhe na espalda,
o Azeredo:
―E os seus favoritos hoje?... Agora, no
handicap?
―Não corre nenhum produto de marca...
ché, cá dos
meus. Não me interessa.
―Bem, e a seguir, no clássico
Montevideo?
―Oh, bem fácil... A vitória seguramente
vai ser de
Packoy.
―Tambêm vou por êle, sim. Linda estampa,
elasticidade, nervos, magnífico sangue...
―E montado por Arturi. Não há que duvidar!
Dá três quilos de vantagem; é porque
está
bem seguro da vitória.
Caminhavam agora de manso os três, marginando
a pista e sem maior interêsse pela corrida,
pronta e fácilmente acamaradados. Jorge Saavedra
desfazia-se, a um e outro lado, galanteador,
afável, em rebuscados cumprimentos, protectoras
[184]
miradas e acenos abundantes. Os olhos
espertos do Silveira perdiam-se nas côres berrantes
dos
jockeys, na vivacidade
marulhenta do
recinto, na perturbadora abundância de deliciosas
figuras femininas. O Azeredo rejubilava, irrequieto,
vivo, sempre aos saltinhos; e com familiar
confiança tornou para o Saavedra:
―Diga-me, amigo Jorge, e para o clássico
Chevalier que aposta fez?
―Isso nem se pergunta! Vou por
Canora.
―Como
Canora!? É vontade
de perder
plata... Eu aposto por
Chaica.
―
Chaica?...―atalhou por sua vez o
Saavedra,
parando, com um rir trocista.―Só por
broma,
vamos...
Es una
cabuleadora.
―É filha de
Pearl
Rivel!―redarguiu com
intimativa o Azeredo, formalizado.―Ora essa!
Cumpridora a mais não poder ser. A sua primeira
prova foi a primeira vitória. Não se lembra?
não viu que
performance
mais distinta?...
No tréno desta manhã sei eu que fez os 700
m
em 41''.
―Não importa! não importa!―objectou
Jorge, reatando a andar,
implicativamente.―
Canora
é filha de
Old Man e
procede do
haras
San Jacinto, é bom não
esquecer. É voluntariosa,
por vezes, tem um jôgo irregular, é certo.
Oh, mas não há aí uma competidora com
más
clase e melhor estampa!
―No domingo perdeu.
―Por meia cabeça, sómente.
―Pois hoje perderá por cabeça e meia.
[185] ―
Ya lo veremos,―pontualizou o
Saavedra
com arrogância. E de repente, esperto e firme,
agitando imperioso o braço:―O
Montevideo,
agora! Atenção! Se
levantan las
cintas... A
partida! a partida!
Os seis pôtros da escolhida
équipe para o
clássico
Montevideo
haviam largado, com efeito,
a tôda a rédea, imponderáveis,
distensos, o
pescoço em flecha, disparada a garupa, os jarretes
flamejantes fazendo voar a terra. Com simultâneo
gáudio do Saavedra e do Azeredo,
Packoy iniciou galhardamente a
direcção do
movimento e nesse posto de honra se aguentou
e cumpriu, durante os primeiros 600
m;
porêm
depois, de tranco a tranco marcando cada vez
mais curto, inexplicávelmente, foi-se deixando
levar de vencida por forma que, ao desembocarem
na grande recta final, o seu distanciamento
era já sensível. Entretanto,
Grey-Eyes,
um enxuto e ágil potrito castanho que se estreava
nesta corrida, atacando por fóra, ganhava
o posto dianteiro, que manteve até final,
vitorioso
leader, ao passo que
Packoy apenas
em quarto logar alcançou a méta.
O Azeredo barafustava e erguia os punhos
cerrados, em ganas contra o
jockey
duma arremetida
justiceira, furioso, saltitando. Enquanto,
numa concordante explosão de cólera, o Saavedra:
―Por culpa daquele
imbécil de Arturi!
Sempre com a mania de conter as montadas, a
reservar-lhes o maior esfôrço, para efeitos
teatrais,
[186]
no momento decisivo. E depois dá destas
planchas! Iam tam bem... O que
êle precisava!
E golpeou desapontado com o chicote a sébe
florida da vedação, deslocando-se em largas e
violentas passadas, o ôlho minaz, as narinas
aflantes.
Trouxe-lhe uma compensadora desforra a
corrida seguinte, que resultou um verdadeiro
match entre
Chaica e
Canora, a sua ardente
favorita, a qual por mais de meio corpo atingiu
primeiro o disco. Porêm desta vez Jorge, delicado
e comedido, não querendo ferir os machucados
brios do Azeredo como prático do
turf,
celebrou com moderado entusiasmo o seu
triunfo.
Faltavam ainda duas corridas; porêm o Silveira
de relógio na mão, tomado dum vago
embaraço,
arriscou―que não podia demorar-se.
O Azeredo, que estava ao facto do compromisso
galante por êle tomado na véspera, desculpou-o.
Mas, sinceramente penalizado, o Saavedra, dando
preguiçoso a mão a êste fulminante
captador
da sua simpatia:
―Retira já?...
Qué
lastima!
―Eu é que sinto imenso ver-me forçado a
privar-me, assim de repente, de tam amável
companhia. Mas... o Azeredo sabe...
―É certo, é... Precisa deixar-nos―confirmou
pronto o amigo; e súbito com um jubiloso
relâmpago na pupila insinuante:―Mas eu tenho
uma idéa, amigos! Podemos comer hoje
[187]
os três juntos. É uma
compensação.―Premiu
afávelmente o braço de
Jorge:―
Tiene Usted
compromiso?
―Não... para hoje, não...
―Óptimo! Considere-se então convidado,
hein?
―
Convenido.
―Às 8, no
Petit
Salon.―E com vivacidade,
para o Silveira:―Tu espera-me no hotel. Vou-te
buscar.
Saùdando ligeiramente, o Silveira partiu
logo. Pouco depois das 5 horas estava em casa
dos Di Paoli, tendo antes comprado, na passagem
por Callao, um fino ramo de
muguet,
a flor
predilecta da condessa. Fez retinir fortemente o
botão eléctrico. Ia decidido a
«atirar-se de vez»,
a arriscar um resoluto golpe de audácia que
pronto lhe assegurasse o triunfo definitivo.―E
que auspiciosos prenúncios para o seu intento!
Mrs. Edith estava só, e
um verdadeiro apetite,
arranjada lindamente. Pela abundância cálida
do cabelo uns toques déstros de ferro haviam
passado, ondeando-o ao de leve; não menos déstras
pinceladas de
kohl haviam engrossado
a
linha sensual dos cílios, haviam como que incendido
num voluptuoso fogo latente a macerada
sombra das olheiras; e daquela plástica
impecável os movimentos rítmicos podiam
íntegros
surpreender-se e adivinhar-se, pelas indiscretas
lisuras e os denunciadores refegos do
precioso
kimono de sêda
grenat que os cingia
apenas, sôltamente, deixando por inteiro a nu
[188]
os antebraços e a alvura do colo deslumbrante,
que nas suas linhas de contacto com a sêda
adquiria reflexos duma rosada e fluida transparência,
como se fôra carne feita de pérolas
moídas.
Foi um verdadeiro
coup de foudre
para o
Silveira a inopinada fortuna desta situação e o
supernal encanto desta figura. Beijou a mão
da condessa e entregou-lhe o ramo, tremendo
ligeiramente, sem palavra ferir, a língua sêca e
os lábios frios. Ela correspondeu deixando fugaz
entrever, num sorriso discreto, a rociada
frescura dos dentitos brancos. Agradeceu o
mimo da lembrança em carinhosas palavras,
para a rasa insuficiência linguista do Silveira
arreliadoramente intraduzíveis. A seguir, muito
naturalmente, prendeu sôbre o coração
dois
dêsses cachos de minúsculas caçoletas
perfumadas,
e sem perturbações nem pressas,
o olhar vago e repousado, sempre tranqùila,
foi acomodar os restantes com atento esmero
numa enfusita de vélha faiança, que trouxe da
alcova.―Veio ao tempo a
mucama,
trazendo
numa bandeja o chá e dois pratitos mais, um
com
sandwiches, outro com bolos
secos, sofrivelmente
sédiços. Dispôs em silêncio o
serviço
sôbre o pano coçado da mesa e rodou num
instante.
Na mente escandecida do Silveira o desejo,
o ardor e a fúria erótica subiam de ponto. A
sua incorrigível fatuìdade, os numerosos e
fáceis
triunfos que ilustravam a sua larga fôlha
[189]
de conquistador, debruavam-lhe das falaciosas
côres dum prisma demasiado optimista a singularidade
algo problemática da situação;
faziam-lhe
tomar por claros propósitos de
sedução,
por um convite formal ao galanteio, o que
não passava talvez dum ardiloso laço feminino.
Pelo momento, a condessa convidára-o simplesmente
a sentar-se e servia-lhe o chá, com adorável
intimidade, era certo, num abandôno insinuante,
avançando para êle o braço nu, enquanto
as amplas prégas do
kimono, dobrado
à frente, desnudavam por igual, em perturbadores
relances, a rósea maravilha do colo erguido
em suaves ondas de pecado. E tentava explicar-lhe:―O
conde não estava... não poderia
talvez vir senão tarde.―Quando o Silveira tal
chegou a compreender, sentiu nas orelhas um
calor de evidência, e na noite ardente das pupilas
relampeou-lhe um cântico de vitória...
Mas aqui o seu grande embaraço! Queria mostrar-se
um galã à altura, dominador seguro
dêste lance de favor; urgia que iniciasse verbalmente
o seu ataque; porêm como?... se êstes
soberbões ingleses faziam gala em não manejar
outra língua senão a sua! Como em nenhum
idioma os dois podiam claramente entender-se,
as suas abortadas tentativas de diálogo
resultavam assim um desbarato de palavras,
confuso e estéril, um titubeio divertido e por
vezes cómico, um atabalhoado duelo de absurdos,
desfechando sempre na mesma burlesca e
formal impotência, cortado de suspensões,
sublinhado
[190]
a risadas. Havia que suprir a deficiência
da frase pela abundância e a vivacidade do
gesto, muitas vezes. E lascarinamente o Silveira
aproveitava para desbordar-se em atrevidas manobras
digitais, para arriscar sorrateiros toques
sugestivos e ensaiar, como filhas do acaso,
aproximações
lascivas,―que
Mrs. Edith acolhia
entretanto
com inalterável singeleza, como que
sem dar-se conta, desprevenidamente, abotoada
numa cega inconsciência infantil e numa frialdade
desesperante.
Esta atitude inverosímil da condessa desconcertava
o Silveira, punha-o doido de despeito,
de raiva e de desejo.―Que demónio! Voltava
a esbarrar com a mesma diva impassível, a
mesma criatura calma, desentendida e ingénua
do começo da viagem... Vão lá entender
mulheres!
Essa deliciosa, essa picante doidelas dos
dias de Entrudo escapava-lhe outra vez!―E
no desnorteado furor que o aquecia, êle já descia
a processos de mau gôsto, cometia imprudências,
roçava-a ombro com ombro, apertava-lhe
o pulso, tocava-lhe o pé debaixo da mesa.―Então,
súbitamente, e como que obedecendo
a algum convencionado sinal, fez a sua inesperada
aparição na salinha a dona da casa, Lady
Cowper, sobraçando um paquetito.―Alguns
dos trabalhos das suas discípulas, que ela vinha
obsequiosamente mostrar ao recêm-vindo.―O
Silveira teve ganas de lhe morder. Ela
era uma quarentona repulsiva e obêsa, vestida
de amarelo, pequena, ruiva, de olhos claros,
[191]
marcada por abundantes sarapintas de bistre na
face enlagostada. Mesureira, bajulando, adiantou-se
a saùdar, com o seu sorriso verde de
criatura falhada, e logo a sapuda concha das
mãos sardentas a semear pela mesa uma parada
de miúdas bugigangas. Eram rebuscadas miniaturitas,
medalhas e iluminuras banais, camafeus,
embrechados, pirogravuras e esmaltes, de péssimo
desenho, duma execução vidriosa e dura
como o aspecto paleolítico da professora. Esta
porêm, importante e de pé, o ventre contra a
mesa, não despegava de encarecer essas efémeras
obritas de
virtuosismo barato,
mostrando-as
com ufania, uma por uma.―Que visse bem...
aquele finíssimo esmalte
Luís
XV... êsse delicioso
retratinho com moldura
Império...
uma
liseuse para um livrinho de Horas... esta preciosa
moldura gótica em cobre rebatido. E aqui...
e agora... e isto mais. Verdadeiras peças de
arte, havia de convir. O que não admirava,
feitas como eram tôdas por meninas da primeira
sociedade.―Exprimia-se num mau castelhano,
horrivelmente gutural, ora aspirado, ora cortante,
como golpes de machado rasgando lenha.
E passava sem cessar a aborrecida miuçalha às
mãos do Silveira, que no propósito inocente de
correr breve com a importuna, tomava fulo
cada peça e logo a arrumava, após um exame
sacudido, sumário, quáse agressivo.
Baldo estrategema, porêm, porquanto aquela
empatadora inexorável tomava agora familiarmente
assento ao lado dêle, e numa astuciosa
[192]
derivante, erguendo a esborifada cabeça e passeando
com admiração as pupilas deliquescentes
pela sala:
―Soberba colecção! não haja
dúvida. Um
verdadeiro museu. Fazia a minha fortuna... Já
reparou bem, sr. Silveira?―E num propósito
de baixa adulação, com intimativa, alongando
o braço:―E que fino, que lindo o retrato da
senhora condessa! Que não está favorecida...
Só agora o Silveira notou que, com efeito,
uma aparatosa fileira de télas, em ricas molduras
doiradas, remoçava e fazia viver dos brilhos
da sua cantante policromia a tristura pelintra
das paredes. A um canto havia, contrastando
deplorávelmente, pela realização e
pela factura,
com todo êsse broslamento sábio de figuras, de
planos e de tintas, um perfil a óleo da condessa.
Como já fazia escuro,
Mrs. Edith dirigiu-se
ao prendedor eléctrico, a soltar a luz; no momento
justo em que o marido entrava e vivaracho,
alegre, atirando o chapéu, seguiu direito
ao Silveira, a apertar-lhe a mão. E logo, dando-se
conta do ponto onde curiosa a sua atenção
incidia:
―Aquilo é um modesto ensaio meu. Não
vale nada.
―O modêlo não podia ser melhor...
O conde baixou a cabeça e dobrou-se, num
grato desvanecimento.
―É que eu pinto tambêm um pouco, não
sabia?... Tôdas as belas manifestações
da arte
[193]
teem em mim o mais insignificante dos seus
cultores.
A seguir, desatou-se em prolixas e sabujonas
desculpas por ter vindo assim em
retard,
faltando, bem a seu pezar, a um compromisso
para êle tam apreciável. E esfregando as
mãos
com ruído:
―Mas estou contente! Parece-me que tenho
já local para a exposição... e de
graça. O salão
dum compatriota meu, que é fotógrafo, na
calle Viamonte,―a fotografia mais
elegante,
mais
smart, mais
select de Buenos-Aires.
Lady Cowper, sentindo agora a sua presença
dispensável, havia deslizado ignoradamente.
Entretanto o Améglio, com o olhar vivo e matreiro,
em presunçosas atitudes tomando a sala
tôda:
―E então, agora, vê bem como são
preciosas
as minhas télas! Que grande lição
estética
eu venho trazer a esta gente, que colecção rara,
que magnífico conjunto!―Depois, cabotino,
insinuante, travando confiado o braço do Silveira
e pondo-o na frente dum pequeno
estudo
de paìsagem, onde uma figurita banal de aldeã
se esboçava, perdida numa
aleluia primaveril
de papoilas e malmequeres:―Aqui tem o seu
Bastien Lepage.
―O meu quê?...
―O quadrito, sim, que lhe destino. Uma
pequena maravilha, como vê... Note como ali
assim a figura poisa singelamente e sem
ficelles
de destaque, tocada simplesmente, com o mesmo
[194]
valor de todos os mais acessórios do quadro.
Era, como sabe, a característica dominante dêste
grande mestre naturalista.―Encarecia sugestivo
a expressão:―Uma tentação,
não é?...―E
suasivo, assentando-lhe a mão sôbre o ombro:―Que
me diz?
Cabisbaixo e mudo, vergado ao pêso do fulmíneo
ataque, o Silveira interrogou numa mirada
suplicante
Mrs. Edith, cujos olhos
doces esboçaram
uma solicitação de anuência,
irresistível...
E êle então, pávido e submisso:
―Bem... mas por quanto?
―Oh, meu caro amigo! Isso é uma questão
puramente secundária. Entre nós, já
vê... Qualquer
coisa... Nem vale a pena falar... Se as
coisas me correrem bem, terei até muito prazer
em lhe fazer presente dêle.
―Não, mas eu é que não quero...
―Depois! depois!
Súbito, numa bem marcada simulação de
desinteresse, o conde sentou-se ao piano, e sôltamente:
―Quere ouvir uma valsa que improvisei
esta manhã? Vou tambêm dedicar-lha.
E, com um ar boémio impagável, bamboando
o busto, os olhos em branco e a cabeça sôbre
a nuca, fazia gemer numa batida monótona
de compassos triviais as cordas desafinadas.
Nos nervos em sobressalto do Silveira corria
o mesmo frio arrepio da véspera, agora mais
áspero
Nos nervos em sobressalto do Silveira corria
o mesmo frio arrepio da véspera, agora mais
áspero, mais persistente... subsistindo ainda e
vibratilizando-o, minutos depois, já rua fóra,
[195]
junto com o exaspêro íntimo pela sua passividade,
a sua indecisão, o seu acobardamento estúpido
ante aquele descarado assalto à integridade
da sua algibeira.
Numa vergonha instintiva, absteve-se de
contar o humilhante episódio ao Azeredo, que
pouco antes das 8 veio demandá-lo ao hotel,
conforme se combinára. Saíram logo depois,
a pé, a tomar a
calle
Esmeralda, e por esta se
internaram até ao ponto onde uns mocitos de libré
encarnada lidavam à porta dum grande barracão,
murado de espelhos.
―É aqui, meu vélho. Espera um instante.
Dizendo, o Azeredo entrou ligeiro e atento,
a buscar se acaso o Saavedra já estaria, e a
marcar uma mesa; enquanto cá fóra o Silveira
seguia alheadamente o taquinar miudito das
muchachas que entravam para o
cinema defronte.
O Saavedra apareceu por fim, às 8 e meia.―Vinha
um pouco em atraso... mas era muito
bôa hora,
verdad?―Acolhido pelo
festivo aplauso
dos dois amigos, e num momento estavam
todos à mesa. Jorge vestia agora um
jaqué negro
irrepreensível, fechando por um só
botão e
extremamente cintado, colete de bandas brancas,
folgado e muito aberto, uma linda pérola
a prender o nó esguio da gravata, calça raiada
de fantasia e bota de polimento. Foi êle o investido
das graves funções da escolha do
menu.―
Petits
canapés de
caviar para
hors
d'oeuvre,
uma rica
croûte au pot,
filetes de linguado com
[196]
môlho de ostras, depois uma
entrada, espargos,
e por fim um prato crioulo, o coireáceo
churrasco,
especialidade da casa.―A questão das
bebidas foi árdua, pouco menos de insolúvel. O
Silveira lembrou tímidamente o
Colares, que
não constava da lista, não havia;
então Jorge
patrióticamente insistiu que provassem
Trapiche:
porêm o Azeredo opôs-se, com um depreciativo
distender do lábio, e optou-se afinal por
um qualquer
Borgonha de duvidosa
procedência.
Jorge iniciou a comida com apetite, e agitava-se
petulante, ufano, folgazão, todo ainda
no vibrante estímulo das emoções
hípicas da
tarde.
―Oh, aquela impagável
Canora! que
preciosura!
Viram bem?... Correu os 1:400 metros
em 1',22. É verdadeiramente o
record mundial
da velocidade, jámais registado nos anais
do
turf. Eu esperava muito dela, mas
não tanto,
palavra! Vale o seu pêso de oiro.
―De quantos quilates?―amolou, trocista,
o Azeredo.
―Oiro português, antigo... do tempo dos
vossos Brasís,―soube ripostar pronto o Saavedra,
numa lisonjeira evocação que os dois acolheram
com um quebrado sorriso. E sempre
contente:―O certo é que esta vitória
não só
exaltou os meus brios, como trouxe a mais
agradável compensação aos meus
desastres anteriores.
Porque, meus caros amigos...―E numa
aberta de intimidade, abatendo a voz, dobrado
[197]
sôbre a mesa:―Nestas duas semanas últimas de
carreras saíram-me da
algibeira ao redor de três
mil pesos.
Un clavo... Mas a
papá direi que
perdi trezentos.―Depois, atencioso e outra vez
natural, para o Silveira:―E em Portugal há
aficionamiento
pelo
sport hípico?
―Um pouco...
―Bastante! bastante!―acudiu o Azeredo,
num saltinho convicto.―Há muito bons
calções.
Tem agora havido, no hipódromo de Palhavã,
uns concursos internacionais muito brilhantes.
―Ah, eu recordo-me de ter visto no
Palace
Théâtre,―obtemperou Jorge,
complacente, atacando
a sopa,―um
film intitulado
Os Centauros
portugueses, que era realmente admirável.
―Sim! sim! trabalhos da nossa escola de
Cavalaria.
―Que
raids! que saltos... que
segurança,
que destreza! Não se pode exigir mais.
―E pode o amigo dizê-lo sem favor. Superior
aos italianos!―jactancioso o Azeredo rematou.
E serviu cordialmente vinho ao Saavedra,
que, daí a momentos:
―Eu p'r'a semana volto ao campo. Tenho
tôda a família lá, aqui já
tratei do que tinha a
tratar, e papá não abona mais
plata.―Encarou
numa penhorante afabilidade o Azeredo:―O
amigo, já sei, não pode vir...
qué lastima!―E
para o Silveira, abruptamente:―Porque não
vem comigo?
[198]
Ante a inesperada oferta, os olhos ladinos
do Azeredo dilataram-se de espanto, quáse
incrédulos,
e o deslumbrado Silveira aprumou-se,
num estremecimento de grata surprêsa. Com
sincera espontaneidade Jorge insistiu:
―Venha! Digo-lhe isto de vontade.
―Muitíssimo agradecido.
―Não conhece ainda papá nem a minha
família.
Mas não importa! Fóra da cidade não
há
protocolo nem cerimónias. E eu posso levar as
pessoas que me apeteça. Tenho carta branca,
ché... faço o
que quero.
―Vai, vai, meu rapaz!―estimulou, crepitante
de júbilo, o Azeredo.
―Bem vê, Buenos-Aires neste tempo é
detestável!―tornava
entretanto, com enfatuado
ar, o Saavedra.―Não há ninguem, morre-se de
tédio. As famílias com quem se pode tratar,
la gente bien, está tudo
fóra... veraneiam pelas
estancias, como nós, pelo
Tigre, Montevideo e
Mar del Plata. Bastantes deitam té à Europa.
E quem não tem
mosca,
ché... para dar-se
qualquer dêstes inocentes regalos, encurrala-se
herméticamente em casa.
―Pouco mais ou menos como em tôdas as
grandes cidades.
―
Si pues... Porêm o sr.
escolheu realmente
para a sua digressão à America uma
época aborrecida. Não há
recibos, festas, não ha
Colón...
Nada ni nadie.
Que va uno á
hacer?...―Encolhia
os ombros com enfado; e a
seguir, alegre, fanfarrão, abanando promissoramente
[199]
a cabeça:―Mais tarde, no inverno, sim!
é a grande animação... teatros, bailes
farras,
clubs...―Franzia brèjeiro os olhos:―E
há
então por'í assim umas
tertulias de concorrência
mesclada, que são deliciosas... onde
uno
afila à vontade e onde não
faltam
mujeres guapas
entre as quais se pode mesmo, manobrando
com discrição,
sacar una
bolita...
Passava junto dos três, neste momento, um
curioso tipo de vélho precoce,―desbarbado,
pequeno, os lábios sensuais, longo nariz rebatido,
na préga froixa das pálpebras a marca
lívida
das vigílias. O Saavedra premiu-lhe familiar
o antebraço:
―Meu caro Belisário, como vais tu?...
Senta-te um pouco. Queres comer?
―Ainda agora eu almocei...
E com um arrastado ar
blasé, sem mesmo
olhar os convivas, molemente, afastou-se, dandinando.
Jorge aclarou:
―É Belisário Ruíz, grande amigo
meu... um
incorrigível
guarango, um
picaro redomado.
Aparece lá pela
estancia,
algumas vezes.
Depois, na mesma cativante afabilidade para
o Silveira, reatando:
―Espero que se resolva e me dê o prazer
de acompanhar-me.―Que eu nada mais posso
oferecer-lhe, lá baixo, que uma casa de campo
modesta e mais modesta ainda a companhia.
Papá, mamã e
mi hermana
mayor...
Nadie
más... Que eu tenho uma outra
irmã, casada;
porêm vive em Paris. Tem um filho, de 16
[200]
anos, que é um rico amor de sobrinho. São os
encantos de papá... Mas, já digo,
estão longe.
Aqui na
estancia o amigo sentir-se
há um pouco
só... porêm o que lhe vai faltar em
atracções
de convívio caseiro, sobrar-lhe há em
hospitaleira
franqueza, em pitoresco, em inédito, em
sol, em liberdade.
―Estou positivamente encantado...
―Mamã é uma santa.
―É certo,―corroborou com amável
convicção
o Azeredo.
―Passa os dias pelos
ranchos da
redondeza,
a mitigar dores e adoçar misérias... Agora minha
rabugenta irmã, a pobre Célia―tornou
Jorge com uma afectuosidade tolerante,―essa
aparece pouco e anda sempre de mau humor,
porque lhe faltam as igrejas.―Depois, com
mal contida ternura:―Resta papá... Êste
é
um caturra adorável, um moralista, um filósofo,
um sonhador... mas à moda antiga. E então
que morre por conversar! Em êle apanhando
uma vítima a geito, nunca mais acaba. Um
latero
muito sofrível, já o sr. fica sabendo... Mas
há que desculpá-lo: é homem doutra
época, conhece
a história com'os seus dedos, foi contemporâneo
de tôdas as grandes figuras da nossa
brilhante renovação social e intelectual, de
há
quarenta anos. De sorte que, assim, na sua
ronceira opinião, tudo o actual é mau...
não há
nada como os homens, os sentimentos, os costumes
e as coisas do seu tempo. Até a nossa
mesma casa aqui em Buenos-Aires, há-de ver...
[201]
é como que uma flagrante exumação do
passado.
Escura, desconfortável, triste, cheia de coisas
vélhas... parece um túmulo.
E imediatamente, a desvanecer a impressão
de enfriamento que por ventura a sinceridade
juvenil da sua exposição houvera
feito alastrar no simpatismo espectante do
amigo:
―Agora tambêm devo dizer-lhe: se acaso a
minha prima Maria Mercedes se resolve a aparecer,
como prometeu, então tudo aquilo toma
outra vida, outra animação... é como a
passagem
da noite ao dia, torna-se a
estancia
um
paraíso.
―Com efeito!
―Ela é uma criatura preciosa, rara, singular!
dito por todos... deslumbrante como uma
deusa e perigosa como um demónio.
―Não tenho a honra de a conhecer,―acudiu
ladino o Azeredo; e todo vibrante, num
gesto cómico de defesa:―Nem quero!
Jorge sorriu; e com intimativa crescente,
comprazendo-se na sua galante e calorosa apologia:
―P'ra mim não, que temos demasiada intimidade,
mas p'r'a grande maioria dos homens
esta minha prima é o que se pode dizer uma
verdadeira tentação.―E insinuante, jovial,
quáse
orgulhoso, detalhava:―Viúva, rica, com 25
anos e sem filhos, fresca, novinha em fôlha;
pode dizer-se... apetitosa; e numa terra como
os srs. dizem que é esta nossa, de mulheres bonitas,
[202]
passando por ser das mais formosas. Imaginem!
una monada.
O Silveira escutava, silencioso e cabisbaixo,
sob a tirania voluptuosa dos sentidos. Jorge
completou:
―Depois, ilustrada, viva, inteligente. Que
ditos finos, que conceitos subtís, que mordacidade,
que espírito, que respostas a tempo! E
o que aquilo vai buscar p'ra têma de conversa!
Só ouvindo-a... Aqui há uns dias, o dr. Farmin
Gonzáles, um dos nossos homens de mais
verve
e maior prestígio intelectual, quis medir
fôrças
com ela. Pois, senhores! a fôlhas tantas declarava-se
vencido.
―Nessa contingência me não verei eu...
juro!―tornou o Azeredo, no seu gesto gaiato.
De sua banda o Silveira, estimulado, baboso,
aventurou:
―Deve ter muitos admiradores?
―Seguramente! São aos centos. Como por
exemplo, êste
imbécil
Belisário. Porêm, ela
no
les lleva el apunte, ché... Não
há um que se
possa gabar! É mais indomável e arisca que uma
potranca perdedora. Terá
ocasião de ver...
Servia o moço, ao tempo, o clássico
churrasco,―uma
pantagruélica montanha, cebácea
e sangrante, de carnes laceradas em bruto, de
gorduras, ossos, tendões, coirama chamuscada e
encorreadas fêveras. Numa instintiva náusea, o
Silveira arredou a travessa, desviando os olhos.
―Deus me livre! Isto é alimento para estômagos
blindados.
[203] ―Tudo vai do hábito...―compôs o Azeredo
docemente.
Ao passo que Jorge, com um ademan desdenhoso
e implicante, voraz, servindo-se com
abundância:
―Eu acho delicioso!
E uns breves minutos mais passaram os três
amigos nesta charla despreocupada e alegre, espontânea
exteriorização da mútua simpatia, da
íntima conformidade de sentir que tam auspiciosamente
parecia ligá-los, e que a esticada munificência
do Azeredo quis que fôsse selada a
Champagne. À despedida,
depois, por seu turno
Jorge intimou que voltassem a reùnir-se, domingo
próximo, no Hipódromo.―E que nessa
noite comeriam com êle no
grill-room do
Plaza.
―Será a despedida. Retiro terça ou quarta-feira;
porêm não descanso sem colhêr a certeza
de que não irei sòzinho...
E, na solicitação gentil duma anuência,
cravava
os olhos expressivos no Silveira, que, gulosamente,
com a perturbadora visão dessa misteriosa
prima a incender-lhe a fantasia e a arranhar-lhe
o desejo:
―Estou quáse resolvido...
No domingo seguinte, pela tarde, ao entrar
o Azeredo, no hotel, pelo quarto do Silveira,
encontrou-o de mau humor. Amadornado no
fauteuil, junto à janela,
lia distraídamente um
[204]
jornal, que atirou longe, mal sentiu o amigo,
num movimento brusco e fransindo a testa.
―Que tens, amigo João, que é isso?...
―Nada...
―Não... algo tens que te contraria ou aborrece.
O Silveira permanecia bisonhamente mudo.
Até que, a novas instâncias do amigo, e com
mal contido despeito, num sacudido gesto de
desgôsto:
―É que, francamente, não compreendo esta
gente!
O Azeredo sentou-se-lhe defronte, e meio
curioso, meio trocista:
―Que mal te fizeram?... conta lá.
―Por várias vezes te tenho falado no meu
delicioso convívio a bordo com os Wimeyer,
sabes?... Eu ingénuamente supus que se tratava
duma espontânea e lial amizade, que nos ligaria o
que quere que fôsse de sincero, de íntimo, de
cordeal,
não é verdade?... alguma coisa mais do que
essas mentidas e efémeras relações
contraídas em
viagem, e que, uma vez terminada esta, logo esquecem,
como se largam as malas. Pois imagina
tu que ontem, como era natural, fui visitá-los.
Vem-me à porta uma criadita espevitada e com
cara de fastío, que me recebe desconfiada, arisca,
quáse hostil, mal amostrando a cabeça pela
porta entreaberta. Depois, apenas eu declino o
meu nome e anuncio ao que ia, retruca-me logo
com uma grande secatura:―As senhoras não
recebem.―E, zás! tam pronto colheu na mão os
[205]
meus cartões de visita, sem dar mais cavaco,
dá-me com a porta na cara.
O Azeredo torcia-se em esgares trocistas e
ria, ria, gaiatamente.
―Ah! ah! É então por isso tanta
arrelía?
―Tu ris?...
―Sem dúvida.
―Achas pouco?
―Acho que não tens motivo nenhum para
tam saloia indignação, e que o que te aconteceu
é tudo quanto há de mais natural.―E
doutoralmente
explanou:―Pois então tu pensas
que isto aqui assim é como lá na nossa
parvónia,
onde estamos sempre de braços abertos
para acolher quanto importuno se lembre de
nos ir moer a paciência e estragar as horas?...
Annh! aqui fia mais fino... Aqui tudo anda
cerimoniosamente regulado, pautado e medido;
as relações e os negócios, os
ódios e as afeições,
o sentimento e o interêsse.
―Um pouco como em tôda a parte.
―Aqui mais do que em parte nenhuma...
Cultiva-se a sociabilidade a distância. Famílias
que se dizem íntimas, vêem-se duas vezes por
ano. Olha, sabes que mais? tens que comprar
um livrinho que aí há, de marroquim azul e
fôlhas doiradas,―custa-te dez pesos, o equivalente
a quatro escudos,―barato não é... mas,
alma piedosa como tu és, deves dá-los por muito
bem empregados, porque essa
massa
destina-se
ao custeio duma obra pia qualquer, privativa
função do
high-life: a
Associação
del
Divino
[206]
Rostro. É uma coisa do
tom.―E, reatando:―Ora
nessa espécie de mundano florilégio tu
vais encontrar, metódicamente distribuidos por
ordem alfabética e púdicamente apartados segundo
os sexos, todos os nomes, sobrenomes,
apelidos, moradas, e a direcção
telefónica mail'a
indicação dos dias de receber, das
famílias que
se prézam, tôda a graúda gente.
É um código
inviolável, sabes? um índice de
elegância, um
complicado e melindroso calendário social, cujas
efemérides são infalíveis...
São dogmas, são
escrituras. Por isso o seu conhecimento, o seu
uso se torna imprescindível
à
los muchachos
distinguidos como tu.―Ao ameno afago destas
leves humoradas, o rosto cenhudo do Silveira
desanuviára; e prazenteiro e cáustico, o
amigo:―Já
sabes pois que fóra de tais prazos rituais
da etiqueta, nenhuma dessas meticulosas figuras
é acessível. Não são
criaturas reais, são abstracções,
são símbolos... sobretudo agora. De
sorte que, realmente, demandá-los nos dias dos
seus convencionais eclipses, conforme tu fizeste,
é um triste documento de plebeismo, uma
gaffe
imperdoável.
―Quéro lá saber!―atalhou de ímpeto o
Silveira, num sobranceiro dar de ombros, mas
no íntimo vèxado, erguendo-se.
―Que remédio tens tu! se quiseres tratar
com gente limpa,―contestou, numa ironia amável,
o amigo; e rápidamente, tendo consultado
o relógio, erguendo-se tambêm:―Vamos, que
são horas.
[207]
Depois, já fóra no
hall os dois, e enquanto
esperavam o descensor:
―Tu deves mas é aproveitar e ir até ao
campo. Repara bem que êste convite do Saavedra
foi um rasgo positivamente imprevisto,
raro, excepcional... eu ainda não quero crêr.
És um burro de sorte! Porque não está
nada
isto no carácter argentino. São
amáveis e hospitaleiros
êstes bons
porteños, é
certo... porêm
morosos sempre e difíceis na
exteriorização do
seu agrado.―Bateu-lhe no ombro com entusiasmo:―Caíste-lhe
em graça, não há duvida!
―Sei lá...
―E depois, êstes Saavedras são das poucas
famílias autênticas de antiga linhagem, que, com
os Vicente Lopez, os Lastra, os Alvear ou os
Acosta, ainda aí figuram e manteem as nobres
tradições do vélho tempo colonial.
São óptimas
relações, já vês... e a
melhor chave pr'a te
franquear no inverno o ingresso à bôa sociedade,
como desejas.
Atingiam, em baixo, a rua; e então o Silveira
com os lábios crêspos e uma vaga onda
lúbrica a empanar-lhe o esmalte dominador dos
olhos, aventurou docemente:
―Aquela prima...
―Aí está! P'ra mais, com o lascivo apetite
da prima já a aquecer-te os miolos... E mais,
quem sabe? talvez que a ela lhe quadres. Marcha!
marcha, homem! Que mais queres?
O Silveira atirou-se de golpe, apreensivo,
[208]
sonhador, para o fôfo recanto do
taxi que haviam
tomado, e enquanto faziam o caminho de
Palermo, poucas palavras trocou com o amigo.
Ia alheadamente escrutando os indecisos aspectos
morais da sua situação. Repugnava-lhe
aquela fria subalternisação, aquele anonimato
estéril do presente; vinham vagamente acariciar-lhe
a fantasia miragens promissoras do futuro.―A
coisa afinal estava bem clara: essa
ideal Irene aparecia-lhe uma criatura
inabordável...
a amizade desbordante dos Améglio não
passava do verniz caviloso duma descarada
exploração.
E dos mais... disse! Nem conhecimentos,
nem apetites. Que demónio fazia êle
então
com tal gente, ali assim?... Seria perder o seu
rico tempo. Pouco menos que um achincalho.
Soberanamente ridículo... Não era p'r'o seu
feitio!―Assim, quando os três, já noite feita,
regressaram do Hipódromo, estava justo que o
Silveira acompanharia Jorge à
estancia
Amália.
Belisário Ruiz tambêm por lá devia
aparecer.
Lialmente, o Azeredo lamentava não poder
«fazer parte do rancho», e aplaudia-se de haver
sido o espontâneo e gostoso interventor daquelas
duas abertas simpatias juvenís. E numa efusiva
e sincera mutuação de impressões, os
três
foram seguindo, chalrando à compita, deblaterando
anecdotas, concertando planos, visionando
fortunas, soprando projectos irisados dos cambiantes
esplendores da mocidade.
Passada porêm a avenida Santa Fé, o
auto
teve que ralentar súbito a marcha, e qualquer
[209]
coisa de anormalmente pejorativo e tumultuário
lhes travou com fôrça a
atenção.
É que na sua frente, agora, uma formidável
e pesada barreira, uma barricada estrepitosa e
farfalhante, se fechava, de
tramways, de cavaleiros,
ciclistas, coches e
autos; de meios
de
condução de tôda a casta, cada um
vibrante e
álerte na ância de adiantar-se aos demais, e o
seu arrastado travamento paralisando o trânsito,
tomando de lés a lés a rua tôda.
Não era
sómente a luzida afluência dos que de Palermo
regressavam, como êles; era algo mais que o
grosso movimento domingueiro, habitual da rua:
era qualquer coisa de deliberadamente chocarreiro,
de impetuoso, de trocista, de hilare e audaz
ao mesmo tempo, cujo atropelado escoamento
se fazia com dificuldade e de cuja turbulenta
acumulação expluiam risos, motejos, apupos,
estraladas fulvas de ridículo.
Quando, a poder de paciência e tempo, os
três amigos conseguiram atingir a praça Rodriguez
Peña, tiveram por fim a noção clara da
grotesca realidade.―O amplo recinto estava
tomado e abarbado literalmente pela multidão,
que, parada e compacta, desbordando a areia
rubra das alamedas, pendurada das árvores em
cachos, posta em pinha sôbre as tenras
pelouses
machucadas, escutava e recolhia em êxtase
a torrentuosa eloqùência dos vários
oradores
fantochando de riba dos bancos a sua mímica redentora.
Jorge avançou, impaciente, a cabeça, despediu
[210]
o seu inquiritivo olhar ao largo, e logo,
retraíndo-se novamente e com mal contido
desdêm:
―Negócio de eleições... logo vi.
É um comício
dos radicais.
Ao mesmo tempo, porêm, e fazendo o ruidoso
circuìto da praça, uma
queue por igual cerrada
de veículos se lhe enrolava em tôrno, atulhados
por uma turbamulta de rapazolas que,
chinfrineiros, implicantes, chasqueando, assobiando,
berrando, buscavam por meio dum alarido
infernal amesquinhar e abafar as iluminadas
vozes cívicas dos apóstolos do centro.
―Êstes são os socialistas,―tornou aclarando
Jorge; e num crescente mau humor:―O
alargamento do sufrágio deu nisto!
De roda crescia tambêm naturalmente a onda
dos
mirones, atraídos
pelo inéditismo do espectáculo.
Porque parecia uma esporádica
prolongação
do Entrudo, formava o mais canalhesco
e adorável dos contrastes, esta palinódia
colossal,―a solene gravidade e a impertérrita
coragem dos meetingueiros fieis, parados e atentos
tomando em massa o vasto recinto, com a
algareira sublinha daquele rodeio impudente dos
contrários, afogando-os numa implacável cinta
de arruaças, de burlonas apóstrofes, vaias,
chistes
plebeus e guisalhadas de tr, atraídos
pelo inéditismo do espectáculo.
Porque parecia uma esporádica
prolongação
do Entrudo, formava o mais canalhesco
e adorável dos contrastes, esta palinódia
colossal,―a solene gravidade e a impertérrita
coragem dos meetingueiros fieis, parados e atentos
tomando em massa o vasto recinto, com a
algareira sublinha daquele rodeio impudente dos
contrários, afogando-os numa implacável cinta
de arruaças, de burlonas apóstrofes, vaias,
chistes
plebeus e guisalhadas de troca. E nenhum
dos dois bravos campos se dava por intimidado
ou vencido, nenhum queria ceder. Nesta inofensiva
e gritada briga mantinham-se testarudamente
rivais; os de fora na sua truanesca assuada,
[211]
os de dentro na sua caturra perseverança.
O Silveira e o Azeredo seguiam a scena sorridentes,
num maligno regalo; ao passo que
Jorge, sem perder a sua linha de pretenso aristocrata,
enfastiado e severo:
―Parece um bando de
patoteros!
Súcia de
gringos... A culpa é da
polícia.
VII
Ás 7 horas precisas da manhã, o Silveira
entrava na estação
Constitución, com um
moço
carregando as suas duas ligeiras maletas de
touriste
e uma chapeleira de coiro; e em vão demandava
agora, pelo imenso e sombrio
hall, a
presença do seu amigo Jorge, que chegou nos
últimos momentos, correndo açodado à
bilheteira
e logo tomando de assalto um dos
wagons
de 1.ª, já de portinholas cerradas, justo ao tempo
em que o silvo da locomotiva arquejante dava
o sinal de partida. Cómodamente instalados os
dois num compartimento que ia vazio, pronto
acendiam os cigarros e, baixando a vidraça, seguiam
despreocupadamente o manso e bucólico
deslise da paìsagem, na fina aquatinta daquela
deliciosa manhã, clara e tranqùila. Primeiro, o
complicado e barôco bracejar, o espreguiçamento
indefinido do arrabalde da
cidade,―
tiendas,
conventillos, fábricas,
riachos, poços, jardins,
[214]
azoteas sôbre
monturos, caliças entre arvoredos,―tudo
isto cortado a cada instante pela
paragem barulhenta nas estações, tudo riscado
de vagos esboços de alinhamentos de ruas, abertas
no sólo virgem, e que, longe a longe, raro
marcavam apenas, como afoitas vedetas, umas
fieiras de casitas sôltas, cada vez mais raras, mais
sumárias e mais humildes. Depois, no progressivo
despovoamento da planura, vinham os altos tufos
desgarrados de eucaliptus, dominantes e protectores
como guardiães do deserto, vinham os penachos
sussurrantes dos álamos e dos salgueiros,
os bosquetes, os telheiros, os
ranchos, os sarçais,
as lomas de areia; e, contidas na utilitária
rêde de inúmeras vedações de
arame, as primeiras
manadas de gado pastando suavemente. A
pastosidade atascadiça do terreno e a vizinhança
do mar empapavam de humidade o espaço; a
relva fumegava, e as esfumadas tintas do ambiente
esbatiam-se numa mortiça e branda
deliqùescência,
feita de calma e de frescura; passada
porêm a estação
Ferrari, a linha férrea
internava-se,
inflectindo marcadamente ao sul, e
então o ar ia alimpando, aquecendo, já as linhas
eram mais firmes, os
contornos
definiam-se, e
por fim uma enxuta
aleluia matinal
realçava e
doirava, a perder de vista, aquela rústica
pacificação
dos homens e das coisas.
O trem seguia sempre pelas suas implacáveis
e vibrantes talas de aço, ferralhando, arfando...
Ante a gostosa complacência e a interessada
atenção do Silveira, o seu amigo, que
[215]
conhecia naturalmente a região a palmos, ia de
espaço apontando panoramas e desfiando pormenores,
fazia o cadastro pitoresco do país,
obsequiosamente. Até que, andadas assim cêrca
de 2 e meia horas, atingiam a encantadora cidadesita
de Chascomús. Aqui havia que deixar o
trem de ferro para empreenderem caminho a
oeste, hora e meia de auto até à
estancia Amália,
o apetecido termo da viagem. Jorge Saavedra
julgou oportuno aproveitar esta mudança
para fazerem, antes de seguir adiante, o circuito
rápido da linda povoação, marginando a
melancólica lagôa que a rodeia por oeste e
pelo sul, depois passando frente ao
Club de
regatas,
ao
Hospital de São Vicente de
Paulo,
dando a volta da
Praça
Municipal, e tornando
por fim à beira da lagôa, em piedosa visita ao
desmantelado «cemitério
vélho», dentro de
cuja rocalha carcomida, e por entre a parada
fúnebre de ciprestes, destacava a mancha ratada
e lívida duma alvenaria simbólica.
Com um sobrecenho comovido e grave, o
Saavedra explicou:
―É o moimento à memória dos chamados
«bravos do sul», que aqui sucumbiram na famosa
jornada de 7 de novembro de 1839, paladinos
sublimes do engrandecimento pátrio, pela
libertação da sua estremecida terra batendo-se
como leões, dando de barato em holocausto a
vida.
―Contra quem lutavam êles?
―Era um grande movimento insurrecional
[216]
organizado contra o tirano Rosas, sabe?... Uma
das páginas épicas da nossa história,
quáse
desconhecida, entretanto, apesar de haver sido
escrita com sangue autêntico de heróis.
―E tiveram por cá muito tempo de guerra
civil?
―Uns quinze anos, nada menos!
Una
barbaridad. Felizmente, já não
é do meu tempo...
Mas êste santo movimento emancipador, aqui,
foi a brava seqùência do célebre
pronunciamiento
de Dolores, cinco dias antes. Tenho-o
ouvido contar a papá centos de vezes. Diz êle
que êste comovente episódio é dos que
mais nos
engrandecem, mais nos honram... e que deve
ser magnificado como o precursor imortal dos
dias gloriosos de Caseros.―E com progressivo
e varonil entusiasmo:―Pelos modos, os revolucionários
vieram por'í acima capitaneados
por Castelli e concentrados primeiro em Dolores,
o berço humilde dêste movimento redentor,
como lhe disse. E havia um entusiasmo doido!
tinha-se o triunfo como certo, contava-se com
que as fôrças do temido caudilho Granada se
passassem aos revoltosos, esperava-se o refôrço
prestigioso de Lavalle,―que sei eu?... A gente
de Rosas saltou-lhes ao encontro, mas cá os
bravos do sul repeliram-na, apesar de constituir
a vanguarda inimiga a famosa cavalaria de
Catriel, uma indiada temível! Quando de repente...
não sei bem como aquilo foi, parece
que houve traição dum capitão... O
certo é que,
seguros já os revolucionários da
vitória, de repente
[217]
as coisas mudam, a gente de Rosas encurrála-os
contra a lagôa, êles resistem, e um a
um vão caíndo, raros tendo escapado à
morte.
Uma coisa bela!―Agora Jorge fremia de raiva,
e indignadamente:―Pois, a seguir, êsses
brutais vencedores, dignos servos do tirano, todo
o dia levaram chacinando, degolando, lanceando
a torto e a direito, por essas ruas. Inocentes,
vélhos, mulheres, crianças, tudo a eito! Uma
vertigem de canibais, macabra, horrível... E
foi como ficou assegurado por catorze anos mais
o domínio feroz do ditador!
Mas o automóvel deixára a calçada e
breve
reganhava o campo, internando-se, salteiro e
ofegante, no majestoso encanto da solidão, investindo
com o desconhecido. Pela carreteira
mole e insegura, no seu rodar silencioso, aventurosamente
se ia deixando envolver e perder-se
no problema insondável da imensidade. Porque
à sua ilharga e na sua frente, alargando, crescendo,
agrandando sempre, inexorável, monótono,
desdobrava agora a sua toalha de fertilidade
inexgotável o maior celeiro do
mundo,―inestimável
manancial de produção e tesouro
de abundância em que os nativos firmam a sua
imprevidência, os colonos a sua esperança, os
mercadores a sua codícia e os milionários a sua
riqueza. Começava o desdobramento da interminável
steppe argentina, a
lendária
pampa,
essa famosa e imensa planura verde, dum verde
característico e próprio, um verde que
à fôrça
de carregado e sombrio, é quáse azul; assim
[218]
como, ao alto, o azul da abóbada celeste, a poder
de claridade e leveza, é quáse branco; assim
como, na sua fecundade palpitante, é quáse negro
o sulco rasgado na crôsta húmida da terra.
E não há suspensões,
córtes, paragens, não há
derivação nem termo, nesta avassaladora
invasão
do Infinito. Por essa divina manhã de
outono e sôbre a suave pradaria sem fim, paira
a carícia inefável duma poesia
dulcíssima... e
da luz a diáfana pureza esbate e aparta em
cristalinas nuanças a tonalidade cambiante das
coisas; aqui, em rústicos e tenros
bouquets, as
floritas púrpura da luzerna; logo, o verde gordo
dos pastos, mosqueado da manchita grisácea
ou bistre dos mansos gados, ruminando; mais
alêm, definido pela lacrimosa fita dos
sauces,
o colear rumorejante e claro das ribeiras; ou
a nódoa triste dos currais, dos
ranchos, das
taperas, dos celeiros; ou a
imobilizada ondulação
das dunas de areia, com a epiderme rugosa
e árida estriada pelo vento; ou ainda a
ponta lívida das míseras e frágeis
carpas dos
colonos, grupadas como as tendas dos
beduinos
no deserto. De raro em raro, sôbre a esmagadora
rasoira da solidão virgulando ténues
e mal perceptíveis, como infusórios, as
cuadrillas
minúsculas de peões cingem-se à terra
e incessantes moirejam, como formigas,―uns
colhendo o milho em sacos, outros acamando
o rastolho, outros, mais previdentes, já rastreando,
arando... E sôbre a gleba recêm-revôlta,
nos ávidos mamilos dessa fresca terra
[219]
virgem, a bênção gloriosa do sol, como
querendo
antecipar-se à fecunda labuta do homem,
cái e entorna-se, palhetada, coruscante, em
pródigas
sementeiras de oiro.
No último limite da percepção visual,
tam
ao largo como pode alcançar a nossa vista cansada
e extática, o esmalte pálido do céu e
a
linha fôsca do horizonte tocam-se, mas não se
confundem. São dois antagonismos, são dois
infinitos, duas grandes interrogações, tangentes
mas opostas, raiando e barrando a tôda a volta
a imensidade do espaço, como os dois batentes
da incorruptível porta do Mistério. Ao mesmo
tempo acontece que, na chata uniformidade
dêste solo raso e sombrio, os mínimos acidentes
topográficos, os contornos mais insignificantes,
um ligeiro médano, uma leve saliência,
qualquer ínfimo relêvo, como se projectam inteiros
na despejada tela do horizonte, e pela
sua mesma raridade, ganham assim valor, crescem,
avolumam, assumem dimensões gigantes,
e alçam-se e aprumam-se bruscamente, caprichosos,
enormes, como solitários ilhéus no
berço cavo das ondas. Tal imponente e vago
mamelão que ao longe nos aparecia como um
punhado ciclópico de rochedos, à medida como
depois, fazendo caminho, dêle nos acercamos,
vai apequenando, minguando, a aproximação
desbasta-o, come-o a realidade, as suas linhas
reduzem-se... a termos que, quando lhe passamos
perto, temos que verificar por fim, desencantados
e tristes, que essa miragem hiperbólica
[220]
da solidão não era mais que uma modesta
mêda de palha ou de feno, uma casota humilde,
um pôço, um
hangar ou um monte de estrume.
Por igual, o ligeiro arcaboiço em ferro das
bombas elevadoras de água, com o seu aéreo
penacho rodiziando ao vento, figura-se-nos a
maciça evocação dalguma
lôbrega tôrre feudal,
rasgada em seteiras, cingida em barbacãs, coroada
de ameias. Há pequenas
estancias que
parecem cidades, toiças de mato que parecem
florestas, simples lomas que parecem montanhas.
E por vezes, sôbre o esfumado pedestal
dalguma dessas perdidas cumieiras distantes,
vinca-se e agranda súbito, monstruosa e negra
na claridade sideral do ambiente, qualquer
coisa como a mégalítica
renovação de algum
lendário animal sagrado, e que não é
mais entretanto
do que a pacífica silhueta dum cavalo
ou dum toiro imóvel e sonhador na muda passividade
do deserto.
O silêncio é vasto, esmagador e solene como
um crépe de olvido, como uma mortalha de
sombra... apenas de longe em longe picada pela
microscópica nota estrilante, encarnada ou azul,
de algum raro saiote feminino. Nesta melancólica
extensão sem fim, ténues nuvens
grisáceas
se desenrolam por vezes e vão correndo... é o
penacho arquejante duma locomotiva, é a poeira
erguida por uma tropeada abundante de vacas
ou de cavalos; mas tudo isto sempre fugaz, miudito
e distante, como imponderável, sem importância
e sem ruído. E sôbre o domínio infinito
[221]
da solidão paira um fundo imanente de tristeza.
Há tímidos lamentos pelo ar, e os sulcos abertos
pelo arado são como as crêspas
vibrações
duma resignada angústia, duma dôr enfreada e
humilde... que é a dôr da própria
terra. Porque
esta é a terra maravilhosa das bárbaras lendas
gauchas, terra de
promissão, de paz e amor;
terra de humildade e de sacrifício, a terra fatalista,
a terra paciente, a terra mártir,―retalhada
primeiro pelo aço dos conquistadores, que, empapada
de sangue indígena, havia de mais tarde
florir na assoberbante iniquidade dos latifúndios;
hoje com não menos avassaladora impudência
assolada e batida em tôdas as direcções
e sentidos, pisoteada pela bota surramposa
de tôda a sorte de colonos, violada pela torpe
especulação material de tôdas as
raças.
A pródiga, a inexgotável, a doce e
lendária
pampa...
Um momento veio em que, à direita e muito
ao largo, sôbre uma ligeira ondulação
como que
assoprada na frialdade jacente da planura eterna,
começou a definir-se, a crescer e a afirmar-se
potente, na claridade vítrea do céu, uma ampla
construção, tarraca e singela, hospitaleira a
sorrir
entre o arvoredo.
E logo Jorge, convidativo e alegre, alongando
o braço:
―Lá está a nossa casa. Pronto vamos chegar.
[222]
Bem situada, não acha?... Alcança-se a
grandes distâncias. E ademais é fácil
de reconhecer,
por aquele grosso penacho verde-negro
que se lhe ergue um pouco à frente, não
vê?
―Sim... Distingo perfeitamente.
―É um vélho
ombú, não sei
quantas vezes
secular... um dos raros exemplares que por'í
ainda restam desses abomináveis veteranos do
deserto.
O Silveira aprumava-se e movia-se a cada
instante, buscando concretar impressões, progressivamente
interessado; enquanto ao lado
dele, Jorge, preguiceiro, indolente, com a sua ligeira
ponta de fatuìdade, ia explicando:
―E, sabe o meu amigo? há muito que vamos
já caminhando por terras nossas. Tudo isto
em volta. Ao redor de seis mil hectares. Não
é nada... Mas, em suma, p'ra passatempo
chega bem.―E regaladamente, estirando-se
mais, tirando o chapéu e com a mão suave acamando
o cabelo negro e corredío:―Papá poderia
já ter alargado a propriedade, mas não
quere. Está contente com o que tem. É que
êstes campos p'ra cria de gado são o que
há de
melhor, porque dão magnífica luzerna; e
são
igualmente imelhoráveis para tôda a casta de
produção agrícola. Tambêm,
por isso, reservâmos
apenas uma terça parte para nós, e o
mais anda tudo p'r'aí assim repartido por essa
malta de
gringos. O pior
é que nem todos são
pontuais na renda, há que ser-se duro com êles.
Porêm dão vida a estas redondezas e precisamos
[223]
dos seus braços no fim de contas. Formam
uma família já bem numerosa... e por vezes
bem incómoda.
Com efeito, para onde quere que o Silveira
alongasse, cativado, a vista, invariávelmente ia
encontrar, aquecendo o ambiente e salpicando
de pitoresco o espaço, a nota viva, rude, impressiva,
da utilitária obra do homem: a um
lado, sempre a mesma basta e complicada rêde
das vedações de arame a dividir os
potreros
travadas e geométricas como os alvéolos duma
colmeia, disciplinados cárceres ao ar livre por
onde os contemplativos rebanhos arrastam mansamente
a sua vida vegetativa e incerta; ao
outro, por igual a mesma intensiva e estreita
parcelação da terra, aqui riscada em hortas,
vicejando
em pomares, vergada ao pêso das colheitas,
ali eriçada ainda do rastolho, ou já
limpa, revolvida, fresca e fumante, esperando
as sementeiras novas. E por tôda a parte tambêm,
ao acaso semeadas e dispersas, como tubérculos,
rugosas e negras como concreções de
tophus bretoejando na uniformidade
epidérmica
daquele sólo gordo e húmido, destacam as casotas
sumárias dos colonos, míseras choças
de
barro amassado com palha e feno, tendo cavado
na frente um pequeno pôço e à ilharga o
inseparável
forno,―redondo êste, enorme, dominador,
como um zimbório, muito liso e claro.
Atingiam agora os dois amigos a gradaria
singela de ferro que circunscrevia um tôsco e
reduzido esbôço de jardim, frente à
almejada
[224]
estancia. Então o
Silveira pôde notar de relance:
esta era um grande edifício quadrangular,
de modesta elevação e linhas simples,
apenas um andar sôbre o térreo, e tudo em
alvenaria
escaiolada a côr de ervilha. Numerosas
portas, tôdas de córte igual, ofereciam acesso
ao andar térreo, à altura de cuja cornija uma
espécie de farta cobertura de
hangar, em zinco
ondulado, avançava e corria a tôda a volta,
protectoramente
tendida sôbre o amplo
pasillo, ladrilhado
a mosaico e vindo à sua frente apoiar-se
em colunas. Depois, transposto o largo portão
do jardim, francamente aberto, e dados alguns
passos mais, Jorge e o seu hóspede deixavam
a espaldas a atormentada silhueta do vélho
ombú; e agora,
já junto à casa, a
projecção aérea
do
hangar mascarava-lhes a
visão do andar
superior, e tinham ali ao seu alcance, em baixo,
transposto apenas um degrau, o piso sombreado
e confortável daquela espécie de garrida galeria
andaluza, adornada por vélhos lampiões de cobre,
enrediças, gaiolas de canários,
faianças com
plantas, cadeiras de
hamaca e
mesitas de vêrga.
Pai Saavedra estava com o
mayordomo,
no
seu escritório,―informou o
mucamo que acudiu
solícito à entrada dos recêm-vindos.
Era a
primeira casa à direita do vestíbulo. Jorge pediu
vénia por um momento ao amigo e entrou.
O tempo suficiente para o Silveira, continuando
o seu sucinto exame, notar a ática singeleza e
o escrupuloso aceio do pequenino átrio, luminoso,
arejado, o brunido soalho em pedra mosqueado
[225]
de miuditos arabescos, e do estuque
cinzento das paredes pendendo em simétrico
arranjo cabides, petrechos de caça e armas
gentílicas.
A face oposta à entrada era tomada tôda
por um grande vitral colorido, ocasionalmente
aberto, e desvendando assim o risonho
patio
que no seu interior os sossegados muros da rústica
habitação enquadravam ciosamente,―apenas
com uma furtada aberta, ao fundo, para a
vaga imensidão do campo. Devia ser a cozinha
a casa que aí, interrompido o circuìto, formava
ângulo, porque à sua porta uma mulher estava
pelando aves, sôbre um balseiro fumegante. E
não longe, junto ao pôço de gancho e
roldana,
um peão, arremangado e de lenço ao
pescoço,
brunia metais de arreios, com um balde entre
os joelhos.
Mas já Jorge voltava, risonho, ligeiro, no
momento justo em que tambêm o
mucamo e
um outro peão entravam do jardim, conduzindo
as malas.
―Papá está só e morto por
vê-lo, amigo.
Pase! pase!
E daí a instantes o Silveira colhia o efusivo
apêrto de mão dum bom vélho
afável, rosado,
pequenino, que com uma voz enternecida e confiada
lhe dava as bôas vindas.
―Imenso gôsto em conhecê-lo... Que
honra, que prazer nos dá! Que bem que fez
em vir!
―O prazer, o encanto é todo meu. Estou
imensamente reconhecido...
[226] ―Como, reconhecido?... Qual!
Qué
esperanza...
Pelo contrário, a nossa gratidão é que
é infinita p'ra todos quantos teem a complacente
bondade de vir alegrar esta nossa solidão aqui.
E quanto ao meu amigo, já sabe... recomendado
por Jorge, considere-se da família.
―Isso é dos livros!―exclamou Jorge jovialmente,
num aprovativo acêno da cabeça.
E o pai com a mais desafectada naturalidade
para o Silveira, simples, insinuante:
―Perdoe-me se o fiz esperar...
Este... estava
aqui caturrando com o meu
mayordomo.
Coisas fastidiosas por vezes, mas inevitáveis...
coisas práticas. Contas atrasadas que p'r'aí
andam...
E àmanhã é dia de abater gado.
―É cá p'r'o consumo da
estancia,―acudiu
obsequioso Jorge, interrompendo.―Dois dias
por semana.
―É certo,―mansamente o pai confirmou.―Um
serviço corriqueiro, trivial. Pois êstes
capatazes são uns
atorrantes e vingam-se, sempre
que podem, da sua condição subalterna,
sacrificando,
p'ra nos fazerem dano, os melhores
exemplares, ou então mandando abater rêses
nocivas, enfêrmas. O demónio! Há que
andar
sempre em cima dêles.
Mucho
ojo!
―E um bom
rebenque, não
seria pior...―completou
Jorge, ameaçador, com um gesto expressivo.
Calmo porêm e bonachão, o pai corrigiu
suavemente:
―Cala-te! Não digas barbaridades.―Depois,
[227]
amável e voltado para o Silveira, derivando:―Bem,
mas isto não são coisas p'r'o
nosso querido hóspede. Vamos ao que lhe interessa.
A minha senhora não sei se está... minha
filha Célia tampouco. Queria apresentá-lo...
Porque,―e num mimalheiro sorriso, indicando
Jorge―com êste
gran
bribón mais, somos aqui
tôda a família.
E carinhosamente Jorge, abraçando o pai
sôbre os ombros, com uma liberdade e uma
irreverência chocantes para os rígidos
preconceitos
educacionais dum europeu como o Silveira,
ripostou:
―
Qué rico tipo!
Os miuditos olhos garços do bom vélho molharam-se
de ternura; e outra vez voltado para
o hóspede, com a mesma acolhedora expressão,
bondadoso, aberto:
―Em suma, daqui a um momento juntamo-nos
todos à mesa. Vai ver: pouco e ruim...
mas sabemos ser amigos, de todo o coração e
co'a melhor vontade.
O vélho Saavedra dizia estas coisas com
uma familiaridade calorosa e espontânea, com
uma simpleza tocante. Era uma figura interessante
e invulgar. Vestia todo de negro, tinha um
ralo bigodito em escôva, a barbicha grisalha,
aparada e têsa por igual, contornava-lhe a face
de orelha a orelha, e à volta do imaculado colarinho
sem goma enrodilhava-se um farto lenço
de setim, como há sessenta anos, negro por
igual e retido à frente por um nó com duas
pontas.
[228]
Dois fundos vincos entre os cilios, a clara
testa repregada e vibrátil, o cránio mal
guarnecido
de longas e sedosas cãs, amplo e redondo,
denunciavam o homem de pensamento e de
sonho, um recto entendimento alumiado por
uma ingénua alma. Flagrante espelho desta, os
seus pequeninos olhos húmidos, dum verde atenuado
e translúcido, eram fontes de doçura, palpitavam
duma mobilidade inquieta, mantinham
ainda essa fácil emotividade que é o
apanágio
das crianças. Vibrava pronto, ao sensitivo rodeio
das impressões. Os seus lábios eram ungidos
de bondade, e tinha o gesto acanhado e
infantil das criaturas que menosprezam o mundo,
que evitam o convívio social e deliberadamente
se mantêem esquivas ao atrito deletério dos
homens e das coisas.―Assim entrevisto na
meia-tinta austera daquela casa mobilada parcamente,
êste doce e pequenino vélho aparecia
aos deliciados olhos do Silveira como uma encantadora
quimera, um absurdo, uma anómala
figura perdida... como algum anacrónico painel
já lambido da
patine
veneranda do passado.
Era o vivo e adorável
pendant dêsse outro
óleo
de franco e rude batalhador que êle agora descobria
sôbre a maciça secretária de roble,
tomando
a parede.
Então Jorge, que lhe surpreendeu o movimento,
adiantou-se a explicar:
―É meu bisavô, o criador desta
estancia.
―Um andaluz inteligente e trabalhador,―acudiu
o pai quáse ao mesmo tempo,―mas pobre
[229]
como Job, que veio p'r'aí assim sem um
centavo.
―Felizmente, vejo,―o Silveira julgou oportuno
observar,―aqui a fortuna sorriu-lhe.
―Ah, não há dúvida... e êle
bem o merecia,―acudiu
com desvanecimento o vélho. Depois,
espontâneo sempre e afável:―Mas enquanto
se não almoça, venha vendo a nossa
casa.―Abriu a pequena porta à direita, e, tendo
antes feito passar o Silveira:―Aqui tem...
este... a nossa biblioteca.
Um severo e discreto compartimento, recebendo
luz apenas do
hangar exterior e
totalmente
vestido em volta por uma alta cinta de
estantes de carvalho, em cujas prateleiras bambas
um milhar de sonolentos volumes se alinhava
gravemente. Do escasso trecho de parede
sôbre uma das portas pendia uma litografia
detestável
de Domingo Sarmiento. Sôbre a estirada
mesa de leitura havia desparramadas algumas
pequenas estantes de dobradiça e um
grande e aparatoso tinteiro, coroado por um
Napoleão de bronze com um termómetro no
tórax e um relógio no ventre.
Entretanto o bom vélho, complacente e palreiro:
―Não passa dum gabinete de leitura modesto,
uma tentativa, um esbôço, um ensaio,
como vê... Mas há aí de tudo um pouco:
filosofia,
literatura, jurisprudência, viagens. O agradável
e o útil. E as melhores
Revistas e alguns
livros portuguezes. De sorte que, já sabe, quando
[230]
esteja aborrecido de nós ou lhe apeteça
isolar-se,
é êste o cantinho que lhe convêm. Os
livros é
que nunca nos pregam
lata; a gente
larga-os sem
cerimónia, quando muito bem quere. E ainda são
os nossos melhores amigos.
Mas aqui Jorge interveio, e com vivacidade:
―Papá, lembra-te de que o nosso hóspede
há-de querer lavar-se, mudar de roupa...
―Ah, sim...
este...
perdão! Vamos então
levá-lo ao seu quarto. Fica-lhe aqui já, no
seguimento
para o interior. Aí à direita é o meu
arquivo.
Abriu outra porta, à esquerda, e entrou com
os dois amigos numa ampla peça, fresca e clara,
tendida de cassas e
cretonnes e
mobilada a pinho
de Flandres, com duas janelas abrindo para
o campo e, fronteira, uma porta sôbre o
patio
interior.
―Veja se lhe agrada.
―Oh, sr. Saavedra...
―Tem que se contentar, melhor não lhe podemos
oferecer. Mas, veja... comunicação directa
com a biblioteca, e ali a seguir,
toilette,
banho e mais serviço. Creio que aqui assim na
planta baja sempre fica mais em
liberdade e
mais cómodo. Mesmo nós no
piso
alto, que dispõe
de menos espaço, não temos senão os
quartos
da família. Quere dizer, há uma única
excepção:
os aposentos dessa endiabrada
Miquêtas... que,
a bem dizer, família é tambêm.―E
batendo com
as mãos em concha e sorrindo, na lisonjeira
evocação duma pessoa querida:―É o
benjamin
[231]
da casa. O que ela faz... o que aquilo diz, imagina
e inventa! Um vivo demónio!
E logo Jorge no mesmo admirativo tom para
o Silveira:
―É a prima Maria Mercedes. Não lhe dizia
eu?...
Pouco depois do meio-dia, a grande sineta
do pátio tangia para o almôço. Tendo
acabado
de ajustar a gravata e enfiar os anéis, e dada
uma última casquilha mirada ao espelho, o Silveira
abriu a porta do seu quarto e transpôs
compassadamente os geométricos canteiros, debruados
de buxo e salpicados de japoneiras,
aucubas,
pitcarnias, cravos, rosas e malmequeres,
seguindo diagonalmente em direcção ao
pôço, a
cortar caminho para atingir o comedor, que lhe
ficava no recanto em frente, a entestar com a cozinha.
Dentro estavam já Toríbio Saavedra e a
mulher, que recebeu o Silveira carinhosamente.―Era
uma grande senhora adiposa e obêsa, um
monolito ambulante, o crasso busto sumido na
montanha enxundiosa dos quadris, os braços
maciços e curtos, as mãos como palmoiras. Tinha
uns longos lábios froixos, a face pendente,
e o assetinado fulgor dos olhos castanhos perdia-se
afogado na papugem abundante das olheiras.
Tôda de negro, como o marido, com o volumoso
espaldão dos ombros resguardado por
uma capota ligeira de veludo. O seu ar era repousado
e lânguido como o das criaturas que
se sentem instaladas na vida cómodamente, sem
alternativas, angústias, apetites,
preocupações
[232]
nem ódios. O seu aspecto desprendido e plácido
apenas estava desmentido por um antitético
resíduo de vélhos e irredutíveis
coquetismos
no colar de grossas pérolas que em vão tentava
remoçar-lhe as pelhancosas estrias do pescoço,
bem como na origem, claramente industrial, do
loiro inalterável do cabelo.
Tomou ela a cabeceira da mesa, ao passo
que, cerimonioso e lento, o Silveira entendeu
dever manter-se a distância, apoiando maquinalmente
as mãos sôbre o espaldar da cadeira que
aí lhe correspondia, como no íntimo
desígnio de
quedar-se ali. Mas súbito, sorridente e num piedoso
alarme, a dona da casa:
―Ah, não, não meu caro sr.... aí
não! Êsse
é o logar da
Miquêtas. Conservamos-lho
sempre...
como se ela esteja. Queira tomar assento
aqui.
E indicou-lhe o logar de honra, à sua direita,
que o Silveira acudiu a ocupar, pressurosamente.
Entrou neste momento, do pátio, Célia,―uma
joven de aspecto bisonho e triste, o
busto dobrado, os olhos baixos, flácida, delgada,
ictérica. Vestia blusa branca e uma singela
saia de côr indecisa, e da mesma indecisa e
mortiça
côr tinha a epiderme, os olhos, os lábios e
o cabelo, lambido como um penteado de colegial
e repuxado à nuca. Quando lhe apresentaram
o Silveira, dobrou-se mais, baixando as pálpebras,
cortejou a distância, sem lhe estender a
mão e sentou-se logo à esquerda da mãe
diante dêle.
[233]
Entretanto pai Saavedra vinha tomar logar
ao lado do hóspede, e desdobrando o guardanapo
com ímpeto, alegre, menineiro:
―Vamos a isto, que são horas!
Uma criadita começou servindo carnes frias;
e para o Silveira, muito atenta, D. Teresa:
―Não lhe podemos aqui oferecer grandes
mimos culinários... tem que desculpar... porêm
um bom
puchero, isso sim! como
certamente
não come na cidade.
Imediatamente o vélho Saavedra lhe pedia
para avançar o copo, e vertia nêle com afectuosa
solenidade um vélho Jerez «como não
havia de encontrar muito». Só de casa tinha
quarenta anos. E de passo explanou-se falando
sôbre as apregoadas excelências e virtudes do
Madeira―que êle apenas conhecia vagamente...
um vinho de reputação mundial e ali na Argentina
quáse desconhecido.
―Ah, é um vinho precioso, divino!―exclamou
o Silveira com orgulho, dealbando os
olhos.―P'ra mim é superior ao Jerez... ao
mesmo Pôrto. É mais aromático, mais
gordo,
mais suave.
E prometeu presenteá-los com uma
porção
de garrafas, que ia já no primeiro correio pedir
a um seu amigo.
―E de doce não gosta?―tornou solícita e
voltando-se para êle, D. Teresa, entre duas garfadas.
―Bastante.
―Pois nesse particular é que poderemos
[234]
ser-lhe agradáveis. Em doces de cozinha especialmente...―E
com mimada ufania, apontando
a filha:―Aqui tem uma especialista.
―Não digas isso,
mamita!―gaguejou Célia
ariscamente, retraíndo-se e como querendo
anular-se sob a mesa.
Mas, sem dar tento de ouvi-la, sempre no
mesmo tom mimalheiro a mãe a insistir:
―Quando está de maré faz um
dulce de leche,
uns
huevos quimbos, como
não é possível
imaginar melhor.―E ante a modesta esquivança
da filha:―
Verdad!―Depois,
mirando-a amorávelmente:―Quem
te não fez freira!
Mas agora D. Toríbio, que não cessava
de, a curtos intervalos, olhar com impaciência
a porta em frente dêle, murmurou contrariado:
―Que haverá passado a êsse Jorge, que
não aparece?
Grande algarada entretanto no exterior. A
terra estremecia ligeiramente, como sacudida
pelas atenuadas vibrações dalgum terremoto
distante, e de envolta com a trémula
comoção
dêsse largo abalo, montava, crescia e espirulava
grossa pelo ar uma difusa e vaga ressonância,
que parecia feita de vozes humanas, saltos, roncos,
mugidos, tropeadas brutas de animais, e
choques bruscos de ferragens.
Poucos minutos depois, entrou finalmente
Jorge ao comedor, e vivo e cortês, enquanto se
sentava ao lado da irmã:
―Peço perdão se venho em atraso... Demorei-me
[235]
a ver passar essa
tropilla que se va al
rodeo. Não ouvem?...
―Ouvimos, ouvimos, sim...―contestou
D. Toríbio, já tranqùilo.―E
então?...
―Não sei... vi só de relance. Porêm
tenho
o ôlho bem experimentado... havia ali grandes
falhas.
―Estás sempre imaginando o pior.
―Muito roubada ia, papá... podes crêr! Por
exemplo, das nossas
vaquillonas
Shorthorn não
vi nem meia! E eu sei donde nos vem o dano...
―Bem, bem...―conciliadora a mãe rematou.―Senta-te
e come. Seja que não seja, não
é ocasião agora p'ra nos azedarmos com
retaliações
e suspeitas; estamos à mesa.
Terminada a frugal refeição, Jorge opinou
irem tomar o café ao ar livre. Breve vinham
buscar logar fóra, naquele aconchegado e
tranqùilo
recanto ao abrigo do ressalto da
azotea,
entre o pequeno pôço e a cozinha. Meia
dúzia
de cadeiras de vêrga de ferro, pintadas a verde,
rodeavam uma tôsca mesa de eucaliptus, em
volta da qual os cinco se sentaram indiferentemente.
O Silveira, porêm, para melhor poder
observar o recinto, postára-se de costas junto
à parede; e então pôde notar que,
à sua ilharga
e um pouco arredada, u,
entre o pequeno pôço e a cozinha. Meia
dúzia
de cadeiras de vêrga de ferro, pintadas a verde,
rodeavam uma tôsca mesa de eucaliptus, em
volta da qual os cinco se sentaram indiferentemente.
O Silveira, porêm, para melhor poder
observar o recinto, postára-se de costas junto
à parede; e então pôde notar que,
à sua ilharga
e um pouco arredada, uma outra cadeira havia,
porêm esta mais confortável, ampla e de aparatoso
espaldar com a cabeceira acolxoada, e
tendo mais, na protectora concha dos braços,
duas almofadas de setineta azul guarnecidas
com renda de bilros, molemente adormecidas.
[236] ―É a cadeira da nossa
Miquêtas...―murmurou
D. Teresa com meiguice―Todo aquele
preparo, veja... Chamamos-lhe a menina das
almofadas. É uma comodista!
Pairava um suave e acariciador ambiente,
uma lisa atmosfera de sonho, de calma e de
beatitude. Aquele quadradito horto, fechado por
espêssas e mudas paredes, matizado de flores
quietas e tristes, parecia a remota e nostálgica
evocação dalgum claustro, furtando o
espírito
à realidade, transportando-o a um outro mundo...
Nessa embaladora hora de sésta, a majestade
do silêncio amigo apenas era cortada
pelos vagos sussurros tilintantes que vinham da
cópa e da cozinha. E, oposta a esta, via agora
o Silveira a caixa da escada para o andar superior,
o qual, em cima, acanhadito e modesto se
desenhava, mas tomando apenas parte da casa,
pouco mais do que a frente. Rodeava-o a tôda
a volta uma garrida varanda, de grades de madeira,
em profusão festoada de arbustos, e vestida
e enredada de trepadeiras, por entre cuja
engalanada opulência as floritas maceradas da
balsamina, embebedando o ar, rompiam
abundantes,
e onde alegre e crepitante saltava a
mancha escarlate das
estrelas
federales, grandes
como girasóis, com os seus estames de oiro, e
as longas pétalas aveludadas e sangrantes como
tiras de púrpura.
Então com repousada familiaridade D. Teresa
aventurou:
―Que tal encontra o nosso refúgio?
[237] ―Delicioso, minha senhora. A mim parece-me
completo.
Mas logo Célia, com uma mansidão em certo
modo implicante, tomando a chávena da bandeja
que a serva lhe oferecia:
―Ah, isso é que não! Peço desculpa,
mas
não estou conforme. P'ra completo falta-lhe
alguma coisa.
―Vossa excelência dirá...
―Pois então não salta aos olhos? Esta
casa, tal como é, quero-lhe muito... é claro. Mas
nem por isso deixo de convir que ela não passa
duma acumulação semsabor de enojosas coisas
materiais. Nada que nos fale à alma, que nos
aqueça o coração, que nos eleve o
espírito...
Não há uma nota de ídeal, um qualquer
motivo
religioso... um painel, uma cruz, uma
capela.
―Onde vês tu por'í capelas ? - observou D.
Toríbio, sorrindo burlonamente.
―Ó papá! por tôda a parte... menos
aqui.
Não vês aí, a não mais de
oitenta quadras, na
colónia Esperanza? E na
estancia das Argerich,
e na das Moreno?... Dize antes que não
queres.
―Tem paciência, minha filha, mas eu sou
um grande cultor do passado: o que quero é
conservar íntegro e singelo, tal como recebi,
êsse nosso ninho. P'ra que deturpá-lo agora com
enxertos?
―Meu pai, que profanação!
―Profanação seria desfigurarmos com
excrescências
[238]
dispensáveis a amiga pureza
tradicional
de coisas com que fomos criados.
―E de muito mau gôsto,―sublinhou Jorge
com impertinência, traçando as pernas.
―Todavia teem-se farto de construir p'r'aí
assim tôdas essas bisarmas de
cabañas,
depósitos,
armazêns e celeiros.
―É lá ao largo, filha. E são coisas
precisas.
―A religião não o é menos,―acudiu
pronto
Célia; e como que logo arrependida dêste
súbito
ímpeto de vivacidade, suasiva e mansa reatou:―Pois
então, por exemplo, aqui ao fundo
e do lado de lá, formando esquina, uma simples
ermidita não ficava tam bem?
―Cortava o trânsito.
―Ainda ficava espaço bastante. Sr. Silveira,
que lhe parece?
Colhido de golpe por esta interrogação, que
era uma evidente demanda de auxílio, o Silveira
titubeou um instante; mas logo, afável e
galante, recobrando-se:
―Eu em assunto de tamanha transcendência
não sei, realmente... não queria atrever-me a
emitir opinião. Parece-me entretanto que se poderia...
sem nada quitar ao carácter desta adorável
construção...
―Como? como?...―fez Célia, muito interessada,
adiantando-se e abandonando a chávena
sôbre a mesa.
―Fazer um pouco como na Europa... lá
pelas nossas terras. O traço da
conciliação seria
talvez erigir por'í assim um retábulo em
[239]
azulejo, figurando a divindade de sua maior
devoção, e que saltasse, nada mais, da esquina
dum muro ou embutido na parede.
―É certo!
―E então com uma lampadasinha à frente,
tôda a noite acêsa, até teria um certo
cachet.
―Como compreendeu bem o meu pensamento!―exclamou
Célia, erguendo as mãos
em êxtase, enternecidamente, os olhos húmidos,
e a um e outro lado movendo-se com presteza,
alegre, triunfante:―Valeu, papá?...
Mamita,
ouviste?...―E batendo palmas:―Seria lindo!
Depois, vibrando ainda na exultante comoção
e notando a tímida bandada de avesitas que
manso e manso de roda dela vinham abatendo-se:
―Ai, que já me esquecia das minhas inocentes
amiguinhas! Dispensem-me, sim?
Atravessando o pátio, subiu num relance ao
primeiro andar; e daí a instantes esta apagada
e ascética figura reaparecia ao alto
momentâneamente
aquecida e chegando a parecer formosa,
no enquadramento rústico da varanda,
donde o seu braço amorável começou
espargindo
bagoadas de arroz e punhados de milho
sôbre a graciosa farândola de
chuños, viuvitas,
tarambolas, flamingos e pombas, que pedinchonas
e ávidas se abatiam sôbre o terreiro, patitando,
volitando, ruflando...
Havia que organizar o programa da tarde.
Mas de repente o céu encapotára e o vento
forte de oeste presagiava tormenta. Sinalou D.
[240]
Toríbio o fenómeno com desgôsto,
bordando
lástimas sôbre aquela tremenda instabilidade do
clima regional, em que não havia nunca que
ter confiança, «nem mesmo no outono, a melhor
quadra do ano». Assim, embora Jorge tivesse
até já mandado aparelhar dois cavalos
para uma saltada ao campo, foi julgado como
de mais prudente aviso não saírem e entreter o
resto do dia num exame mais detido à
estancia.
Tomados os chapéus, e tendo pedido vénia
às senhoras, D. Toríbio e os dois jovens
encaminharam-se
então à suave atracção do
campo,
tomando aquela aberta posterior do pátio e
dando o flanco à cozinha. E logo aí havia a
notar, entestando com esta diagonalmente, uma
espécie de longo e raso aqueduto, em tijolo,
que disparava depois rectilíneo e rasteiro pela
lisa planura sem termo, até ir mergulhar e perder-se
por fim num fechado penacho de eucaliptus,
longe, muito longe, já no esfumaçamento
vago da distância.―Era o encanamento que
trazia a água para toda a sorte de usos
domésticos.
O vélho pôço do pátio para
pouco mais
servia do que para regas... estava condenado.
Depois a seguir prolongava-se paralelamente,
a um e outro lado, uma dupla fita de leves, sàdias,
frescas e arrogantes construções, dando
a nota actual, porêm mantidas tôdas, no mesmo
enfiamento das paredes da casa primitiva. Eram
a carapaça industrial da
estancia, o seu fecundo
traço de união com o utilitário credo
do presente,
os maravilhosos instrumentos, ali, desta
[241]
subjugante caudal de energias duma nova raça,
que são o segrêdo do portentoso milagre da
prosperidade argentina. Era o hino fulvo da
riqueza, o
allegreto vivace da
abundância. À
esquerda, sorriam os rubros tôldos e as alvenarias
deslumbrantes das cavalariças, estábulos
e curralões para gado, erguiam-se as afusadas
torricellas e mirantes da
fábrica de lacticínios,
das várias
cabañas,
tambos e celeiros. Vinham
de dentro perfumadas, tépidas
emanações de
feno e de amôjo, um genésico alento, um ar
criador, um bafo gordo e tenro acusando o
protéico germinar da vida. Quando os três
passavam,
do brunido tejadilho dum
haras
surdiu
e avançou para êles, coquetona, mimalheira,
familiar,
uma linda e enxuta cabeça de cavalo
castanho. Jorge acudiu desvanecido:
―É o meu rico
Emir... um
autêntico meio-sangue,
um corredor de primeira. Que dizes,
mi
valiente?
E do lindo animal acariciou o focinho brincalhão,
vibrátil, em curtas pancaditas, suavemente.
Passando ao lado fronteiro, aí as
instalações
novas, nas suas apagadas côres, na sua arquitectura
sumária e rude, tinham o que quere que
fôsse de mais poderoso e mais severo. Singelos
e amplos armazêns, por vezes simples
hangars
cobertos de zinco e telha de Marselha, eram
contudo o centro propulsor, a potente fonte dinâmica
de tôda aquela parada enorme de trabalho.
Ali se alinhavam por dezenas as carretas de
[242]
mão, os grandes
camions,
as zôrras e as locomotoras,
brunidas, scintilantes; depois havia os
grandes aparelhos geradores da energia eléctrica,
duas máquinas
desgranadoras para descascar
o milho, uma
esquiladora para a
tosquia de lãs,
três
trilladoras para
apartar o trigo, a luzerna e
o linho; e, a seguir, os intermináveis depósitos
dos produtos habituais do país,―o milho em
pirâmides colossais, o trigo empilhado em sacos,
a luzerna e o linho acamados sôbre a lisa sucessão
dos mostradores, esperando a secagem definitiva.―O
vélho Saavedra, passando orgulhoso
em revista êste formidável organismo industrial,
parecia remoçado, ia acumulando detalhes, multiplicava
as instruções, fazia pôr a seu tempo
cada peça em movimento; extasiava-se e como
que se identificava com tôda aquela batida vibrante
de luz e de ruídos, com o engrenar suave
das rodagens, a galopada arfante dos metais, o
alucinado sôpro das turbinas. E então, fatigado a
espaços mas não vencido, parava e encolhia os
ombros, sorridente:
―Isto já não são coisas pr'a mim...
Mas,
que remédio! se êste meu filho de nada quere
saber...
―Eu nunca, papá, poderia substituir-te
capazmente,―advertiu
Jorge, num parêntesis hipócrita
de modéstia.
Mas logo o pai com carinhoso desdêm:
―Vós, os rapazes de hoje, não valeis nada!
Porêm a atenção do Silveira fatigava-se
e ao
seu carácter volteiro e indócil êste
rígido e automático
[243]
aparato industrial interessava-o mediocremente.
Às 5 horas, outra vez no mesmo aconchegado
recanto do pátio, reùniam-se a tomar
mate.
Desta vez, por uma atenção especial para com
o novo hóspede, a tradicional bebida foi servida,
não na lisa concha habitual, porêm numa antiga
cabacita de prata, vélha não mais de cincoenta
anos, modesta data que entretanto, perante
o ingénuo critério dêste
país nascente,
assumia fóros dum raro valor arqueológico. Foi
a preciosa peça trazida da
étagère
envidraçada
do salão, onde em religioso recato era conservada
com outros mimos mais e saùdosas relíquias
de família. Era duma cinzeladura rudimentar.
O seu redondito bôjo assentava sôbre um
tripé
de cabeças de grifos estilizadas, e ostentava no
anverso, emergindo triunfal dum entrelaçamento
gordo de folhagens, o suave escudo argentino.―Depois
de cuidadosamente escaldada, D. Tereza
verteu-lhe pelo afunilado gargalo a rica infusão
do
mate a ferver, introduziu-lhe uma
cânula
tambêm de prata com o fundo em crivo,―a
clássica
bombilla,―e
logo de oferecer obsequiosamente
o inédito aparelho ao Silveira, que,
na sua titubeante inexperiência de
sucção da
bombilla, queimou a
língua, apressando-se a
passar o bárbaro instrumento à dona da casa. Os
circunstantes sorriram ao observar o cómico
efeito, por demais esperado, da desastrada
iniciação
do recêm-vindo. Mas logo se repuseram.
E agora a preciosa tacita foi passando de mão
[244]
em mão, e lábios após
lábios foram sucessivamente
abocando sem escrúpulo o mesmo tubo
aspirador como quem se desobriga dum rito sagrado,
num recolhimento quáse solene, num
inalterável silêncio, de longe e apenas vagamente
cortado pelo mugido das vacas e o balar dos
cordeiritos que vinham dos curralões distantes.
A seguir, por uma natural expansão neste
ambiente de pacificação cordeal que a familiar
cerimónia desdobrára, a bisarmal D. Teresa deu
conta do seu piedoso giro de manhã. E naquele
bondadoso ar habitual, repousado e manso, convictamente
impôs ao marido:
―Já outro dia to disse, tem paciência... mas
há que perdoar a renda a êsse pobre Juan
Valério.
Que desgraçada gente! Se tu visses...
―Mais outro?―balbuciou o vélho Saavedra
com fastio.
―Êle está com um antraz, tolhido,
roído de
febre... bem sabes.
―Então não lho queimaram?―atalhou Jorge,
numa ligeira impaciência.
―Sim, porêm já tarde, infelizmente! Parece
que não escapa. Que vai a pobre da mulher
fazer?
―Tem os filhos.
―Que filhos? Não blasfémes. O mais
vélho,
depois daquele desastre na via-férrea, ficou
sem uma perna. E nem um centavo lhe deram
de indemnização. A filha desarvorou com
uno
tal por cual... O mais moço foi de
conscrito.
―Há-de voltar.
[245] ―E enquanto não volta?―acudiu Célia com
carinho.
Seguiu-se uma breve pausa de embaraço. D.
Toríbio, agora silencioso, bamboava o busto hesitante,
e os seus pequeninos olhos verdes adoçavam,
molhavam-se de ternura. Por fim, com
maligno sarcasmo, Jorge:
―Bem, bem,
mamita...
perdôa-me que te
diga... mas o certo é que estamos aqui à
mercê
da ganância de todo o
gaucho
vividor. Por êste
andar, daqui a pouco seremos nós que teremos
que pedir por esmola aos nossos colonos que
nos dêem algo com que viver!
E levantou-se sacudidamente.
Um novo silêncio se abriu, arreliativo, apremiante,
o qual Jorge aproveitou para senhorear-se
do Silveira e levá-lo consigo, atravessando
pronto o pátio e logo alcançando a desafogada
galeria da entrada, onde êle se atirou
aborrecido para uma cadeira de
hamaca e acendeu
um cigarro. Das nuvens grisáceas e rasteiras
caíam os primeiros salpicos de água, e o
joven Saavedra lamentou que o tempo os
embromase
por aquela forma, impedindo-os de
sair, logo no dia da chegada. Lamentou-se igualmente
da insuportável monotonia e da extensão
sem termo, ali, das noites. Bocejou e alongou
preguiceiramente os braços, numa mole distensão
de tédio. Mas logo, insinuante, gaiato, aprumando-se
e assentando familiar a palma da mão
sôbre a coxa do amigo:―Que não lhe
désse
cuidado! êle sabia bem como e aonde amenizar
[246]
um pouco a coisa... Os vélhos recolhiam cedo,
ficavam os dois em liberdade; e então nada os
impedia de irem por'í onde melhor quadrasse...
Tambêm havia meio de
farrear pelo campo,
correndo essa
chinería em
roda.―E, como antecipado
aperitivo, já o inflamado mocetão deblaterava
e fazia correr a visão de vários
episódios
patuscos, ante o ôlho lúbrico do amigo.
À noite, sôbre o jantar, passou o pequeno
grupo ao salão de
recibo,―o primeiro compartimento
à esquerda do vestíbulo, na frente da
casa.―Uma arcaica mobília estofada, envôlta
em protectoras lonas; fogão de aparatoso friso
em escaiola, simulando mármore, com relógio e
castiçaes de prata; fronteiro, sôbre o
sofá, um
grande espelho com a moldura ratada; quadritos
a missanga pelas paredes, e, sôbre dois singelos
tremós doirados, vasos barôcos de antiga
porcelana, com flores de cera sob redomas de
vidro.―Logo de entrada o vélho Saavedra, correndo
a um armário e com os olhitos codiciosos,
invitou para uma partida de xadrez o
Silveira, que declinou com mal dissimulado
horror a iminente estopada. Entretanto, D.
Teresa vinha abater-se em pêso sôbre o queixoso
sofá, que se enrugou, gemendo; e chamava
para o
fauteuil ao lado o
hóspede, a interrogá-lo
sôbre coisas de Portugal. Da mesma
forma, Célia, jucundamente posto agora de
parte o seu aspecto bisonho e arisco, tomada
de súbita e grata simpatia por êste galhardo
advogado, ao almôço, do seu desejo, interpelava-o
[247]
com piedoso interêsse sôbre os lindos templos
que lá devia haver, na sua terra... e
preciosíssimas
alfaias religiosas, relíquias autênticas,
oiros, pratas, pedrarias, magníficos tesouros.―Desvanecido
e importante, o Silveira fazia
acenos aprovativos de cabeça: falou na custódia
dos Jerónimos, nos retábulos da Madre de
Deus, nos paramentos de Mafra, nas riquezas
de S. Roque. E íntimamente maravilhava-se daquela
sua esporádica explosão de patriótica
sciência.
Por seu turno então D. Toríbio,
espontâneo,
afável, acudindo gostoso à deixa:
―Ah, não há dúvida, Lisboa
é uma linda
cidade, e é um admirável povo, o
português!
O Silveira soergueu-se e dobrou-se numa
lambida mesura. E o bravo pai Saavedra, confirmando:
―É certo! Os senhores, sonhadores e plácidos
como são, teem um grande espírito de
iniciativa. Eu sou insuspeito.
Este... Veja o
meu amigo... Eu descendo de espanhóis, tenho
algo dêsse sangue impetuoso e ardente da terra
que é o símbolo vivo da bravura, o
berço esplendente
da alegria, da arte e da beleza. Sou
um admirador incondicional e formo ainda um
rebento distante dessa formidável, cavalheiresca
e valente Espanha, pátria do amor, filha do
sol, senhora do mar,
nodriza de
mundos! Contudo
sou o primeiro a reconhecer, e tenho o
maior prazer em dar disso público testemunho,
que o progresso social da nação lusitana leva
[248]
bem um século de dianteira ao dos outros povos
ibéricos.
―Demasiada amabilidade...
―Quere ver?... Max Nordau tem razão...
Ainda durante dois séculos o
muezzin havia
de continuar a evocar os crentes maometanos
em Sevilha, em Granada, em Córdoba, quando
já o vosso Afonso III
repelira dos Algarves o
último rei moiro. Meio século antes que Colombo,
de país para país correndo, como um
mendigo, obtivesse dos reis católicos as caravelas
com que veio descobrir a América, já o
Infante D. Henrique descobrira as costas de
África té muito alêm do Equador. Muito
antes
que Carlos V levasse
a bandeira
espanhola para
alêm do Mediterrâneo, Portugal conquistava
Ceuta. Pombal expulsou de Portugal os jesuítas,
quando ainda em Espanha luziriam sinistras
por muito tempo as fogueiras dos
autos
de fé. Portugal foi dos primeiros
países a repudiar
a pena de morte, a abolir a escravatura;
e últimamente, renegando os vélhos dogmas
centralistas de tôda essa Europa rígida e feudal,
adiantou-se a formar com a Suíça e a
França
uma valente trilogia democrática. Não
é tudo
isto verdade?... Aqui tem, meu caro amigo...
este... porque eu tanto os aprecio e
admiro!
Não foi muito do agrado do Silveira êste
fecho revolucionário da apologética parlenda;
contudo, como réplica obrigada, espraiou-se êle
então em lisongeiros encarecimentos bordados
sôbre a formidável exuberância e o
vertiginoso
[249]
progresso «da admirável
nação argentina». Entretanto,
êsse bom
calavera de Jorge
aproveitára
o giro erudito da palestra para escapulir-se.
E aí estava agora Célia de novo a contas com
o pai, litigiando a favor da sua litúrgica birra.―Que
tinha um nome demasiado profano a
estancia. Era até um
repto de orgulho feito ao
céu. Forçoso baptizá-la.―O pai
torcia-se contrariado,
desfiava perante a piedosa querença
da filha todo um rosário de ponderosas
objecções,
mastigava, opunha-se.
―Não, filha, que idéa! Bem vês,
não pode
ser. Sabes que
êste
grande
nome,
Amália, justamente
consagrado aqui como em tôda a
rèpública,
não é o caso dum nome banal, não
é
uma designação anodina, arbitrária,
familiar,
pueril, não! Tem a sua santidade tambêm...
é
um símbolo de dedicação e
heroísmo, evoca
uma das páginas mais impressionantes da nossa
história.
Porêm já mãe e filha, sem darem maior
tento à resistência formalista do bom
vélho,
com cuja doce aquiescência, contavam, afinal,
tudo era discutirem agora e esmiuçarem meticulosamente
qual dos cerúleos habitantes deveria
como futuro patrono da
estancia
merecer-lhes
a preferência. E tinham dúvidas,
hesitações,
receios.―Talvez a adorável
Virgen del
Pilar,
duma lenda tam popular e tam poética... Contudo,
a
Virgen del Carmen tinha mais
tradição
crioula. Ou então seria melhor
San
Lorenzo,
protector das bôas colheitas. E porque não
[250]
Santa Bárbara, advogada
contra as tormentas?
Ao que, trocista e afável, o bom vélho Saavedra:
―
Este... já agora, p'ra
que ninguêm lá no
céu fique descontente, chamem-lhe―
De todos
los Santos.
Por fim, a cortar cérce a dificuldade, os três
foram
unânimes em convir que a
Miquêtas decidiria.
E sôbre êste ditame conciliador a patriarcal
tertulia fechou, por aquela noite.
D. Teresa ergueu-se
pesadamente, com austera gravidade
obtemperando―que já eram as dez passadas...
havia que despertar cedo, ali: ela para os seus
pobres, o marido para a
peonada do
campo.―Depois,
já fóra, no vestíbulo, e como
última
das solícitas indicações com que a
bondadosa
senhora despediu o Silveira, aconselhou com carinho―que,
em suma, a estação já ia
avançada...
mas em todo o caso, pelo sim, pelo não,
que não se esquecesse de cerrar o mosquiteiro.
Neste acolhedor ambiente de límpida cordealidade
e benéfico repouso foram decorrendo
para o Silveira deliciosamente os dias. Ali êle
encontrava uma íntima e perfeita conformidade
entre a amiga efusão das almas e o afago
tranqùilo
das coisas. Embalavam-no na mesma onda
de beatitude e carinho, o sorriso afável das figuras
e a placidez infinita da paìsagem,―aqui
[251]
tam diversa das fragoeiras e montanhosas agruras
dos cêrros da sua terra. Tinha uma vida leve,
encantadora, fácil, vida de confiança e olvido. E
todo êste suave meio, abundante em agrados e
repassado de inédito, trazia ao seu ser moral e
físico um salutar estímulo.
Assim, logo em cada antemanhã, aí estava
êle a cavalo e partia, de ordinário com Jorge,
ou com o
mayordomo, a surpreender na
sua
complexidade pitoresca, na sua poesia sádia e
rústica, a labuta áspera do campo. Pelas
manhãs
limpas e claras, ainda mal o oriente aquecia
da carícia auroral do sol, e já êle
seguia com
algum
capataz a verificar o estado
dos
alambrados,
a revizar e contar o gado. Assistia ao apartar
das rêses, aprendia a ferrar, a castrar, a
carnear,
a
investir, a atirar o
laço. Muita vez então
êle estacava, e, com mal contida inveja, quedava-se
em admirativa contemplação perante a
nobre silhueta dalgum
paisano
montado que
passava arrogante e viril a aprumar-se e a
crescer na lisura uniforme da planície. Encontrava
realmente belas, impressivas, soberbas de
linha, de ímpeto e de carácter, cada uma destas
rudes e íntegras figuras, curtidas pelo ar, tisnadas
pelo sol,―mescla de oiro e bronze, e como
o mesmo bronze duras e indobráveis,―envaginadas
toscamente na sua singela blusa e na
bombacha ou enfiando o
poncho; ao pescoço,
com um nó à frente, o indispensável
lenço enrolado;
protectoramente a cabeça envôlta nas
grandes abas do clássico
chambergo; do cinturão,
[252]
sôbre os rins, o inseparável
cuchillo colgado,
e o laço e as
boleadoras
na garupa; as
retêsas botas coladas e firmes sôbre os aparatosos
estribos, de tábua ou de coiro, profusamente
rendados de guarnições de prata. E
então,
naturalmente, ao vêl-lo assim contemplativo e
atento, Jorge orgulhava-se e compartia daquela
admiração complacente do amigo. Logo,
comprazia-se na exaltada apologia dêsses centauros
errantes da planura, completava-lhes a
fisionomia moral, enaltecia a sua bravura, a
sua generosidade, a sua altivez, o seu desprendimento,
o seu desprêzo estóico pelo dinheiro,
a sua resignada submissão ao destino. Galopando
eram um turbilhão, parados eram estátuas.
E acumulava pormenores, desfiava anecdotas.―Jàmais
consentem
que les pisen el poncho.
Eram de sua natureza altercadores e brigões,
cultivando apaixonadamente, como um
sport,
tôdas as várias formas da luta, porêm
nunca a
sua lisa alma abrigava o rancor e poucos baixavam
ao crime. Cada um dêstes bravos senhores
do deserto poderá dar um herói, raro um
facínora.
Uma vez vencedor desinteressa-se pronto
do vencido, que desdenhoso se limita, quando
muito, a marcar com o estigma cortante dalgum
tajo en el rostro, um simples
barbijo.
Mas, breve, com o glorioso avançar do dia
apertava o calor, e então quáse certo era irem
os dois amigos demandar por um instante o
confortável refúgio de algum dêsses
humildes
ranchos dos colonos
agrícolas, sumaríssimas
[253]
construções de palha e barro, tímidas
e míseras
palhoças que abrigavam sob o teto, raso e intonso,
uma vida tam elementar como as suas
paredes eram primitivas. Ausência quáse total
de mobília, reduzida a alguns polidos cránios
de vaca servindo de assento, e a raros catres ou
esteiras sôltas sôbre a terra nua. A
alimentação
parca e simples, por igual: carne, pão,
mate,
açúcar, e mais um pouco de arroz nos dias de
festa. Um campo rudimentar de acção e um reduzido
vôo de desejos. O miudito espaço fechado
por estas ingénuas tócas à flor da
terra,
parecia entretanto naqueles depressivos momentos,
ao quebrantado ânimo dos dois jovens,
um delicioso rincão do Paraíso. No que ia
tambêm
um pouco de sugestivo encómio feito convictamente
pelo colono ao próprio ninho.
―Passa-se aqui melhor que na cidade, senhores...
O
rancho é fresco no
verão e quente
no inverno.
Na Argentina corre geralmente despreciada
e ignorada a obra, sôbre tôdas fecunda, do colono,
do emigrante, mercê do anonimato iníquo
a que a relega ainda a persistência tenaz
da tradição romântica do
gaucho. E contudo,
aqui, as flutuações na
produção da terra dependem
essencialmente e são inseparáveis das
vicissitudes
da vida do colono estrangeiro, progressivamente
vinculado pelo mortificado plasma do
próprio suor
à mesma terra. E é em
primeiro
termo à beneficiosa influência e ao pastoso
esfôrço
dessas protéicas aluviões humanas que
[254]
êste privilegiado torrão, de flancos sangrantes,
deve a maravilha da sua abundância e o milagre
da sua riqueza.
Pela tarde, depois de uma breve sésta, novo
giro. E, nesta vagabundagem de acaso dos
dois amigos, vinham a ser estases de obrigado
repouso as várias
pulperias (casas de venda)
com que êles deparavam no caminho, umas rodeadas
de meia dúzia de casotas mais, outras
singelas e sós aflorando tímidamente, como
incrustadas
na monotonia imensa da paìsagem.
A
pulperia participa
simultâneamente do carácter
de taberna, centro de reùnião,
estação postal
e loja de comércio,―um comércio sem
especialização
e sem limite, extravagante e imundo
bric-à-brac de objectos
para todos os usos, de
utensílios para tôdas as necessidades, de produtos
de todos os países, de farrapos de tôdas
as épocas. Na primeira casa dêste
género em
que o Silveira entrou, surpreendeu-o a confusa
variedade, a atropelada profusão e o baralhamento
infinito das coisas disparatadas e antitéticas
que dêste caótico mostruário formavam
o recheio. A um canto, ao lado do mostrador e
tomando tôda a parede, havia um desordenado
empilhamento de atributos hípicos,―cabeçadas,
rédeas, freios, selins, açoites,―crestados
já uns pelo uso, novinhos em fôlha os outros.
Ao lado oposto, era uma bárbara
inundação de
ferragens de tôda a sorte, de cilindros e novelos
de fio de ferro, de fusis e petrechos de caça,
ferraduras, martelos, cravos, navalhas, facalhões,
[255]
tesouras, tudo isto alternado com prateleiras
cheias de produtos de drogaria e especialidades
farmacêuticas. Ou eram fieiras de lâmpadas
de petróleo suspensas sôbre sacos de milho,
feijão e arroz; ou ainda, um pouco alêm,
os mais tôrpes especimens de calçado
vélho pendurados
à mistura com résteas de alhos e
mólhos
de cebolas; ou a tentadora bateria de cervejas,
do
brandy, do
whisky, dos licores, nos
seus frascos rutilantes; ou, emfim, as cabacitas
de
mate e as peças de
algodão de côres berrantes,
infalível engôdo às
predilecções louçãs das
raparigas.
Abancavam os dois amigos a alguma das
mesas livres e pediam cerveja, flanqueados de
cêrca por outras mesas, de roda das quais
pacíficos
grupos, de gente rude e simples, bebiam
cana, jogavam as cartas ou
concertavam transacções
comerciais, dilatadamente. De quando
em quando, algum novo freguês entrava, saùdava
com gravidade, despedia um vago olhar
em tôrno, depois ia sentar-se e ficava-se indefinidamente
silencioso, esquecido, quáse imóvel,
enrolando o cigarro, antes que exteriorizasse a
sua intenção ou manifestasse o seu desejo. Porque
o
gaucho nunca tem pressa. Habituado
como êle anda a medir o tempo segundo a
declinação
do sol, assim perante o seu modo desprendido
e calmo de encarar a vida, uma hora
a mais ou a menos não conta uma apreciável
diferença. A
pulperia
é, para êste dominador
lendário da
pampa
argentina, mais que um vicioso
[256]
centro de atracção: é um
inviolável asilo
de meditação e de repouso. Casa-se
íntimamente
com a sua inata altivez, com a sua natureza
indolente e agreste, a soberana e apartada
independência, o calmo e tépido ambiente
dêstes
baratos
oasis industriais, onde
êle em pleno
olvido dormita e sonha, enquanto, fóra, por essa
extensão sem fim, dardeja fogo o gládio em
brasa do sol ou fustiga o ar a asa revôlta da
tormenta.
Por vezes havia na taberna um guitarrista;
e então os preguiceiros
gauchos desentorpeciam,
chalravam mais alto e bebiam mais forte,
estimulados pelo zangarreio mole e sensual dos
tristes,
vidalitas e outras corridas
árias crioulas.
E tambêm, a espaços, uma que outra vaca ou
bezerro, metendo a cabeça, vinham mugir familiarmente
à porta; enquanto os gafanhotos e as
borboletas a cada momento entram e sáem volitando,
zombeteiros e livres, num como que
desdêm trocista por êsse mesquinho produto da
indústria humana que se permitira a ousadia de
vir ali ridículamente enxertar-se na majestade
soberana do deserto.
Porêm para o feitio mulherengo e ribaldo
do Silveira, as mais saboridas horas nesta folgada
digressão campestre, eram sem dúvida as
noites. Inalterávelmente Jorge, com o seu faro
infalível de vélho garanhão regional e
fiel às
baixas solicitações do seu instinto, conduzia
então
o amigo às estações galantes da
redondeza,
a essas abscônditas e errantes
pulperias do amor,
[257]
asquerosas e imundas
madrigueras,
cheias de
mugre, o ar afrontoso e envenenado, crasso de
emanações carnais, nublado de fumo de tabaco,
onde sôstros e descompostos grupos de chinas
da ínfima espécie se deslocavam nas
lúbricas
contorsões de algum acanalhado
tango
arrabalero,
e no mais tôrpe delírio de gestos e visagens
porfiavam em inflamar o apetite mórbido
dos visitantes, desmanchadas em bailuchos desonestos,
abertas em risos que davam tristeza,
dobradas em carícias que infundiam asco, sôltas
em requebros que faziam mêdo. O Silveira não
descia a misturar-se na agitação insalubre do
torvelinho; porêm mentalmente embebedava-se
na contemplação desta dionisíaca
paródia, comprazia-se
no exame de tam ignóbil espectáculo.
A exsudante coreia animal enardecia-o. Ao
passo que o seu amigo Jorge, menos isento e
mais frascário, por vezes se emborrachava a
perder, apostado no clássico
tomo y
obligo e
confundido com a ronda esborifada e bestial do
mulherio.
Por fim, andados uns dias mais, o Silveira,
reputando-se um esperto conhecedor já da região,
emancipou-se. Agradava-lhe agora de
preferência, uma ou outra vez, sair êle
só e
aventurar-se em soltos rumbos pelos dilatados
panoramas da redondeza. As fragoeiras qualidades
do seu génio requeriam esta expansão
[258]
libérrima. O aguilhão vago da incerteza era um
estímulo mais a acicatar-lhe o vivo apetite do
inédito, neste seu investimento solitário do
Desconhecido.―Assim
aconteceu que, uma tarde,
depois de haver gozado algumas horas andando
às inculcas, sòzinho e à
tôa, pelos campos,
quando pensou em regressar à
estancia, pela
primeira vez hesitou na direcção a seguir e
começou
a dar-se conta, com arreliador desagrado,
de que pisava um país ignorado, alheio,
hostil... compreendeu que se havia perdido. A
sua ilusória presunção de
infalível batedor do
campo atraiçoára-o. Não sabia onde
estava. Debalde
interrogava e buscava ansioso profundar
o mudo enigma do espaço. Na inquieta demanda
do rumo perdido, ensaiava ao acaso veredas
e trilhos novos ou fazia longas e fatigantes caminhadas,
que, como num circuìto infernal, o
traziam invariávelmente ao mesmo ponto de
partida. Já a noite vinha próxima e os pontos
de referência conhecidos falhavam-lhe. Olhava
ao largo e respondia-lhe o desdêm burlão da
imensidade. O mesmo dócil animal que êle
montava, parecia tomado tambêm,―caso raro,―duma
indecisão, duma ignorância, dum receio
igual, e a cada momento estacava, fitando
as orelhas, e num interrogativo ruflar, nervoso
e álerte, alongava as narinas fumegantes.―E
não aparecia viv'alma!―Teriam que ficar p'r'aí
assim, Deus sabe como, aonde e por quanto
tempo... Nem um ente vivo que os encaminhasse!
não apontava um sinal, não alvejava
[259]
uma casa. Não surdia por acaso algum dêsses
vélhos e graves
rastreadores que,―êle
ouvia
contar,―seria capaz de metê-lo a direito, descobrindo
e estremando-lhe o decalque do passo
da montada no piso batido e poeirento da planura.
Nem tampouco se fazia o milagre de êle
encontrar um dêsses subtís
baquianos, inverosímeis
topógrafos, que sabem o curso de todos
os mananciais, conhecem os vaus de tôdas as
ribeiras e são peritos em discernir, um por um,
entre milhares de caminhos...
Então, na sua insistente e miúda
inquirição
do ambiente, o Silveira notou súbito, e ali bem
perto, uma sébe de arbustos bravos para lá da
qual havia seguramente alguêm. Sim, porque,
não obstante a calma paradisíaca do ar, as suas
fôlhas tinham róces metálicos, e os
ramos abanavam,
estalidavam, dobravam-se e erguiam-se
em choques rumorejantes. Dirigiu para ali o
cavalo e breve distinguiu através da folhagem
as indecisas linhas dum grupo: duas figuras,
mas evidentemente em briga, porque, ao seu
impulso, a trama verde da precária
vedação
tinha deslocações violentas, crispava-se em
bruscos
sacudimentos, e de envolta com a sua arrepelada
flutuação vinha o resfolegar opressivo e
anelante de pessoas que lutam ardidamente...
Curioso, o Silveira apeou-se de golpe e deu
volta. E viu que um sujo e intonso labroste estrangulava
nos braços brutais o corpito espavorido
e vibrátil duma joven aldeã, que se debatia
exasperadamente, e que aquele animal
[260]
queria à viva fôrça sujeitar ao cevo do
seu desejo.
O coração do Silveira teve uma
retracção de
generosa angústia, um lume vingador lhe passou
diante dos olhos e atirou-se, de salto, contra
o cobardíssimo sátiro, aplicando-lhe bruscamente
um formidável murro contra a nuca, e
logo, cingido cerce com êle, afogando-lhe o
pescoço com as mãos tirantes, duras,
implacáveis
como duas tenalhas de aço. Subjugado
pela inopinada e valente agressão, o imundo
labrego não teve mais remédio senão
deslaçar
os braços, largando a presa; e queria voltar-se e
defrontar duramente o adversário; porêm antes,
cedendo ao garrote aniquilador da asfixia, cambaleou
e tombou desfalecido na mesma terra
revôlta pela sua bestial investida. Dominador e
soberbo, com o revólver pronto assestado, o
Silveira ameaçou:
―Se te mexes, cão! faço-te saltar os miolos.
O contricto matulão, estendido e inerte,
esboçou um esgar implorativo, sem palavra
ferir, erguendo os braços suplicantes.
Aproveitou o Silveira êste favorável instante
para lançar um olhar de piedoso interêsse
sôbre
essa ignorada flor da selva que êle providencialmente
acabava de salvar, a sua pequena desconhecida.
E logo o vencido rústico, surpreendendo
a momentânea distracção, saltava
lésto
em pé e pronto a arremeter como um toiro,
lívido de raiva, com uns olhos de morte, contra
o seu garboso rival, brandindo o traiçoeiro
[261]
cuchillo no braço
homicida. Porêm acudiu a
tempo, de sua banda, a rapariga, alcançando-o
animosa pela espalda e pendurando-se-lhe do
braço em pêso, a segurar-lhe o pulso. Foi um
momento, o bastante para o Silveira, de revólver
sempre assestado, retomar o seu ascendente
e obrigar o meliante a largar o ferro. E vá de
zurzi-lo depois com o chicote desapiedadamente,
cobrindo-o de impropérios, fazendo-o rodopiar
sôbre os rins, arregoando-lhe a face, varejando-lhe
os quadrís, e cortando-lhe os joelhos. E
o confuso marmanjo, outra vez de braços ao
alto, não fazia agora mais que recuar, recuar
passivamente... té desaparecer por fim na sombra,
derreado, aturdido, cego e vagamente ameaçador,
rugindo.
Podia agora enfim o Silveira contemplar
mais em sossêgo a curiosa figurinha que tinha
ali assim a seu lado, retraída e tímida,
tôda
tremulante e magoada ainda da repelente luta
de há pouco. A estúpida scena fôra tam
breve
que a êle nem déra mais tempo que para fixar-se
bem nos gestos e atitudes do seu caviloso contendor.
Da indefêsa vítima dêste não
chegára
a lograr formar-se uma noção definida e clara.
Agora, sim... Era uma linda e adorável
morenucha,
pouco mais de nubil, delgadita e enxuta,
dum moreno de bom tom, um moreno atenuado
e lânguido, apenas mais vigorosamente mordido
na macieza tostada da nuca, no nankin macerado
das olheiras. Calçava uma espécie de
tôscas alpercatas brancas e grosseiras meias
[262]
negras, de lã; sôbre a saia, muito curta, negra
e rústica por igual, e em cujos tupidos refêgos
a estreiteza anadioménica dos quadrís se perdia
inteiramente, abatia-se a fímbria sôlta duma
blusa clara, de riscado; e pela colina apolínea
dos ombros, firmes e redondos, uma floresta de
fartos cabelos negros, naturalmente ondeados,
desparramava-se em desalinho. O fresco e apetitoso
dasabrochar duma esplêndida flor do
campo. Tinha uma expressão singular, entre
menineira e selvática, uma como frescura moral
de clara fonte. A mais pura linha de contôrno
ovalava o seu rosto cheio e singelo, côr
de trigo maduro, animado por uma bôca que
era um alçapão de desejos, aquecido por uns
deliciosos olhos negros, cheios de fogo, olhos
que se não fossem tam puros seriam a
perdição
da sua alma. E a cálida veemência do temperamento,
as demasias do sentir latente, a flama
espirrante da sua vida interior, denunciava-as
bem a tinta mate da epiderme,―essa côr
hepatizada e ardente das loucas depositárias da
paixão.
Com paternal carinho o Silveira, adiantando-se,
preguntou-lhe―como tinha sido aquilo?
que se havia passado?―E ela, cândidamente,
com um pêso de vergonhoso embaraço a velar-lhe
as palavras e a abater-lhe as pálpebras:
―
Yo andaba buscando una tropilla de cabras
que se me ha extraviado, cuando ese
gringo...
―Pobresita!
[263]
A esta sincera exteriorização de piedosa ternura
não teve a suave rapariga uma palavra de
comentário... porêm a
comoção empanou-lhe
os olhos e um sôpro de enternecida gratidão lhe
fundiu a alma.
―Como te chamas?―familiar o Silveira
tornou.
―
Luisa, servidora de Usted.
―E então agora vais p'r'á tua casa?
―
Si, pues.
―Muito distante?
―
Sesenta cuadras, no
más.
―Se queres, eu te acompanho.
―
Bueno, señor.
Numa instintiva e afável confiança, ela
avançou
dois passos, o Silveira tomou-lhe a mão
esquiva, e os dois acercaram-se então do cavalo,
a que o dono tomou a rédea. E queria
que a pequena montasse, e cortêsmente insistia,
para furtá-la à fadiga molesta de tam longa
caminhada. Porêm a gentil rapariga, tenazmente,
escusava-se.―
Que no, qué
esperanza!―E
por seu turno, desprendida e solícita, teimava
em que êle é que tinha de aproveitar a
montada. Era o natural... Um senhor da cidade,
tam fino, tam delicado!―Por fim, a rodear
amigávelmente a dificuldade, resolveram
por mútuo acôrdo seguirem, já agora,
ambos
a pé.―Passariam trabalhos iguais... assim,
nem um nem outro teriam que dizer.―E foi
como alegremente iniciaram então a penosa
jornada, pronta e infantilmente acamaradados,
[264]
com o cavalo à mão e marchando a par e passo
os dois,―ela mocanqueira e feliz por tam fidalga
companhia, vaidoso êle e arrogante por
ver-se o depositário ocasional daquele tesouro,―mano
e mano divagando, mansos e graves,
na luz indecisa do crepúsculo, pela orla sinuosa
dos caminhos.
Nesta hora recolhida e melancólica, já o sol
baixava a rasar a purpurina fímbria do horizonte,
envolto numa conflagração de nuvens
que o toucavam, redondas e infladas, como o
penacho dum elmo rutilante. E o seu estirado
reflexo incendia o imenso lençol pampeano em
fulvas reverberações, como um vasto
clarão de
incêndio, no mais puro e mordente contraste
com a leveza espelhada do céu, infinitamente
calmo, fundo e diáfano, cuspido apenas ao alto
de breves nuvens policromas.―Andando sempre,
amavelmente o Silveira ensaiava, a curtos
intervalos, travar diálogo e entabolar conversa,
a fazer um pouco o conhecimento da sua misteriosa
companheira. Luísa porêm tinha dificuldade
em compreendê-lo, fazia-o a miúdo repetir
as frases; e apenas se ela consentia depois
em deixar escapar alguns raros, intervalados,
curtos e soltos monossílabos, como gotas de água
reçumando num subterrâneo. E a seguir logo
ela recaía no mesmo mutismo concentrado e
apático, fechava-se na sua invariável reserva,
na sua tímida esquivança, marchando silenciosa e
humilde, ao lado do seu generoso amigo, com a
repousada majestade da paìsagem nua do deserto.
[265]
Contudo, a poder de paciência e mimo, o
Silveira conseguiu inteirar-se de que ela vivia
separada e longe do pai e da mãe, por contendas
de família; e que trabalhava a jornal, mais
um irmão, na fazenda dum dos mais acaudalados
chacareiros da redondeza. Igualmente conseguiu
torná-la sabedora do motivo da acidental
aparição dêle por ali. E
então era de ver
como a graciosa
morochita vivamente
se interessava.―Ah,
a estancia
Amália?...
Conhecia
muito bem:
una ricura! Qué buena
señora a
D. Teresa!
Señorita
Célia,
una santa... Por
sorte, era p'r'os mesmos lados da sua chácara.
Não havia dúvida, ela lhe ensinaria... E tudo
mais que êle quisesse... Não havia por'li assim
rincão nem caminho que ela no
supiera al
dedillo.
Conhecia-os com'os os seus dedos.―E,
dizendo, tornava-se comunicativa, e afogueada,
risonha, saltitava de prazer, tôda na
vibração
exultante de poder ser útil a êste bravo e
loução
desconhecido a quem ela devia mais que a
vida.
Porêm, súbito, a atraente campesina estremeceu,
e, dando um salto, atirou-se contra o
flanco protector do amigo.
―
La lechuza! la lechuza!―murmurou
com
supersticioso terror a timorata rapariga.
E apontava um pequeno ponto escuro sôbre
um poste telegráfico, à ilharga do caminho.
Ergueu o Silveira, alarmado, na mesma direcção
os olhos e pôde distinguir uma pequena
ave, de côr àquela hora indecisa, e que lhe
pareceu
[266]
um pouco mais volumosa que os tordos
que êle sabia tam bem caçar, na sua terra;
porêm
com uma grande cabeça chata, solene e
doutoral, vagamente humana, e poisado com
uma gravidade que lhe dava o mais estranho
ar, uma bizarra mescla de ridículo e de mistério.
Confrangida e de cabeça baixa, apertando os
braços, a pobre Luísa entaramelava,―que aquilo
era uma ave má, agoireira, sinistra! Mal ia aos
que
la lechuza fitava assim... como
a ela estava
fazendo agora! Era o mais temido avejão do
campo, o mensageiro da fatalidade, um prenúncio
certo de desgraça.―Animoso e incrédulo, o
Silveira buscava tranqùilizá-la.―Que
não désse
fé a essas estúpidas crendices dos
vélhos tempos.
Quem cria agora em agoiros?... Tonterias!
Era um pobre animal inofensivo e simples, como
tantos outros.―Luísa porêm convictamente
protestava.―Que
não! todos os dias se estava a
ver... Ainda não havia muito tempo que um tio
dela caíra e morrêra afogado num
pôço, por ir
perdido a querer furtar-se à
perseguição duma
aventesma destas, por uma noite assim... E a
amásia última do patrão? E a filhinha
do sr. juiz
de paz?... Não havia nada peor! Tinha a sua
vida cortada...
E, num mixto de ansiedade e horror, de
quando em quando ela indagava a presença,
pelo espaço, dessa azarenta mancha indecisa...
a qual por seu turno, de poste para poste, de
bouça para bouça, surda e fantástica,
avoejando,
implacávelmente os ia seguindo sempre,―na
[267]
sua grande cabeça redonda, invariávelmente
sôbre
os dois apontada e fixa, luzindo ameaçadores
e preságos dois pontos fosforecentes.
Sentindo contra o seu flanco a palpitação do
corpinho fresco e tremulante da rapariga, o Silveira
aquecia. Dirigia-lhe palavras de carinho,
cingia-a pelos ombros, afagava-lhe paternalmente
o cabelo. Neste delicado momento, senhoreava-o
uma ácida perturbação,
desdobrava-se-lhe
a alma numa inquietante duplicação de
sentimentos, participando a um tempo da piedade
e do orgulho, da vaidade e do desejo. Quando
considerava a justa oportunidade, o êxito feliz
da sua cavalheiresca aventura, isento e honesto
o coração alargava-se-lhe; e, ao mesmo
tempo, por todo o seu ser em alvoroço despertava
uma sensação de terna e estranha
voluptuosidade,―o
apetite vago de possuir a sua linda e
frágil tutelada para continuar a protegê-la...
Assim foram longamente caminhando, na
progressiva invasão da tréva e do
silêncio, minúsculos
e sós os dois na imensidade, alumiados
já pelo sonambulismo errante das estrêlas. Por
aquela agonia dulcíssima de tarde, o crepúsculo
da luz e o crepúsculo da tradição
fundiam-se.
Era o charro e vazio esbatimento, era a definitiva
eliminação de todo êsse mundo de
encantadoras
e imaginosas ficções que, antes, volitando
irisadas
e leves, como borboletas, esmaltavam de
poesia a esfumada atmosfera dêste país fantasista
e ingénuo,―hoje irremissívelmente dispersas,
trituradas e desfeitas pelo industrialismo feroz
[268]
da hora presente. Não mais serenatas, encantamentos,
fadas, demónios surdindo dos poços,
virgens penteando-se ao luar, bruxas alucinando
donzelas, sereias a adormecer gigantes... No repouso
letárgico da planura, o único ruído
perceptível
era por acaso o rouco soluço de alguma
locomotiva, raspando ao longe. E neste apaziguamento
sem termo, na absoluta desolação
desta soledade infinita, a monotonia sem fim da
pampa alastrava como uma imensa
mortalha,―era
um mar morto num país de olvido.
Haviam atingido o ponto obrigado da separação,
o teimo fatal à deliciosa e imprevista caminhada.
Foi quando gravemente o Silveira estacou
frente à sua linda sócia de jornada, e
tomando-lhe as duas mãos, encarando-a bem
nos olhos, suasivo e meigo:
―Então, muito cansada?
―
No... aunque fuera doble del
camino,―murmurou
Luísa docemente.
―Espero que nos tornaremos a ver...
―
Quien sabe?―devagar ela suspirou,
furtando
os olhos, com um peganho vago de tristeza.
E dos dois as mãos trémulas e frias
deslaçaram-se,
houve um mútuo breve acêno de despedida
e voltaram-se costas, num eloqùente mutismo,
seguindo cada qual o seu caminho.
O Silveira, porêm, tam pronto deu no seu
novo rumo os primeiros passos e sentiu que lhe
faltava o que quere que fôsse... e contra o seu
querer não despegava de pensar, apiedado,
[269]
quente, com uma devoção enternecida, na
misteriosa
aparição dessa adorável e paradoxal
criatura,
tam sobranceira ao mal, tam pura em meio
de tanto lôdo, tam segura da sua imunidade, tam
resoluta diante do perigo. Quis vê-la uma vez
mais.... parou, voltou-se. Mas, impelida por idêntico
desejo, ela voltára-se tambêm... E nesta
simultânea permuta de olhares, confusa ao ver-se
surpreendida, a alvorotada criança deu logo
rápida a espalda e disparou, correndo.
VIII
Longe, na
estancia, a
extraordinária demora
do Silveira tinha tôda a família Saavedra em
cuidado. Já eram as 9 horas passadas e ninguêm
pensava em comer, polarizada e anciosa
como todos tinham a atenção no pávido
receio
de que ao seu simpático hóspede houvesse sucedido
alguma coisa... A conjurar os maus fados,
a mística Célia não cessava de
marmotar
íntimamente rosários sôbre
rosários de intercessoras
preces. E já o irmão havia feito convocar
uma dúzia de peões, para que montassem pronto
a cavalo e batessem de roda os caminhos,
quando finalmente, açodado e ofegante, o Silveira
apareceu. Entre fatigado e confuso, desfazendo-se
em implorativas frases, em instantes
justificações, em escusas humildes, contou
então
à mesa a sua romanesca aventura. O pequeno
círculo amigo escutava-o num pique de intêresse
crescente, que subiu de ponto té assumir
[272]
os contornos duma enternecida piedade, quando
êle, tendo anotado por uma sacudida mímica a
rápida e sumária exposição
da luta, se comprazia
depois, turbado e quente, na sentida descrição
da sua pequena protegida. Então os aplausos
choveram claros, abundantes, envolvendo o
destemido galã no mais propício ambiente de
favor, de agrado, de entusiasmo.―Uma acção
de cavalheiro! Parecia mandado pela Providência
ali... Fôra lindo!―E com uns grandes
olhos pezarosos, as duas senhoras:―Pobre
chica! essa... andar assim
exposta... E é como
muitos males acontecem... por'mor da necessidade,
tantas vezes!―Sómente Jorge, fátuo e
incrédulo, punha neste ingénuo círculo
a nota
discordante.―
Qué chica!
que perigos, que necessidades!
Pura parada, zonceras, bromas ...
Fôra um caso trivial aquilo. Êle estava farto de
conhecer essas falsas virtudes do campo: eram
umas sabidonas, umas impostoras, umas ratas
sábias da moralidade, réles virgens de
contrabando.―E
como, santamente indignada, a irmã
protestasse, com arrogante scepticismo, num risinho
chocarreiro o impertérrito censor desafiava:―Mandassem-na
p'ra êle, que logo a desmascararia!
No dia seguinte, de manhã, correio. Pai Saavedra
aguardava com impaciência os jornais,
que deviam já trazer o resultado das
eleições
em Buenos-Aires. Confirmava-se a vitória dos
socialistas. E desgostado o bom vélho, depois
de lêr os nomes dos novos deputados e a crescida
[273]
cifra que haviam alcançado no sufrágio
popular,
disse para o filho e o hóspede, enquanto
depunha as lunetas, abanando a cabeça com
tristeza:
―Acho um mau sintoma... Isto é um contrasenso,
um absurdo, fértil em resultados negativos
que breve vão dar o seu pernicioso
fruto, hão-de ver... Não faz sentido,
não se
compreende: uma sociedade minada pelo socialismo
e tôda regida ainda por leis góticas e romanas.
Esperava tambêm notícias da família, de
Paris,
que havia já tempos que não vinham. E
numa piedosa tristeza, encolhendo os ombros:
―Aquele meu neto! Só escreve quando precisa
de dinheiro.
Igualmente o Silveira havia recebido correspondência
da Europa, e que de Buenos-Aires
obsequiosamente lhe remeteu o Azeredo. Primeiro,
largas notícias dos seus primos de Tourais,
informando-o que aquilo por'li ia mal...
o Douro estava descontente. O vinho todo nas
adegas, os preços arrastados e mesmo assim
ninguêm comprava. Efeito em bôa parte da
protecção escandalosa que o govêrno da
Rèpública
continuava dispensando aos vinhos do
sul, que pelo Pôrto e Gaia entravam descaradamente.
E que os lavradores estavam furiosos,
os jornaleiros com fome, os povos na miséria.
A continuarem assim as coisas, muito sangue
ia correr! Falava-se em revolução, e, em
último
caso, o Norte saberia bem emancipar-se
[274]
políticamente dêsses soberbos e
egoístas mandões
de Lisboa!―Todo êste inflamado rol de
ameaças o Silveira leu breve e distraídamente,
sem dar ao assunto maior atenção, como se se
tratasse de remotas coisas passadas nalgum país
desconhecido. Tinha agora uma carta do seu
irmão Bernardo. Lamuriava a sua falta de trabalho,
a ignorância rotineira dos lavradores, a
descrença e a impiedade corrompendo tudo... e
pedia-lhe dinheiro. Soltou-a das mãos com
indiferença. A seguir, outra carta. E êle conhecia
bem esta letrinha tortuosa e miúda, traslado
flagrante do carácter mimalheiro e vibrátil
da sua olvidada noiva.―Umas dúzias de linhas
lacrimosas, desgrenhadas, lúgubres... bagoadas
de nénias e lamentos, amargas
recriminações
líricamente contornando, como lianas
de queixumes, todo um florilégio veemente de
paixão. E exprobrava ao seu ingrato prometido
essa evasiva hipócrita da «sua dignidade em briga
com o seu amor»... e que tal amor por ela
nunca êle sentira... por isso que o verdadeiro
amor é um sentimento exclusivo, dominador
absoluto, que com nenhum outro se compara,
de nenhum pode aceitar limitações nem sofrer
competências. Vinham ainda solenes protestos
duma vida tôda de isolamento, de
abstenção e
renúncia, té que o seu amado voltasse. Aludia-se
vagamente ao suicídio...―Porêm, ainda
na mesma alheada e fria disposição de
ânimo, a atenção do Silveira correu
ligeira
sôbre a enternecida página, desviando logo a
[275]
vista indiferente e arrojando-a ao lado com
tédio.
Agora, um exemplar de
La
Razón, de Buenos-Aires,
com um longo artigo marcado a lápis
azul e um bilhetito dentro. Era daquele seu
peripatético sócio de viagem, o Ramón
Alvarez,
que com desbordante ufania lhe noticiava
estar contratado para escrever nesse diário umas
crónicas literárias semanais que firmaria com o
seu pseudónimo de guerra,―
Carrasco
Bossa.
E sessenta
nacionaes por cada uma.
Bem bom!
Aí ia a primeira.―O Silveira nem uma linha
leu sequér; e vá de tomar por fim a
última carta,―esta
sim! que o fez dobrar-se, nuns grandes
olhos espectantes, e foi logo aberta com o
maior interêsse. Vinha de Espanha, tinha o carimbo
de Orense. Era um dos seus amigos da
fracassada conspirata monárquica a participar-lhe―que
as coisas iam bem agora... ali trabalhava-se
mais à vontade, as autoridades faziam
a vista grossa, êles tinham armamento, dinheiro,
quantidade de gente instruida. Desta vez seria a
valer! E que estava por pouco êsse pesadelo
tôrpe da Rèpública!―E na sua confiada
antevisão
do termo breve do seu exílio, do advento
vingador do seu triunfo, o Silveira lia e relia
com demorado calor o sugerente papel acariciado
entre os dedos, e um frémito de incontido
júbilo vinha bailar-lhe na aresta dos lábios
trémulos.
Mas seguramente aquele era o dia das novidades,
porque à hora do
mate um
inesperado
[276]
telegrama chegou, dirigido a D. Teresa.―Era
Maria Mercedes que anunciava a sua visita, para
a manhã seguinte.―Foi todo um gáudio, um
encanto, um alvorôço, uma festa. Ao
mágico
influxo da prazenteira notícia, a arrastada e
monótona vida habitual da
estancia ganhou
alento, alma, calor, transfigurou-se. Já um sôpro
de cordial eflúvio vibratilizava o ambiente,
e as fisionomias tinham um outro ar, as coisas
brilhavam duma claridade nova. E tôda a tarde,
depois, para êsses reservados aposentos do andar
superior um carinhoso movimento convergiu,
de solícitos mimos, previsões,
atenções,
cuidados. Os serviçaes arrumavam, espanavam,
varriam, traziam lençóis e toalhas, faziam
as camas; Célia foi incansável na
condução
de flores, em sábias instruções ao
pessoal da
cozinha; e de sua banda os dois Saavedras, pai
e filho, à porfia volviam a desfiar, cada um por
seu modo, os singulares atributos e as adoráveis
perfeições da nova hóspeda, perante a
picante
emoção crescente do Silveira. À noite
discutiu-se quem havia de ir à estação
recebê-la.
Célia e Jorge estavam indicados; porêm o Silveira
desejaria acompanhá-los tambêm, e a
dúvida
era se teria logar. Porque a
Miquêtas trazia
seguramente a inseparável Dorita mail'a
niñera: eram assim ao
todo seis pessoas, e o
auto não comportava mais que cinco. Contudo,
a momentânea dificuldade compôs-se pela desprendida
insistência de Jorge―em que seguiria
ao lado do
chauffeur.
[277]
Na manhã seguinte, à hora justa do
horário,
o trem de ferro parava em Chascomús. E na
obscura mancha
gris dos raros
viandantes que
saltaram, vá de recortar-se, num forte e
eurítmico
destaque, a esbelta silhuêta duma mulher
redondita e grande, os olhos negros, loira, aparatosa,
avançando com lentidão, de cabeça
erguida
e sorriso aberto, na flexuosa molenta dos
movimentos revelando todo um contôrno de divindade
pagã, e ora amplificada em ademanes de
raínha, ora quebrada em mimalhices de criança.
Vestia um singelo traje
tailleur, de
miudito xadrez
preto e branco, gorro de fazenda e côr
igual, um tenuíssimo véu de
foulard, preso em
duas largas pontas sob a nuca, e luva e sapato
branco. Trazia ao cólo um delicioso cãosito,
de focinho afusado, os olhos como contas de
azeviche e o friorento corpinho por completo
forrado no esplêndido
manchon natural do seu
longo pêlo, côr de rato. Seguia-a uma criadita
delgada e joven, vestida de negro, com uma
menina dos seus 10 anos, pálida e frágil, pela
mão.
Logo Célia e Jorge correram direitos a
saùdá-la,
e depois das primeiras acolhedoras demonstrações
fizeram-lhe a apresentação amável
do Silveira que Maria Mercedes acolheu com
distraída indiferença. Poucos minutos andados,
instalavam-se todos no auto; no logar de honra,
é de saber, a formosa viúva, com um banquinho
puxado aos pés e logo uma fôfa almofada trazida
para sob a espalda; depois, ao lado, a pequena
[278]
Dorita e Célia; e na frente, de costas ao
chauffeur, a
niñera mail'o Silveira,
que gentilmente
Jorge obrigou a tomar assento junto e
vis-à-vis da sua tam
encomiada prima. Breve,
e uma vez o auto em marcha, o diálogo abriu-se,
animado e impressivo, todo neste cortado e ávido
travamento de monossílabos em girândolas,
curtas frases sibilantes, simultâneas e bruscas
exclamações, atoadas perguntas sem resposta e
relâmpagos de inquirições em suspenso,
que
caracterizam, de ordinário o primeiro contacto
afectivo de pessoas íntimas, há muito separadas
pelo tempo ou a distância. Maria Mercedes,
naturalmente, dirigia-se de preferência a
Célia e quando muito, uma que outra vez, ao
primo, não se dando conta absolutamente para
nada da presença do Silveira, que frente a ela
seguia apagado e mudo, numa vaga humilhação,
o rosto invariávelmente paresiado numa
lôrpa expressão de convencional agrado.
Vieram primeiro solícitas indagações
sôbre
a preciosa saúde dos tios Saavedras; e como
corria o tempo na
estancia, a
peonada, as flores,
a vizinhança, as colheitas. Depois, a maligna
coscovilhice habitual sôbre o mundo imenso
das amigas. Uma viperina reportagem verbal
que fazia o regalo do feitio burlão de Jorge e
com que os mesmos piedosos escrúpulos da
irmã gostosamente se acomodavam.―Trazia-lhes
um grande
bouquet de novidades, um
punhado
de revelações inéditas, imprevistas...
Incrível!
no breve espaço de dois meses, que de
[279]
coisas entre trágicas e patuscas, se haviam passado.
E que imaginassem... A Pilarita Flores,
sempre era certo! rompera o casamento... um
compromisso tam antigo... e tam a fundo. E
depois do que se dizia! Agora o noivo, furioso,
ia-se fartando de dar à língua e o mal
não era senão p'ra ela. O puro do
escândalo!
Porêm outra melhor: aquela sonsa da Marta
Wilkinson, a casada, sabiam?... sempre afinal
deixou o marido. Tendo um filhito de seis anos!
onde é que se viu isto? E tudo p'ra juntar-se
com êsse
farabute de
Sottardo... ordinário,
feio, pobre, um réles aventureiro. Fugiram
p'r'a Europa, crê-se; enquanto o marido, deixando
o filhito à avó, se foi p'ra Córdoba
esconder
a vergonha. Porêm tam descarados os
dois, que, antes de abalarem, ainda estiveram
no
Hotel Majestic uns quinze dias,
sem recato,
sem mêdo, sem pudor nenhum, fazendo público
alarde da sua revoltante mancebia... Mas pelos
modos aquela gentinha Wilkinson era uma bem
triste família! A outra irmã de Marta, a mais
nova, a morfinómana, lá estava no
sanatório de
Rivadávia... Apenas dezanove anos e doida
de todo!
―Uma família
cursi!―sentenceou Jorge
com enfado.
E a prima, seguindo árdidamente o seu implacável
relatório, acrescentava,―que sempre
se confirmavam as escapadas furtivas da mulher
do Santelmo Martinez à
garçonnière do
Avellanoso.
E que, pelos modos, no
hogar sem
mácula
[280]
dos Perez se descobrira
recién um par de
ilegitimos
polluelos...
―Perdida gente!―lastimou Célia num compungido
suspiro, baixando com beata compunção
os olhos.
―Agora quanto a pequenas notas de ridículo,―continuou
a viúva, mudando de tom,
num ar mais ligeiro e mais facêto,―tenho tambêm
uma cabazada cheia. Ai! se fôsse a desfiá-las
tôdas... Basta só que vos diga: essa impostora
da Anita Castex há mais dum ano que não
paga à modista, porêm manda p'ra lá as
amigas
tôdas; as tolêtas das Molinas, apertadas pelo
côbro de contas que lhes vieram da Europa,
tiveram que vender o melhor das jóias e da
mobília; o mais assim.―E ao cabo dêste regalado
raid pelos meandrosos
domínios da má-lingua,
a aparatosa viúva balbuciou com ar enjoado:―Mas,
em suma, sejamos tolerantes,
deixar lá...―E logo, num imperceptível bocejo,
com uma adorável depressão de fadiga:―Mas,
ó meu Deus! esta horrível caminhada
não
tem fim. Sinto-me fatigada, sabem?
―Como fatigada,
ché?―levemente trocista
acudiu Jorge,―por uma viagem tam
curta? Uma criatura que anda sempre dum
lado p'r'o outro...
―Tambêm é verdade, sim, viajo muito.―E
com um requebrado suspiro:―Ainda é a
melhor maneira de iludir a triste vacuìdade da
minha vida.
Durante tôda essa deliciada sarabanda de
[281]
sociais mexericos, continuára a marcar zero para
a assistência aquele anonimato humilhante do
Silveira. Debalde êle a quando a quando demandava,
a que lhe désse importância e valor, o generoso
amparo da inocência, nalgum implorativo
olhar despedido com um sorriso a Dorita,
a qual, tôda ouvidos às perversas
revelações da
viúva, invariávelmente lhe voltava o rosto
enfastiado.
Lembrou-se o pobre então, como último
recurso, da bondade infinita dos cães... e tratava,
com timidez, de interessar em seu favor a
enternecida atenção do lindo animalito ali
enovelado
diante dêle, mirando-o com familiaridade,
pedindo-lhe a patita, esboçando no ar
com a mão em concha vagos gestos de carinho.
Bateu certo, desta vez, porque Maria Mercedes,
sensível a êsse timorato ensaio de irracional
galanteio, já condescendia em envolver
a figura suplicante do Silveira no amavioso círculo
da sua atenção e dos seus conceitos. E
coquetona e lânguida, um pouco teatral, continuava:
―Pareço alegre, muita vez... é certo. Das
minhas
abrumadoras crises de
desânimo desperto
súbito, e esqueço-me de mim mesma a
inventar movimento, a organizar festas, diversões,
prazeres... Oh, mas tudo puro engano!
Não são coisas que brotem cá de
dentro. É a
maneira mundana de me aturdir... de iludir
êste afrontoso tédio do meu viver, entre
sentimentos
que me enganam e pensamentos que
me aborrecem.
[282]
E agora, num atencioso e directo relancear
de olhos ao Silveira, com familiar singeleza:
―Mas eu sou uma criatura feita de
contradições...
não faça caso do que eu digo.
Porêm o extático Silveira nem a ouvira,
todo preso e incendido na devoradora contemplação
daqueles grandes e divinos olhos, que
êle agora pela primeira vez surpreendeu em
tôda a plenitude dos seus belos traços
fulgurantes...
uns olhos clássicamente distanciados, negros,
profundos, e que eram como um ardente
céu estival: com relâmpagos e sem nuvens.
Ao tempo, do assento da frente, Jorge debruçava-se,
torcendo a espalda, para a prima,
e ligeiramente irónico, apontando o cãosito:
―E que nova raridade é essa agora?
―Ah, e bem raridade,
ya lo
creo!―logo
a viúva contestou, fazendo de agastada.―
No
lo diga Usted por broma..―E com
intimativa:―É
um autêntico
Pomeranian. Talvez
não haja
mais quatro em todo o mundo!―Passou a mão
caridosamente pelo felpudo cêrro do animalito.―Meu
querido
Riddle, verdad?...―Depois
outra vez para Jorge, naturalmente:―Comprei-o
agora, há meses, na minha passagem por
Boston.
―Muito caro?
―Cinco mil
dollars.
―Que coragem!
―Ah, mas fui prática...―apressou-se em
aclarar com ladina expressão Maria Mercedes.―A
emprêsa que mo vendeu, segurou-me ao
[283]
mesmo tempo a vida dêle em igual quantia,
por dez anos.
E já ela novamente, com amável
atenção
para o Silveira:
―E, diga-me, meu caro, há quanto tempo
se encontra na Argentina?
―Há apenas dias.
―E que impressões tem?
―Oh, as melhores do mundo, minha senhora!
É um país encantador.
―Cale-se! cale-se!
―E porque hei-de eu calar-me, se digo a
verdade?... se eu não vejo por tôda a parte
senão a mais deslumbradora e magnífica
expansão
de cultura, de actividade, de progresso,
de abundância e de beleza?
―Mau! mau!―tornou graciosa a viúva a
atalhar, erguendo o braço com enfado, fransindo
o nariz com tédio.―Aí temos nós que
escutar uma vez mais êsse hipócrita e estafado
cliché de quantos
génios de exportação,
eméritos
vividores e fracassados sociólogos, nos visitam.
―São espécies zoológicas a que eu me
orgulho
de não pertencer.
―Faço-lhe essa justiça. Mas por isso mesmo
lhe peço que, pelo amor de Deus! não me continue
nesse tom incondicionalmente bajulador,
que, à força de falso e gasto, em vez de nos
desvanecer,
nos irrita e nos desgosta... Busque antes
ver as coisas como elas são realmente. Fale-nos
da pobreza da nossa paìsagem, da monotonia e
[284]
solidão do nosso campo, do nosso feitio desbaratador
e indolente, da nossa vaidade insolente de
parvenus, da nossa
penúria de inventiva, a nossa
fatuìdade, a nossa ignorância... a mal alinhavada
pastiche da
civilização europeia a que em
última análise se reduz tudo isto.
―Como? como?...―acudiu Jorge, voltando-se
brusco, num vivo rebate de orgulho, visivelmente
contrariado.
―Parece-me severo em demasia o quadro,―urbanamente
entendeu o Silveira dever contestar.―O
que aí vai, minha senhora!
―Ó prima! isso tambêm agora...―ao
mesmo tempo protestava Célia com
indignação.
Porêm de sua banda a viúva, serêna,
imperturbável,
e seguindo na solícita catequese do
Silveira:
―É que eu desejo que venhamos a ser dois
bons amigos, e p'ra isso, condição
imprescindível,
terá que ser sempre franco comigo, há-de
ter opiniões suas, pintar-me os homens e as
coisas sinceramente. Terá que ser, sobretudo,
original... Não lhe quero ouvir baboseiras.
Semierguido e dobrado numa vénia galante,
exultante de prazer, com o seu mais fino sorriso
o Silveira aventurou:
―Original?... Numa coisa seguramente eu
não poderei sê-lo, minha senhora...
―E então?
―Na incondicional admiração por si.
Visívelmente lisonjeada, Maria Mercedes
cambiou com a prima um expressivo olhar de
[285]
agrado; enquanto, num risinho mordaz, o irmão:
―Sempre galantes êstes portugueses.
―Aprenda, aprenda...
―Ora! vélhos modismos piégas de há
cem
anos...―logo o moço argentino ripostou com
desdêm; e com desenvolta petulância rematou:―E
qual a mulher que os merece?
Nesta sôlta e frívola chalra foram
rápido
consumindo o tempo; a termos que já em breve,
como de improviso, vinha cortar-se-lhes na
frente, próxima e amiga na infinita rasoira semsabor
do horizonte, a torcida e rugosa carcassa
do vélho
ombu da
estancia. Pronto o auto parava
junto ao gasto portão da entrada, onde,
comovidamente acudindo, os dois vélhos Saavedras
fizeram à sua hóspeda dilectíssima a
mais
efusiva e carinhosa acolhida. Não faltaram cá
fóra os curiosos; bem como dentro, ao longo do
jardim e seguindo pelo vestíbulo e pelo
patio,
o grosso dos serventuários e peões da casa,
alviçareiros
e contentes, cerimoniosamente alinhados.
E por todo êsse alvoroçado cortejo Maria
Mercedes passou num arrastamento de importância,
meiga e solene, devagar, entornando
graças, dadivando sorrisos, naquele seu ar a
um tempo menineiro e senhoril, com aquele
precioso dom de atracção a distância de
que ela
tinha o segrêdo.
Todo o almôço foi um encanto; e no seguimento
festivo da tarde, depois, aí vinha uma
incessante, interminável romaria de bons
paisanos
[286]
dos arredores, por onde correra boato da
chegada da sua «grande e formosa amiga», e
que enternecidamente lhe traziam a homenagem
das suas saùdações humildes,
concretamente
afirmadas por adoráveis oferendas de
pan
dulce,
ovos, mel,
biscochuelos, cabritos,
leitões, aves
e flores. Sôbre o comer, à noite, naquele
repousado
salão da frente, recobrou desusada
animação a familiar tertúlia. Nem D.
Toríbio
pensou no derivativo soporífero do xadrez, nem
tam pouco ao filho acudiu o emancipador recurso
de alguma das insalubres
juergas
nocturnas.
Todos se sentiam bem, deliciadamente presos
na atraente e dominadora presença de Maria
Mercedes, a qual para o jantar fizera grande
toilette,―com
a farta e ondeada maranha do seu
cabelo fulvo contornando-lhe a primor as têmporas,
e contra a nuca aplicada e erguida em
roscas petulantes; e aberto no mais indiscreto
decote o ligeiro corpinho, de musselina negra
com vidrilhos, que deixava livre o colo, os
braços e as espáduas, sôbre cuja
redonda nudez
uma levíssima
écharpe sôlta,
e negra tambêm,
movida ao artificioso capricho das mãos da
viúva, realizava sua tentadora gimnástica de
pecado... ao embevecido Silveira permitindo
surpreender, nos deslumbradores claros dessa
mímica perversa, a fluida solidez dos músculos
escorregando, como numa baínha de sêda, sob
a quente alvura da pele, suavemente... E quando
não era a carícia ateniense do gesto, era a
graça mórbida das atitudes, era a iluminada
[287]
vivacidade da expressão, o enigmático ninho de
promessas da bôca suculenta, a espiritual malícia
dos olhos grandes e profundos, despedindo
misteriosas flechas de fogo, que, quando as pálpebras
baixavam, parecia que se partiam na
aresta sensual das longas pestanas negras.
A pouco de entrarem no salão, a linda e
aparatosa viúva, sentindo-se o alvo comovente
das atenções, com marcada complacência
arrastou
uns poucos passos lânguidos, teatralmente,
poisando de importância; e logo de arrojar-se
com indolência sôbre um
fauteuil, e num ar
mimalheiro e infantil, a cabeça froixa, os olhos
vagos, achegando ao flanco as almofadas:
―Ai, mas que bem que eu me sinto aqui!
entre pessoas sinceramente amigas, sem fingimentos,
sem peias... e sem cuidados. Como eu
vou poder descansar!
―Ah! ah! Mas descansar de quê?...―cascalhou
Jorge familiarmente.
―Com a vida que levas...―ainda a irmã
dêste comentou, sorrindo.
―O quê? vocês pensam que eu na cidade
não faço nada?
―Claro! Uma perfeita
haragana.
―Pois enganam-se! Às 7 da manhã já eu
estou a pé.―E ante o sorriso incrédulo da
assistência confirmou com ardor:―Palavra de
honra! Apesar de ter confiança na
ama de
llaves,
passo logo revista à casa tôda. Depois,
às 8, vem a massagista; ás 9 a cabeleireira
e a manicura; às 10 tenho o
desayuno e cuido
[288]
um pouco da
nena. A seguir,
até ao almôço,
encosto-me um pouco, isso sim... É uma grande
regra de higiene: conserva o bom parecer e
evita a magreza. Mas durante o resto do dia,
naturalmente, depois, é o meu procurador, quantidade
de coisas da beneficência e uma séca
de voltas, compras e visitas. De sorte que assim
à noite, quando acabo de comer, sinto-me fatigada...
e aí pelas 10 ou 10 e meia, quáse
invariávelmente,
deito-me. Já vêem...
―Com efeito!―encareceu D. Teresa com
agrado.
―Deito-me logo, é certo. Embora às vezes
tenha convidados, que todavia ficam e me desculpam.―E
na espontânea demanda do infalível
testemunho da sua inocente afilhadita, que
acabava de entrar, Maria Mercedes rematou:―Dorita,
não é verdade?
A precoce e débil criança dobrou numa ponderosa
afirmação a cabeça; e a seguir,
abandonando
a boneca sôbre uma cadeira, avançou vagarosamente
a acercar-se da viúva, a cujo lado,
tomando-lhe com ternura a mão, se enovelou,
já com um ar composto e grave de pessoa adulta,―o
seu rosto sério e os pequeninos olhos
claros, muito abertos, revelando tôda a acuìdade
mordente da atenção para apreender e
quanto possível assimilar, no enunciado e na
intenção, o desenho sinuoso do
diálogo.
Entretanto, com burlona ironia tornou Jorge:
―Pois aqui, querida primita, já sabes... há
tambêm que trabalhar.
[289] ―Pronto!―rompeu, saltando de ímpeto, a
viúva.―Teem programa?
―Esperávamos por ti,―aclarou D. Teresa.
―O teu
veredictum é
essencial,―completou
pai Saavedra com ternura.
―Bem, pois vamos então a ver... Já pensaram
em algo?
De roda abriu-se um claro de silêncio hesitante,
e houve um tiroteio mudo de olhares de
incerteza. Apenas Célia ousou então docemente
insinuar:
―Há aí um assunto, de magna
importância,
quanto a mim... Porêm todos me
hacen
burla,
me pelean, opõem-se...
E aquela esquiva e insípida figura desfiou
com vivacidade crescente, perante a atenção
tolerante
da prima, tôda essa magoada história
do seu desgôsto pelo industrialismo, a irreligiosidade,
a chateza, a afrontosa materialidade
pagã que pesava sôbre a
estancia; e como era
vivo, alado e ardente o seu desejo de ver por
fim êste adorado ninho da família posto sob a
invocação
duma santa padroeira qualquer, ao místico
abrigo tutelar da divindade. E ainda, por último,
esboçou e enalteceu, como o seu único
apoio, a poética idéa do Silveira.
―Ah, mas eu acho óptimo!―acudiu com
palpitante animação Maria Mercedes,
avançando
o busto com graça e juntando e batendo as
mãos, crêspos de decisão os
lábios, os grandes
olhos faiscando.―É certo, sim... Abundo no
pensamento do sr. Silveira. Excelente, não há
[290]
dúvida... Tens razão, Célia! Tens-me a
teu
lado.
Num perturbador lume de vaidade, logo o
Silveira, dobrado em afável reverência:
―Sinto-me deveras ufano por essa sua espontânea
conformidade de pensar, minha senhora.
―Ah, mas não vá desvanecer-se demasiado,
meu caro amigo! A minha conformidade não é
completa. Um ponto há em que eu peço
licença
para divergir...
―E então?
―É nessa coisa gasta e trivial de azulejos
pelas paredes e retábulos pelas esquinas,―no
seu expressivo fransir do nariz respondeu morosa
a viúva:―Nada, nada... temos muito melhor!―E
ante a suspensa atenção do pequeno
grupo, sacudindo iluminada a cabeça, batendo
com fôrça no joelho:―A santa imagem
propiciatória
dêste logar hemos de a colocar lá fóra,
no jardim, debaixo do vélho
ombú.
Um eloqùente alarme de protesto, um calafrio
de indignado horror, acolheu a herética audácia
da proposta.
―Ó
Miquêtas,
por favor!―censurou, a primeira,
D. Tereza.
―Uma árvore condenada, ôca, podrida,
inútil...―comentou
o filho com asco.―Um símbolo
de mau agoiro.
―Por isso mesmo!
―A que extremos o prurido da originalidade
arrasta por vezes esta minha bôa sobrinha!―com
[291]
o seu ar mais bonacheirão interveio, sorridente,
D. Toríbio, e
conciliadoramente:―
Este...
Pois tu não conheces o vélho adágio
crioulo:
rancho con ombú acaba en
tapera?...
Sabes muito bem que a
gauchada
odeia, por
tradição e por instinto, quantos raros exemplares
por'í ainda acaso existem dêste torturado e
solitário representante da nossa grande flora secular.
Êles teem o
ombú por uma
árvore presága,
abominável, a cuja sombra sinistra parecem
germinar e medrar a ruína, a desgraça e
tantas vezes o crime.
―Uma crendice estúpida.
―Que em todo o caso existe. Quantas dessas
vélhas árvores o nosso
paisano pode impunemente
alcançar, sabes que as abate logo a machado.
―E fazem muito bem!―implicativo tornou
Jorge.―Se é lenha que nem para o fogo lhes
serve!
―Essa antiga sentinela do nosso jardim
deve seguramente a vida ao seu resguardo,―continuou
afávelmente D. Toríbio; e com suasiva
mansidão para a sobrinha:―De sorte
que...
este... já
vês, se nós vamos agora a pretender
nobilitar, a deificar em certo modo, pela
tua peregrina idéa, êsse precário
foragido do deserto,
muito possível é que então a bruta
peonada
dos arredores, conseqùente no seu ódio
medular, seja capaz de, por extensão, tomar
tambêm em aversão toda a
estancia. Vê
lá...
―Certo, certo...―cabecearam Célia e a
mãe, num passivo assentimento.
[292]
Porêm, serena e insensível, sem se desconcertar,
no mesmo convicto ardor teimou a viúva:
―Pelo contrário!... Essa pobre gente pensa
mal? é vítima inconsciente de íniquos
preconceitos
e crendices absurdas? Pois o nosso dever
é ensiná-los, educá-los,
esclarecê-los... varrer-lhes
o intelecto e aclarar-lhes a consciência.
―Estás bem aviada!
―Claro que sim! Temos a santa obrigação
de abrir-lhes os olhos, de fazer-lhes bem sentir
tôda a cega extensão da sua ignorância e
o bárbaro
desvio do seu êrro.
―Querem lá saber!
―Em vez de ser um tema de abominação,
o vélho
ombú
argentino merece bem ser antes
um objecto de carinho. Há que reabilitar êsse
veterano simpático do nosso campo, essa relíquia
veneranda do passado, testemunha muda e
inocente de tanto sucesso lendário...
―Eu logo vi...―atalhou Jorge com o seu
incorrigível ar trocista.―Está sabido. Todos os
ombús são
lendáríos.
―Quando não são históricos!―corrigiu
pronto, com firme severidade, a viúva. E posta
súbito em pé, sempre com a mesma incisiva
veemência
levando de vencida a já froixa resistência
do auditório:―Ora imaginem! Improvisa-se
uma peanha, em cima um nicho a carácter,
instala-se dentro o santo ou a santa... e aí
temos nós o pretexto para uma interessante
festa nocturna. Verão o efeito. Cai aí tudo...
vai ser lindo!
[293]
E como de roda todos, vagamente sorrindo,
se fechassem num silêncio que era uma aquiescência,
ela comandou com alegria:
―Bem! bem! está combinado. Daqui não
há que sair. Amanhã veremos os detalhes...―E
rematou com decisão, segura já do seu
triunfo:―Meus caros amigos, não há tempo
a perder! porque a minha demora aqui vai ser
curta.
Uma aluvião de subitâneos protestos choveu
da assistência, entre os quais era de notar a
calorosa insistência do Silveira.―Que não!
não
podia ser! tinha por fôrça que demorar-se.
Adorada por todos como ela era ali assim! O
contrário seria uma crueldade, seria um crime.
Nada! não a deixariam partir...―Mas a despeito
de todo êste adulador incenso, a mimada
viúva, com bem dissimulado desgôsto,
aventurou―que,
emfim, era forçoso... A estação ia
adiantada, e ela tinha ainda forçosamente que
visitar Córdoba, Montevideo, Bahia-Blanca, Mar
del Plata.―E bruscamente, passando a recostar-se
numa convidativa e ampla
dormeuse,
frente a uma janela aberta, e agitando a mão
com angústia, queixou-se de que sentia imenso
calor e tinha sêde... queria beber alguma coisa.
Logo de roda o pequeno círculo em solícito
movimento. Dorita partiu a correr, a buscar
um leque; Jorge improvisou uma ventarola
de papel; pai Saavedra foi estabelecer corrente
de ar, abrindo a porta, enquanto o Silveira
abria tambêm mais a janela; e D. Teresa e
[294]
a filha, açodadas e inquietas, batiam, acamavam
o estôfo da
dormeuse,
ageitavam a cabeceira,
arredavam as almofadas. Depois, mal
o criado de mesa entrava, trazendo uma bandeja
com refrescos, e já era a imediata presença
da
niñera que a
insatisfeita viúva imperiosamente
reclamava, para que lhe trouxesse
o seu
little Riddle, que ela
sôfregamente aninhou
no colo, deliciada a coçar-lhe a nuca e a
dar-lhe guloseimas.
Ainda a conversa se prolongou por um
tempo mais, bordada sôbre coisas vazias de
interêsse, a termos que por fim Maria Mercedes,
erguendo-se e aconchegando a
écharpe, pediu
licença
para retirar-se, com Dorita, dizendo agora
que sentia frio. Todos obsequiosamente a acompanharam,
ao longo do
patio, té
à porta da
escada para o andar superior. E aí, na carinhosa
cauda das despedidas, ela disse afectuosamente
ao Silveira, estendendo o braço:
―Então, bons amigos, não é assim?
―E aliados!―confirmou êle, radiante, beijando
aquela mão divina.
E, tôda a noite, êste autêntico produto
da
singela e bronca região duriense quáse
não
dormiu. A impressão vincada por Maria Mercedes
no seu temperamento cálido, na sua apoucada
inteligência, no seu impetuoso e límpido
carácter, marcára fundo bastante para
espancar-lhe
o sono e atear numa viva espertina a
arrastada sucessão das horas. Não o
fascinára
sómente o deslumbrador cortejo dos encantos
[295]
físicos da recêm-vinda, mas tambêm, e de
preferência, a linha sinuosa e complexa do seu
perfil moral. Organismo rico de sangue e pobre
de nervos, afeito às aventuras fáceis, esperto
e fanfarrão batedor na caça dos simples
amores campesinos, o impressivo desenho desta
figura requintada e esfíngica desnorteava-o.
Até àquele momento êle não
lidára, mais ou
menos, senão com mulheres dum córte definido,
compreensíveis, sinceras, claras como o azul
matutino do céu e a água cantante das ribeiras.
Ainda agora aqueles seus dois últimos conhecimentos,
durante a viagem,―a esquiva Irene
dentro do seu espiritual alheamento, a provocante
Mrs. Edith embiocada na sua
sábia
impostura,―mostraram contudo logo o que
eram, foram sempre lisas, coerentes, lógicas
consigo mesmas. Porêm Maria Mercedes, não!
Era uma criatura embricada, enigmática,
temível...
estava a ver. Cheia de mimalhices, caprichos,
alternâncias, brusquerias, entusiasmos,
tédios. Um diabólico e indecifrável
novelo, um
problema estonteante. Queria investir com ela
e tinha-lhe mêdo! Era um abismo de
seduções
e um torvelinho de mistério, que ora lhe inflamava
o instinto ora lhe acobardava o desejo.
E―coisa interessante, rara tambêm e para êle
inexplicável,―a cada momento, a cortar suavemente
a angustiosa dúvida do seu querer, nos
mais agudos instantes desta sua obstinada devassa
interior e pelo mais adorável dos contrastes,
vinha e debuxava-se-lhe na vaga penumbra
[296]
do aposento, sobrepondo-se à turbadora
imagem da viúva, em claros benéficos de repouso,
a figura mansa e rústica da sua confiada
amiguita da antevéspera, Luísa, a linda morenita,
na mesma apostura silenciosa e humilde,
na mesma inércia contemplativa, na mesma
frescura moral de clara fonte, iluminada de ternura
ingénua... e na amaviosa concha do seu
olhar, cheio de fogo latente, envolvendo-o, calmando-o,
dominando-o... mercê dêsse irresistível
poder das mulheres suaves e tristes,
quando rogam mansamente.
Na rápida sucessão dos dias, depois,
não
perdia o nosso atolambado galã o mínimo ensejo
em que acercar-se pudésse da viúva, a procurar
tornar-se insinuante, familiar, prendê-la ao seu
convívio. E buscava ardilosamente captar-lhe a
atenção, na impossibilidade manifesta de lhe
falar ao desejo. Ao mesmo tempo arriscava
tôda a sorte de tímidas, de insidiosas
inquirições
sôbre o problema mordente do seu passado.―Uma
mulher assim devia ter crónica!―A
cada momento esboçava interrogações e
bordava conjecturas sôbre os ignorados antecedentes,
sem dúvida invulgares, daquela vida.
Preocupava-o árdidamente o mistério desta
estrangeira
nascida tam longe dêle, e cuja
existência,―estava-se
a ver,―teria porventura
sido demasiado vaga e errante para que êle
jámais pudésse bem conhecê-la.
[297]
Algumas vezes D. Tereza veladamente lhe
insinuára,―que a sua pobre
Miquêtas não
fôra
nada feliz com o casamento. O deslumbrado
Silveira não queria crêr... Jorge, o seu
confidente
natural, discretamente e de pausa lhe ia
tambêm relatando um que outro pormenor,
avançando um detalhe, sublinhando uma anecdota;
e, na crédula cegueira da sua
admiração
lamecha, cada nova revelação sempre o Silveira
aproveitava para desatar-se em hiperbólicas fantasias,
cuja asa de oiro logo o amigo prosaicamente
lhe cortava, por um episódio trivial
ou um comentário trocista. Foi assim que, uma
tarde, sentados os dois naquele aconchegado
rincão do
patio, junto ao
comedor,―e porque,
incorrigível, o Silveira voltasse ao seu
panegírico
optimista sôbre as sublimadas
perfeições
dessa criatura de deslumbramento e de sonho,
que merecia mais que um trono... um altar,―ainda
uma vez com inflexível frialdade tornou
a frisar-lhe o amigo:―que todavia ela não era,
nem fôra nunca, feliz. E que poderia bem tê-lo
sido... com as paixões loucas que inspirou, com
os belos pretendentes que teve! Pelo desespêro
uns levados ao suicídio, outros à loucura,
outros à ruina. Ele já sabia. E que afinal...
―Afinal...―recalcou o Silveira com ardor,―sempre
teria sabido escolher um marido
digno dela. Se é que semelhante prodígio era
possível!
―Que prodígio! Nada disso! Pelo contrário...
Muito mais vélho...
camorrista, devasso
[298]
e jogador. Comparado com ela, um perfeito
estafermo!
―Bem! mas ao menos morreu... Está livre
dêle!
―Morreu... E por que forma?―balbuciou
Jorge, fazendo uns olhos de piedade, com uma
cáustica expressão de enfado. E por fim, ante
a suspensa e mortificada atenção do amigo:―Em
casa duma amante... duma apoplexia.
O Silveira fez-se pálido, corrido por um frio
interior de nôjo e de revolta. Porêm Maria
Mercedes, que passava na ocasião e aprendera
esta pequena aresta de diálogo, acercou-se,
mansa e familiar, dos dois amigos, e com uma
adorável resignação, quáse
infantilmente:
―Ah, mas por'mor de Deus! Meu caro amigo,
não me lastime. Eu relativamente estimei...
Poupou-me o desgôsto de o ver morrer.―E
logo com desenfastiada naturalidade, derivando:―Mas
dispensem-me, sim?... Vou escrever
p'r'a capital, quero ainda aproveitar o correio de
hoje. Vou mandar uma carta cheia de minuciosas
instruções a êsse santeiro de
calle Suipacha,
sabem?... É a encomendar-lhe uma grande imagem
da nossa futura padroeira, a Senhora da
Conceição. Escolhi bem, não lhes
parece?...
Ela é o santo símbolo da fecundidade e da pureza,
e portanto o mais condizente escudo e o
mais fiel espelho desta mansão exemplar da
abundância e da virtude.
E, feita uma ligeira vénia, ei-la que retoma
a andar, naquele seu estudado ademan de requebrada
[299]
e ondeante majestade, a fugidía asa dum
sorriso a encrespar-lhe os grandes olhos côr da
noite e a adejar nos lábios nacarinos.
―Divinal mulher!―murmurou, posto em
cómico êxtase, o Silveira.―Como diabo foi ela
tomar um animal dêsses p'ra marido!?
―Sei lá!―redarguiu Jorge, num risinho
scéptico.―Coisas de mulheres... Ela diz que
foi por amor ao paradoxo e umas tantas
pavadas
por êste teor. Mas não! quanto a mim,
foi pura questão de vaidade.
Se le ha
puesto
entre cojas dominar, moralizar, regenerar
êsse
salafrário.
Pero se ha
embromado.
―Com o que nada perdeu, no fim de contas.
―Ah, não seguramente! Ao contrário, com
mais êsse pequeno escândalo o seu nome
não
fez senão ganhar em fascinação, em
poder, em
comovido interêsse e mundanal prestígio.
Abroquelada na sua individualidade melindrosa
e rebelde, Maria Mercedes nem a todos
os preceitos se amoldava daquele salutar e primitivo
viver da
estancia. Não
lhe importavam
passeios, temia as caminhadas, envolvia no
mesmo abandôno de fastidiento desdêm a barulhenta
bisarma das instalações industriais e o
manadio disperso da riqueza pecuária. Substancialmente,
a rude movimentação, o giro áspero
e forte da vida do campo, repugnavam-lhe.
No seu temperamento subtilizado e mórbido
essas cruas batidas de ar e de luz feriam
reacções
bruscas, violentas, quáse dolorosas. Despertava,
erguia-se cedo; porêm de ordinário,
[300]
antes do meio-dia, ninguêm conseguia vê-la
fóra do quarto, sucedendo-lhe repetir amiúde
«que de manhã não era mulher p'ra
nada».
Antes daquela hora apenas condescendia em
sair dêsse inviolável reduto, quando muito, a
niñera, a arejar o
Riddle e a passear Dorita.
Maria Mercedes apenas uma vez acedeu a dar
um passeio matinal, a cavalo, na companhia de
Jorge e do Silveira. Mas baldadamente êste
depois, em várias dulcerosas investidas, tentou
persuadi-la a que lhe fizesse a fineza de repetir,
e desta vez com êle só, o sacrifício...
todo na saborida antevisão dum aventuroso
idílio. Nada alcançou. Fôra uma
façanha sem
exemplo.
Pelas tardes, sim, era a bela viúva a primeira
na actividade, no bom-humor, na alegria.
Fazia largos e piedosos percursos, então de
ordinário companheira inseparável e gostosa de
D. Tereza no seu esmolátorio desporte pelas
redondezas. E em seguida, às noites, no
salão,―aonde
sempre acudia uma ou outra família
vizinha,―era ainda ela o prestigioso centro
das atenções, o fulcro espiritual do
diálogo,
neste môrno e sossegado ambiente, sentindo-se
na posse plena dos seus nervos e em todo o
facetado fulgor do seu espírito.
Ao cabo duma semana, por uma nublada
manhã, pesada e ardente, chegou Belisário
Ruiz. Exceptuando por parte de Célia, teve
sua consabida recepção de agrado. Maria Mercedes
acolheu-o com afabilidade e festejava-o,
[301]
judiava-o, apurava-o muito, mercê desta liberdade
inocente que a intimidade nos traz e um
largo conhecimento. De sua banda porêm o Silveira
entristeceu e alarmou-se, por uma apreensiva
retracção do instinto.―Ganharam então
em
colorido e interêsse as familiares tertúlias da
noite, agora de ordinário bordadas sôbre assuntos
mundanos, em que a desabusada
verve do
recêm-vindo, no seu arrastado ar
blasé, intercalava
amiúde a nota picaresca ou o comentário
equívoco. Era sem fim o rol que, a propósito,
este pândego contumaz se comprazia em desfiar,
de casos escuros, anecdotas picantes e grotescas
aventuras, fruto da própria experiência
umas, outras colhidas naquele seu fácil e sôlto
passo pela vida fóra. Então não raro
aconteceu,
quando o diálogo assumia um cariz algo
verde,
a meticulosa Célia erguer-se e sair, dissimuladamente.
E uma noite pai Saavedra, bonachão alegre,
no seu adorável espanto infantil, exclamou
para Belisário, batendo galhofeiro os braços, os
pequeninos olhos verdes húmidos de riso:
―Mas que coisas com que êste homem nos
vem!
Chacotón! Onde
demónio vai você saber
tudo isso?
―Aí teem!―acudiu com intimativa a viúva,
súbito erguida da sua apostura indolente.―É o
que se ganha com as viagens. Êste senhor tem
viajado muito, como eu. Faz bem... O que a gente
vê, ouve, sente, adivinha, ausculta e aprende!...
São um grande e divertido ensinamento.―E
num suspiro lânguido, recumbida e mole novamente:―Quem
[302]
me déra ir já por'í
fóra
outra vez!
O Silveira esboçou um convicto e mudo
assentimento; e carinhosamente D. Toríbio:
―Sempre viajar! sempre viajar! Nunca te
fartas...
―Que querem? sou assim... É da baralhada
essência do meu sangue. Imaginem; minha mãe
era uruguaiana, minha avó italiana, meu avô
alemão, meu bisavô norte-americano... Com
uma ascendência assim, que outra coisa poderia
eu ser senão uma incorrigível vagabunda?
―Deves ter amor à tua terra.
―A minha terra?... Sei lá qual é!
―Não digas isso!―acudiu a gorda e maciça
D. Teresa, estremecendo e erguendo com horror
as grossas palmoiras à tinta industrial do cabelo.
Porêm a viúva, quente, imperturbável:
―Ah, isso é que eu digo, minha querida
tia! perdoa-me... Porque não há razão
nenhuma,
porque eu não sinto o menor movimento
de alma, nem conheço qualquer forte
fundamento exterior que me leve a prender-me
ao torrão onde acidentalmente nasci.
―Deves querer mais do que tudo à tua
pátria―severo
reprimendou Jorge.
―Lá vem, lá vem o consagrado chavão!
a
linda e convencional mentira!―pronto a viúva
contestou num alto desdêm burlão; e a seguir,
fransindo o nariz, doutoralmente:―Isso de pátria
é uma antiga invenção dos ambiciosos e
dos
déspotas, para por meio dela escravizarem ainda
[303]
mais a récua desprezível dos humildes; para
fazê-los
pelo coração tributários dos seus
domínios,
e cegos no deslumbramento dessa patranha sublime,
jungi-los e arrastá-los então irracionalmente,
como máquinas, no carro devastador das
suas conquistas, aos grandes actos de heroísmo
colectivo e anónimo, à
abnegação, à intrepidez,
ao sacrifício, à morte. Sempre assim foi...
Neste ponto a estratégia dos grandes mandões
é invariável assim como a passiva estupidez dos
que lhes obedecem é infinita.
―Estás-te excedendo, filha!―atalhou com
sincera indignação D. Toríbio.―Nem
pareces
argentina!
―Não sei o que pareço, nem me importa!
O que eu sei, o que eu sinto muito bem, é
que a noção de pátria é uma
concepção tacanha
e absurda. Os mais, num blóco unânime,
protestavam;
e ela, com vivacidade persuadente:―Pois
se a terra, na origem, na essência e no
destino, é tôda igual! Então os
senhores não
vêem que tudo quanto há de perdurável e
transcendente
neste mundo, as grandes invenções,
os grandes ideais, os grandes sentimentos, são
de carácter universal? Pois não é
certo, que
para que uma obra da literatura ou da arte
alcance a consagração eterna, ela
há-de romper
o âmbito estreito do regionalismo e alar-se
à objetivação sintética de
algum dos grandes
movimentos comuns a tôda a humanidade?
―Diz muito bem, minha senhora!―apoiou
com irónica veemência o pequenino e glabro
[304]
Belisário.―A pátria de cada um é onde
melhor
se encontre e melhor possa governar a
vida.―E logo, com um ar ligeiro e brincão,
a desfazer a chocante heresia do conceito:―Eu
cá, por temperamento e por
inclinação...
seria turco.
A seguir, volveu a informar-se com mais
detalhe das diversões que havia planeadas.
Queria, em suma, saber o que a esperta inventiva
de tam preclara gente havia concertado
para colmar um pouco o tedioso vácuo da prosaica
vida do campo. Falaram-lhe na projectada
festa ao
ombú; na benta
iniciação da
estancia:
achou plebeu, pueril, ingénuo. Para o
dia seguinte havia uma
doma de
potros, aguardada
com impaciência pelo Silveira; porêm seguramente
as senhoras não iriam. Maria Mercedes
não se conformava, não podia suportar
esse espectáculo, que ela reputava em extremo
repugnante e bárbaro, bestial. Redondamente
opunha-se. Belisário pediu licença para
discordar,―pois,
pelo contrário, essa primeira
brusca e sábia investida do homem com o irracional
era a mais linda lição de coragem, de
inteligência, de destreza e de fôrça;
era um belo
torneio para cujo completo realce, como em
Espanha nas toiradas, se tornava indispensável
a presença e o aplauso da mulher, que é a
suprema encarnação da beleza. E a poder de
dulcerosas instâncias, de ardilosas lisonjas e
vivas frases sugerentes, o meliante conseguiu
o assinalado triunfo de conquistar a aquiescência
[305]
difícil da viúva, a qual por fim, reptada a
que declarasse formalmente se estava, ou não,
disposta a acompanhá-los, prometeu que sim!
No dia seguinte, às primeiras horas da tarde,
a alegre caravana em movimento. Houve que
fazer uma longa hora de caminho, sob a pantalha
de oiro do sol, delidos na rasa imensidão
implacável da planura. Pela angosta e rudimentar
carreteira, ou triturando aquela imensa alfombra
verde, o auto seguia tombeando e oscilando,
numa cautelosa marcha de incerteza, moderadamente,
erguendo rolos de poeira ofegante,
ladeado pelas donairosas figuras do Silveira e
Jorge, que galopavam à estribeira. E agora
alcançavam uma larga mancha de terreno pastoso
e lamacento, onde, a um lado, se aglomerava
uma encantadora mólhada de eqùídeos,
bravos, garbosos, finos, com o ar surprêso e
selvagem, a sua insofrida dispersão contida
pelo disciplinário esfôrço de meia
dúzia de
gauchos montados, ásperos
e duros de roda
circulando. Um outro grupo interessante se
notava, de bruta peonada, de chinerio nativo,
de carripanas, cavaleiros, de rotos, mulheres
e crianças, todos num empilhamento do interêsse
contornando daquela arena de acaso o
piso brando e revôlto, o vago e amplo recinto.
Fóra, na lisa nudez da campina e a pequena
distância, uma bôa fogueira ardia, chispando
estabaredas. Preparava-se nesta improvisada cozinha
rústica o clássico e delicioso acepipe
de
asado con cuero. À
míngua de lenha, o
[306]
fogo era alimentado por tôda a sorte de detritos
orgânicos: destroços de mobília,
fôlhas
sêcas, farrapos, palha, ossos. Pelo espiralado
intervalo entre duas línguas de lume apercebia-se
uma caveira oblonga, na rubra ardência
do braseiro luzindo a sua álgida alvura, macabramente.
E naquele justo momento um
vélho peão surdia, ajoujado ao pêso
duma
perna de cavalo, já em parte putrefeita, e que
ao ser arrojada ao fogo, dêsse calcinado monte
de impurezas fez erguer uma labareda de fumo
gordo, negro e nauseante.
Na parte reservada do recinto, havia sido
batida à pressa uma tôsca bancada de honra,
destinada aos recêm-vindos. Mas dêste primitivo
instrumento de relativa comodidade apenas
Belisário e o vélho Saavedra se utilizaram. As
senhoras preferiram manter-se furtadamente a
distância, empalancadas no seu auto. Jorge e
o Silveira haviam-se logo apeado, e acercaram-se
ligeiros da manada.―E já agora a um
sinal dado, um galhardo mocetão no mesmo
sentido avança, e, despedindo certeiro o laço,
colhe pelo pescoço e arrasta até meio do terreiro
um dos pobres animais, que daí a instantes,
enfurecido e trémulo de espanto, sente
tambêm, por meio de novas voltas de laço,
irremissivelmente
presos em nós de cordas os quatro
membros. Então, um simples esticão dado
às prisões, sacudido e forte, rompe com o
precário
equilíbrio da vítima, que tomba em pêso
sôbre o sólo, em risco de se lhe deslocarem as
[307]
articulações ou partirem os ossos. E
aí se precipitam
logo sôbre o assombrado pôtro, que,
louco de terror, se debate froixamente, quatro
espertos matulões, a segurá-lo e a
enleá-lo
mais forte, por meio de consabidas travas, té
que o imobilizam por completo. Outros lhe sucedem
neste anacrónico e despiedado exercício,
e que, ajoelhando e abatendo-se contra o indefeso
quadrúpede, encapuzam-lhe a cabeça, passam-lhe
o bridão e aplicam-lhe num momento
a sela (
el recado) cilhada
déstramente. Já não
há receio agora de que o abatido animal possa
escapar-se; a complicada rêde de cordagens desembrulha-se,
escorrega, afroixa e deslaça mansamente;
e o pôtro pode, emfim, cego e aturdido,
erguer-se, mal conseguindo firmar os pés
naquele terreno falso e mole, adrede escolhido,
e com as duas mãos, à cautela, tomadas ainda
por uma última laçada. E quando o peão
destinado
a montá-lo intervêm, num pulo salta
para a sela, a derradeira prisão desata-se, e êle
aí larga a montada na sua frente a correr e a
coucear desapoderadamente, colado e cingido
com ela como um centauro, tendido o busto
em flecha, os olhos em fogo, e incansável e
duro o braço fazendo rodopiar o
rebenque em
círculos de ameaça. Flanqueiam-no, a enquadrar
a corrida, dois outros cavaleiros brandindo
tambêm chicotes. E os três aventuram-se nessa
desenfreada carreira buzinando uma gritaria
doida, descompostos em pragas, urros,
vociferações,
soltando uivos de bêstas-feras, que põem
[308]
o pêlo em pé aos atónitos poldros da
manada
e que a rôta chusma dos assistentes acompanha,
delirando, num concertante infernal, num alto
côro selvagem. Corridas assim umas centenas
de metros, o estupefacto cavalo estava cansado.
Tolhido de assombro e de pavor, apequenava,
submetia-se. E estacava a intervalos, colhido todo
numa atitude de abandôno e doçura que
tímidamente
exteriorizava a sua veemente solicitação
de, emfim, parar... Trazido então ao ponto
de partida e renovada a brutal carreira, já êle
pronta e resignadamente obedece, abdica da vontade
e está rendido à discrição
do algoz.
Entretanto o Silveira, que seguira êste bárbaro
entremez com empolgador interêsse, movia-se
nervosamente e dava rebarbativas mostras
de impaciência, de desagrado, quáse de
indignação, as quais pela estranheza alarmaram
a atenção de Jorge. Aquele, porêm,
rasgadamente
explicou-lhe,―que achava excessivo,
desnecessário, estúpido! Animais nobres e
inteligentes
como aqueles não se tratavam assim.
Não podia ver semelhante coisa!―E enquanto
o amigo, com um risinho azêdo, procurava
aplacá-lo, foi o segundo pôtro trazido ao castigo.
Este porêm, altaneiro e vibrátil, saíu
mais
rebelde: só ao cabo de quatro corridas se deu
por vencido. Veio depois o terceiro, que teve
que ser logo retirado da arena, porque, abatido
sôbre o lôdo desastradamente, rompeu um
quadril. O Silveira não teve mais mão em si.
Avançou com decisão e reclamou alto que lhe
[309]
permitissem domar êle o pôtro a seguir.―Havia
uma outra maneira de fazer aquilo, mais
suave, mais racional, mais humana. Iam ver!―De
roda foi um espanto. Pela grossa corda
do populacho passou uma oscilação de pasmo
e de surprêsa; havia burdas
interrogações em
suspenso, esboçavam-se atitudes de achincalho,
de desdêm, de irritante desafio, de malícia
perversa,
e a sua bronca expressão abria-se em
risinhos alvarmente incrédulos. Belisário
pôs-se
de salto em pé. Pai Saavedra protestava, em
repetidos gestos de negação, agitando com
veemência
os braços. Da apartada altura do seu
reduto, D. Teresa impava ofegante, Célia e
Maria Mercedes taparam o rosto com os leques,
aflitivamente. Apenas Jorge, por um simpatismo
viril, apoiou a atrevida solicitação do
amigo.
E foi o bastante.―O quarto paciente veio
então, e, em meio da ansiedade geral, os peões
da manobra permaneciam quietos e a distância,
esperando instruções, de olhos fitos no Silveira,
o qual lhes ordenou que, mantendo por
enquanto o prisioneiro enlaçado, apenas, mais,
lhe prendessem as mãos. A seguir, êle mesmo
se acercou e investiu, entre duro e afável, com
o animal, que todo ruflando de temor, assombrado
e arisco, reagia a patadas. Ágil e precavido,
porêm, o Silveira furtava-se a tempo
e logo voltava, numa polarização empolgante de
todo o seu ser, a defrontar-se com êsse trecho
vivo de natureza em bruto; olhava-o firme, rodeava-o
[310]
e cingia-o, déstro, incansável,
ameaçando,
bradando, rojando-se, saltitando; envolvia-o
num mágico círculo de dominadora
astúcia, ora atraíndo-o por
interjeições familiares,
ora de escape afagando-lhe o pescoço,
ora tocando-lhe a garupa com o chicote levemente.
Feito assim um pouco o conhecimento
com a sua indómita montada, foi êle ainda
quem lhe vendou os olhos, o enfreou e lhe atirou
pronto a sela para sôbre os rins, afivelada
num relance. Novos afagos agora, mais permitidos,
mais claros, mais seguros; em seguida
faz sinal à peonada que solte as prisões; e num
intrépido salto ei-lo arçonado
sólidamente contra
o espavorido dôrso do animal em fúria.
Há
então uns breves, absorventes minutos de ansiedade
e de luta: é a consumada maestria, a serenidade,
a destreza, a forte musculatura e a vontade
indomável do cavaleiro, em decisivo duelo
com o desordenado furor do ginete, que, sob a
pressão exasperante daquela formidável tenalha
de aço, se dispersa em esforços
inúteis, encabrita-se,
escouceia, escarva, atira upas, sacode a
espinha, curveteia, bufa, geme e tressua, inelutávelmente.
Depois, quando o Silveira teve o seu
domínio eqùestre por assegurado, despediu
tambêm
o pôtro a galope, mas não cega e irracionalmente,
como os dois anteriores, antes forçando-o
a seguir, no mesmo andamento sempre, em
dadas direcções, manejando-o e dominando-o a
seu bel-prazer, obrigando-o até ao cansaço... e
assim conseguindo por fim trazê-lo a fazer o
[311]
vitorioso circuìto do terreiro, ante a estarrecida
imobilidade da assistência. Então,
tranqùilamente,
apeou-se e abandonou as rédeas ao cavalo,
que, sem o mínimo assômo já de
emancipação
ou de revolta, pelo contrário, deu em seguir
espontâneamente
na esteira do seu hábil domador,
manso e humilde como um podengo, os flancos
molhados, estirado e murcho o pescoço, e o focinho
arquejante a acariciar-lhe a espalda, que
ia deixando mosqueada de baba sanguinolenta.
A tôda a volta estrondeou uma tropeada de
aplausos delirantes, que o Silveira, altaneiro
e frio,―e enquanto, tirado o
chambergo, enxugava
o suor,―agradeceu escassamente. Correu
a abraçá-lo com admirativa efusão o
reduzido
grupo dos amigos. E, como lídimo arauto da
multidão, um veterano
gaucho se adiantou gravemente,
batendo os esporões farfalhantes, de
rosetas como sóis, e depois duma rotunda
saùdação
estendeu-lhe com solenidade aos pés o
poncho, por esta rústica
homenagem fiel intérprete
da consagração indígena ao seu
triunfo.
Neste fremente e alto côro apoteótico Maria
Mercedes sómente fez excepção. Quando,
na
quente raçaga ainda das últimas
ovações, o Silveira
demandava com ingénuo alvorôço o seu
aplauso, ela acolheu-o com reserva e festejou-o
parcamente; e insensível a tanto prestígio, num
deliberado propósito de afastamento, de frialdade,
de indiferença, todo o resto da tarde,
depois, e ainda ao jantar, e pela noite adiante,
foi para o burlado vencedor, de poucas horas
[312]
antes, dum cerimonioso alheamento e duma
secatura implacável, naquele seu ar distraído
e enfadado mantendo-o a inexorável distância...
Ao passo que, com uma
coquetuela
vulgar,
se desentranhava em atenções, galanteios,
donaires,
mímicas de sedução e
adoráveis preferências
para com o atónito Belisário, que,
exultante e feliz, na inverosímil
radiação do
seu espanto, tinha a préga lívida das
pálpebras
aquecida por um riso desvanecido e amiúde
passava ufano pela calva precoce os dedos trémulos.
Na breve e jocunda sucessão dos dias, depois,
foi preocupação dominante a
preparação
dêsse festivo programa para o baptismo religioso
da
estancia. Maria Mercedes era a
incontestada
Egéria do movimento. Tomada de
iluminado e impressivo entusiasmo pela realização
da sua grande idéa simbólica, tudo ela
ardida e metódicamente concertava, planizava,
distribuía, tudo ordenava e impunha, no
inflexível
dogmatismo derivante do seu prestígio,
com uma impetuosa tenacidade que fazia o seu
próprio espanto e era o acendrado regosijo do
séquito amigo. Invariávelmente ela agora, com
uma pontualidade burocrática, logo às primeiras
horas da manhã descia ao seu escritório de
ocasião, instalado na biblioteca, e aí, mais ou
menos, trabalhava indefêssamente o dia inteiro.
[313]
Sob a sua imediata inspiração, em grandes
fôlhas de cartolina, Belisário riscava escalas,
fazia
alçados, córtes,
projecções, esquissava planos.
De funções mais modestas, o Silveira
secretariava,
anotava o rol das despesas, expedia
as requisições, fazia a
correspondência. Jorge
comunicava as ordens e distribuía o serviço
directamente pela famulagem, e era a pessoa
indigitada para trasladar-se à capital, dada a
hipótese de alguma missão de
confiança. Por
sua banda pai Saavedra, atenta a relativa invalidez
própria da idade, e bem assim a mulher e
a filha, tinham a incumbência de fazer da estranha
e inusitada festa, pelo bronco populacho
dos arredores, uma elucidativa e suave propaganda.
E ao auspicioso gesto e sob o alado impulso
dessa fada irresistível, todos trabalhavam
com ardor, acêrto, decisão e entusiasmo igual.
E era de ver como esta imprevista intromissão
de trabalho ligeiro e jovial na grossa labuta habitual
da
estancia, longe de destoar, por
inecessária
e fútil, em vez de lhe trazer qualquer ralento
dispersivo, antes ao contrário com ela se
enquadrava idealmente, e como que insuflava
um protector alento de consagração espiritual a
todo êsse utilitário e rasteiro desparramar de
produção e de vida.
Ficou assente que, na manhã do santo dia
aprazado,―um domingo,―se procederia à
bênção da imagem votiva da Virgem,
padroeira
futura da
estancia; pela tarde seria
a sua condução
processional té ao estilisado nicho erguido
[314]
ao abrigo da umbela majestosa do venerando
ombú; à noite,
iluminações, fogos de
artifício, arraial e grande concurso cosmopolita
de canções e danças populares, com
prémios
em dinheiro, instrumentos agrícolas,
registo,
verónicas, viandas e
guloseimas. A primeira
notícia da sagração da
estancia tropeçou
naturalmente num ambiente hostil, quando começou
de circular pela redondeza. Contra a sua
realização o cego rotineirismo e os
atávicos preconceitos
dos naturais ergueram-se em alvorôço,
por um supersticioso alarme sacudidos no
seu torpôr de séculos.―Que peregrina
idéa era
esta agora de trazer santos de igreja p'r'ali? e
pô-los, p'ra mais, ao abrigo dessa odiosa árvore
de desgraça e de ruína? Era uma heresia, um
absurdo, um desafio sacrílego ao Céu. Podia
redundar em azar p'ra todo o campo em roda...
Era uma iniqùidade mais dêsses abominados senhores
do vélho tempo, que não podendo já
privá-los
da liberdade, vinham afrontosos a derrumbar-lhes
as crenças. Seria uma calamidade.―Era
assim como às tardes pelas
pulperias, nas
recolhidas horas da sésta, à roda vinolenta do
balcão e de mesa para mesa, de grupo para
grupo cortando a cada instante o giro vago da
conversa, chispavam vivas e inflamadas, quáse
unânimes, as frases de acre censura, os votos
de protesto, os conclamas de revolta. E tambêm
pela calada cúmplice da noite, no ignorado
mistério de alguma
tapera
distante, maus
elementos campesinos havia que, incitados pelos
[315]
raros
montoneros e
churriadores, corriam
a reùnir-se em clandestinas conspiratas, e ferozes
e estúpidos, o pulso peludo apertando o
machete vingador, aí
tramavam desforços violentos,
represálias subversivas; por fim, concordes
em que uma solução radical seria assaltarem
de golpe o jardim da
estancia e
abater
pela raíz, destroçar, fazer em fanicos o
fatídico
e arrogante
ombú...
redonda, rasamente.
À medida porêm que, na
estancia metamorfoseada
como por encanto, as linhas ornamentais
se erguiam e no ar doirado se debuxava
o anúncio jovial da próxima festa, paralelamente,
todo aquele fermento de rebelião latente
se apagava e se sumia. Vinham os bravios
conspiradores da véspera, e, ante a evidência
promissora do facto, grado a grado capitulavam,
imobilizados primeiro numa paspalhice alvar,
curiosos e interessados a seguir, e por fim
levados de vencida nessa onda estonteante de
alegria. A realidade sugerente do prazer tinha
nas suas almas rudimentares e famintas maior
efeito que a catequese teórica dos Saavedras.
O certo foi que, por virtude do capricho inventivo
de Maria Mercedes, a patriarcal
estancia
agora perdera todo o seu ordenado e pacato
aspecto antigo. A cada momento ali um afadigado
enxame de obreiros voluteava incessante,
não só fóra, pelas
imediações, formigando
em manchas de atento e aplicado ardor,
como tambêm, do gradeado a dentro, pisoteando
os tenros canteiros do jardim, revolvendo
[316]
do
patio a lisa areia,
invadindo os quartos,
encostando escadas, verrumando, parafusando,
martelando, encavalados pelas paredes, debruçados
da
azotea. Esta sua dispersiva
ânsia de
movimento a cada passo era cortada pelo pejamento
inerte duma abundante farfalha industrial:
tubagens, cordas, arames, pás, alviões,
pêras eléctricas, chumbo em blóco,
ferros em
brasa, metais luzentes, destroçadas rumas de
barricas e caixas de lata estripadas. Sobrelevando
aos prosaicos ruídos habituais do recinto,
de tôda esta batida sonora soltava-se o
ritmo sadio e folgazão dum como cântico de
vitória. E do mesmo passo a mãe-terra aparecia
tôda fendida e revôlta, cortada em tôdas
as direcções por uma anastomose de sulcos
ridentes
e húmidos, aberta com prodigalidade
em ruturas serpeantes,―o que fazia o infantil
regalo de Dorita, todo o dia rojada sôbre a
frescura plástica do sólo, embodegada e suja, a
«fazer casitas».
Para a limpa execução dêsse trabalho
delicado
e novo, tinham vindo da cidade carpinteiros,
sambladores, polidores, torneiros, electricistas.
E a favor do tempo se foi a garrida
e abundante decoração gradualmente
definindo.―Uma
cerrada fieira de lâmpadas contornava
nas suas linhas essenciais a arquitectura sóbria
da residência, correndo em dupla fita ao
longo da cornija, cingida aos relevos terminais
do
hangar, marinhando em
hélice pelas colunas.
Uma espelhada cinta idêntica de vidros
[317]
coloridos rodeava por inteiro o gradeamento
alto do jardim, e pelo interior dêste, depois,
em caprichosa profusão seguia a circuìtar e a
derramar-se em lacetes numerosos, riscando
troncos de árvores, desenhando globos, estrêlas,
rendados, franjas, vestindo e pintalgando
o ripado fresco dessoutra floresta de gongóricas
pirâmides que em farta sementeira se escalonavam
pelo recinto. Havia mais, ali, de
árvore para árvore, de poste para poste
lançados
com elegância, grossos festões de buxo
e sanefas berrantes de papel de côr; e na inefável
palpitação do ar batia uma alacre
trepidação,
compacta e esplendente, de emblemas religiosos,
de laços, flores,
pompons
e bandeiras.
Fóra, pela intérmina expansão do
campo, alinhavam-se
extensas fiadas de tarimas tôscas,
feitas em madeira clara e resinosa, adrede improvisadas
para que à epicúrea onda da multidão
elas pudéssem ser, cumulativamente, fácil
estendal para a comida e cómoda estância
de repouso. E no ponto culminante, ao alto,
protegida pela enramalhada concha, tôda em
torcicólos gigantes, dessa atormentada árvore
secular, já nos últimos dias luzia suas
inéditas
galas um lindo nicho baldaquinado, em equilíbrio
sôbre um alto lenho prismático, tombado
ligeiramente, à moda veneziana, e entalhado
em duro roble, com porta de cristal e um rico
lampadário de bronze à frente suspenso.
Esse aprazado domingo amanheceu, por
sorte, um encanto. No azul puro e diáfano
[318]
do céu, peneirado duma subtil poalha de oiro
que era como uma alvorada de bênçãos,
apenas
alguns farrapitos de nuvens, brancas e altas
como asas de anjos, erravam levemente...
E desde as primeiras horas que, algarreira e
abundante, a multidão começou
afluíndo, todos
em salteiros grupos endomingados,―
con sus
trapitos de cristianar,―fundidos no guloso
ímpeto do mesmo apetite místico e
folião, porêm
distanciados pelo traço diorâmico dos costumes
e pelo desenho ideal das crenças. Vinham
em alegres volatas, em chireantes golfadas,
em cordas de riso uns após outros vitoriando,
cantando e dançando, como se nesse
dia de glória a amplidão ridente da planura se
vestisse duma grande e viva alfombra cosmopolita,
realçada em matizes de tôdas as latitudes,
de todos os países, de tôdas as
religiões,
de tôdas as raças. Assim decorreram
entre festivas e ingénuas pompas as anunciadas
cerimónias do dia, cingidas no atropelado
abraço de tôda essa grossa onde espectante.
A bênção comovedora da Santa e a sua
processional
trasladação, depois, àquele
improvisado
altar da selva, foram, a um tempo, duas maviosas
sinfonias de movimento e de côr, e duas
tocantes demonstrações de lisa fé e
piedoso entusiasmo.
A vitoriosa culminação da festa estava
porêm reservada para mais tarde, quando, ao
cerrar da noite, aqueles quantos milhares de
pequeninos globos, serpeando como vermes de
fogo, saltando, faíscando aqui e ali, errantes e
[319]
vagos como pirilampos, começaram de acender
de roda a sua aleluia policróma. Um outro
dia apontava agora, suave e discreto, não cortado
já na prosaica nitidez das evidenciadoras
flamas do astro-rei, porêm pela atenuada sarabanda
dessa infinidade de minúsculos sóis arredondado
em claridades de sonho, sôlto e ideal
campo aberto, agora, às fugas da
imaginação,
aos arroubos do amor e aos vôos da poesia.
Era todo o vasto e bigarrado recinto dos seus
fundos de sombra jorrando esplendentes fontes
de luz, palpitando e ardendo numa estonteadora
profusão de lumes caprichosos, que
definem linhas arquitecturais, que festoam silhuetas
de árvores, que espirram para o espaço,
que da relva rompem ou no ar se baloiçam
em largas figurações de fantasia, e em que
o uso das novas lâmpadas de fio metálico
multiculôr
dá motivo às mais deliciosas
projecções
de côr, às nuanças mais
fantásticas e imprevistas.
E por sôbre tôda essa
orquestração lampejante
é ainda e sempre a carcassa mégaloide
do vélho
ombú
que mais destaca e mais realça,
todo inflamado em recamos de gala, casquilho,
remoçado agora e como que ufano do seu destino,
iluminando afável e protector a passividade
muda do deserto,―o polipo colossal das
raízes, que poderosas esgarçam a terra, mosqueado
de tijelinhas de côr, como tentáculos
luminosos, no amplo seio amostrando com orgulho
e abrigando com carinhos de avoengo o
nicho tremeluzente, e pelo atormentado e largo
[320]
bracejar da ramaria o múltiplo rosário das
lâmpadas
pingendo, facetadas, límpidas, fulgurantes
como lágrimas de alegria.
Entretanto pela ampla e redonda extensão
que êste luaceiro de festa abrangia, apinhada
e confusa a ronda do populacho crescia, amontoava-se...
o vago marulho da sua agitação fanfurriava
em ritmos bárbaros, vibrava em cânticos,
era avivado em singelas dolências pela sublinha
sensual das tocatas e descantes... e a
quando em quando, sob a estralada esfusiante
dos fogos de artifício, à flor dêsse
revôlto mar,
reverberava então cá em baixo, em pinceladas
goyescas, por instantes, a floresta alvar das suas
cabeças em delírio.―Fazia
aprazívelmente o
Silveira o interessado circuìto do recinto, quando
súbito, na compacta maré montante de figuras
que do exterior vinham ávidas colar-se à grade
do jardim, lhe pareceu distinguir um rosto seu
conhecido. Irresistivelmente, adiantou-se... e,
com efeito! era Luísa, a linda e fresca morenita,
que na sua adorável rusticidade ali viera poisar,
e que enlevada e imóvel, por um alheamento
de indizível beatitude os sentidos presos e a
atenção suspensa, no perfil garboso e
enérgico
do seu bravo defensor cravava encantada os
grandes olhos negros.
Então o Silveira, entre lisonjeado e surprêso,
com uma doçura cantante na expressão
aproximou-se.
―Ó Luísa! A minha querida amiguita
tambêm
por aqui?... Como vais tu?
[321]
Por única resposta, ela teve um breve sorriso
de êxtase a encrespar-lhe os lábios, e logo,
còrando ligeiramente, baixou os olhos. O Silveira
tornou:
―Que bôa idéa tiveste! Mas que fazes
aí
assim? porque não entras?
Sem articular palavra, sem se mover, Luísa
manteve a mesma atitude retraída e humilde.
―Anda!―carinhoso e afável o Silveira
insistiu.―Não
queres comer?... não vens dançar?
Luísa movia a cabeça negativamente, fechada
sempre na mesma inércia contemplativa, sem
romper o seu mutismo.
―P'ra que vieste então?
Ela agora por fim, com voluptuosa pausa
volvendo a abrir as brumas pálpebras, e na cálida
demanda do seu galhardo interlocutor o
fogo latente do olhar chispando, numa velada
ternura balbuciou, singelamente:
―
Para verlo...
O Silveira sorriu e num estremeção de vaidade,
medíocremente sensível à
tímida e incontida
expansão da rapariga, insinuou a mão pelos
ferros e acariciou-lhe ao de leve a face tostada
e redonda.
E partiu a seguir, por que em cima, junto à
residência, uma salva de morteiros anunciava
o início do concurso coreográfico, e
êle fazia
parte do júri. Então a pintalgada e densa coluna
das várias músicas e bailados que insofrida se
achava a postos, começou montando a
ladeira
[322]
suave do jardim para ir marcialmente desfilar
e luzir seus méritos frente ao estrado posto
a meio da galeria,―ante a mirada crítica de
Maria Mercedes, tôda de branco,―e seguindo
num grosso e infindável coleamento, apartados
por castas, distintos pelas côres, opostos pelos
ritmos, todos cantando, vibrando, saltitando,
numa grande coreia dionisíaca que era a encantadora
revivescência de algum atrevido
fresco
pagão, na espontânea impetuosidade e na
vida instintiva do seu movimento afirmando a
irmanação genésica do homem com a
Natureza,
das almas com as coisas. Foi primeiro o
tango, êsse gracioso hino da
lascívia, impregnado de
malícia picaresca, uma dança de
perdição feita
de lânguidos requebros, a um tempo trágicos e
sensuais, exprimindo líricamente a
conjunção fatal
do amor e da morte; depois as corriqueiras
vidalitas, acompanhadas a viola e
tamboril, crónica
leve e sugerente de façanhas guerreiras, de
zombeteiros chismes e cómicas aventuras; a seguir,
os
tristes, lembrando os nossos
fados, gemendo
um ritmo atormentado e dolorido, quáse
religioso, que dá a vaga sensação do
mistério,
da solidão, do infinito; as
jotas e
sevillanas no
seu saracotear febricitante, a
tarantela no seu
académico balanceio, o
trepák no seu simbolismo
ingénuo; e o desenvôlto
gato, o mesurado
pericón; as
baturras,
soleares,
farandolas,
chulas,
fandangos... e quantos
mais.―Durante horas
seguidas, assim na calma benéfica da noite,
sob o jôrro delirante dos aplausos e na sua
estúrdia
[323]
ronda aquecendo a fria majestade do deserto,
se agitou dançando tôda essa corda guizalhante
de rústicas melopeias. E quando já os
primeiros alvores da manhã clareavam o horizonte,
ainda, na debandada final, a sua interminável
cola sonora se via impetuosa e louçã,
desparramada
a rabejar pelos caminhos.
IX
Um escasso dia volvido apenas sôbre a festa,
Belisário regressou à metrópole.
Seguiu-o no
intervalo de mais um dia o Silveira, cuja existência
ali, depois do seu assinalado triunfo hípico,
nas últimas semanas, decorrera tôda batida
em alternâncias de cruel incerteza, assaltada
de imprevistas dúvidas, cortada em antíteses
absurdas, numa espectativa mortificante. As
flutuações coquetas, incessantes, da sua
«bôa
amiga» Maria Mercedes, cujas típicas
excelências
tam vivamente haviam sacudido o seu temperamento
de fogo e vincado o seu carácter
mulherengo; êsse jôgo caprichoso e perverso
entre a frialdade e a exaltação, entre o espanto
e o desdêm, entre o enfado e o carinho, desconcertavam-no.
Inelutávelmente, corrido de
vaga humilhação, êle reconhecia em
Belisário
um primaz competidor. Por sôbre aquele aspecto
derrancado e turvo, a despeito do podrido
[326]
descalabro dêsse físico todo
escórias e
ruína, o Silveira, forte embora da sua virilidade
radiosa e exuberante, achava-lhe superioridades:
era déstro no diálogo, fino e leve, bem
falante, brandia a ironia como um florete, vestia
com mais elegância. Por isso a sua obrigada
e constante freqùentação, ali, com
êsse émulo
temido, e frente a frente os dois do ídolo do
seu comum cuidado, tornava-se-lhe uma coisa
irritante, molesta, dolorosa, por vezes intolerável.
Contudo, retirar antes dêle seria uma
deserção, uma cobardia. Foi suportando... Logo
porêm que o afastamento voluntário do rival
arredou a emergência dessa hipótese deprimente,
o Silveira abalou tambêm, na sua incontida
ânsia de emancipar-se duma situação
por demais incómoda, violenta, e, perante a
pungente ampliação do seu despeito... porventura
ridicula.
Tendo chegado a Buenos-Aires ao entardecer,
acolheu-se logo ao hotel, jantou e nessa
noite não saíu. Apreensivo e triste, sentia uma
grande necessidade de isolamento... e cedo
se encerrou no quarto e abandonou-se à tortura
voluptuosa das suas íntimas
cogitações,
cujas mórbidas volutas o surdo embalo dos vagos
rumores da Avenida, em baixo, favorecia.
Na manhã seguinte ergueu-se tarde. Aquele
destemperado vibrar dos nervos impunha-lhe
agora um preguiceiro e salutar repouso. Porêm,
apenas terminado o almôço, picou-o um
vivo apetite de expansão, de arejo, de movimento;
[327]
precisava desabafar... queria falar, mexer-se,
descompôr alguêm, ver caras conhecidas.
Acendeu pronto o cigarro, tomou o chapéu
e saíu logo, em demanda do amigo Azeredo,
que mudára de pensão e residia agora ali
perto do hotel, na
calle Libertad, a
não mais de
quatro
cuadras.―Era um pequeno
prédio antigo,
sem porteiro e sem ascensor. O Silveira
teve que subir uma extensa escada de mármore,
em caracól, quáse às escuras, e
encontrou-se
súbito num modesto e exíguo
hall, pavimentado
a baldosas negras e verdes, guarnecido
por uma vélha mobília de vêrga, globos
de vidro estanhado, missangas,
crochets, enredadeiras
e vasitos com plantas. Veio-lhe ao encontro
o dono da casa, um aparatoso andaluz,
de alentada envergadura, loiro e obêso, o
pijama
e calça de riscado vestidos sumáriamente
sôbre a pele, e os felpudos pés nus mal contidos
nas babuchas.
―O sr. Azeredo ainda estava à mesa.
Quiere Usted pasar?...
Acedendo curioso ao afável convite, o Silveira
seguiu o solícito introdutor ao longo dum
corredor tristonho e esguio, com anteparo de
zinco sôbre o saguão, e ao cabo entrou no
comedor, uma crepuscular peça oblonga, tomada
quáse totalmente pela mesa, em tôrno da
qual, havendo cessado de comer, os seus seis
convivas, guardanapos depostos e arredadas as
cadeiras, em amena chalra, num baralhamento
pelintra, familiarmente se esqueciam. O Azeredo,
[328]
mal que viu o amigo, ergueu-se de salto
a abraçou-o efusivamente.
―Oh, João! meu grande vadio... Finalmente!
Cuidei que te ficavas por lá...―E
numa palmada cordeal sôbre o ombro, indicando
a cadeira que, ao lado dêle, a
mucama
havia pronto achegado:―Senta-te... Que magnífico
que vens!
Em seguida, com aquele seu invariável ar
salteiro e risonho, o Azeredo fez em globo a
apresentação do amigo aos outros comensais,
com uma sublinha especial, é de saber, perante
a dona da casa, à direita da qual êle
tinha o honroso privilégio de sentar-se,―e que
era uma grossa e bem fornida vasca, quadrada,
ruiva, de epiderme branda e leitosa,
viúva havia ano e meio, e todavia agora ligada
maritalmente ao andaluz... por conveniências
domésticas. À direita do Azeredo sentava-se
uma joven corista do
Avenida,
miudita, clara e
franzina como um mimo de bazar, os olhos maquilhados
fortemente, esborifado o cabelo, e na
morbidez cansada da expressão saltando em
contraste provocador o narizito petulante. O
nariz era tambêm a única
feição acentuadamente
vincada, nessoutra vaga e estirada figura
espectral que tinha logar à mesa em frente dêle,
à esquerda da dona da casa,―um incompreendido
violinista de café-concerto, a pele como
pergaminho, os músculos como arame, rechupado,
lívido, transparente. Mais à esquerda,
havia um acomodatício e bronco pintor de taboletas.
[329]
Finalmente, com depreciativo orgulho
posta, e sentada como por demais, entre
êstes dois últimos, aparecia uma gorda e casquilha
quarentona, com o ar presunçoso e taful,
pastosa, feia, arrogante, que era a mais insensata
e hilariante personificação do burlesco;
vestia uma curiosa bata ornitológica, tôda
carregada
de passamanarias, vidrilhos, contas e
plumagens, bigarrada em côres de papagaio,
em tons berrantes; a testa era rudimentar, e
uns desastrados laivos de água oxigenada sarapintavam
cómicamente a maranha abstrusa
do cabelo pegajoso e sujo; pela fartura pendente
do colo moreno havia por igual, às dedadas,
a lambugem clara dos cosméticos; e à
raíz da face opada rasgavam-se uns grandes
olhos brilhantes mas apáticos, na sua vítrea
imobilidade reflectindo uma fixidez obtusa de
sáurio, uma credulidade estúpida.
O Silveira compreendeu num relance que
esta presumida e grotesca marafona era naquele
momento o centro burlão das atenções
e o tema desopilante da conversa. Com efeito,
não tardou que o amigo lhe não dissesse,
apontando
com solenidade a exibitiva carcassa em
frente, numa irónica reverência:
―Chegas na melhor ocasião. Tenho o prazer
e a honra de te apresentar a
señorita Calliope
Cernadas, uma joven e distinta cantora,
próxima debutante no
Colón...―E com um
patente ar zombeteiro, num gesto de solícito
apoio aos circunstantes, acentuou:―Em plena
[330]
primavera da vida, como vês... Vinte e cinco
anos,
no mas. Um flamante
embrião de artista
e um coração inabordável!
Não é certo?...
De roda houve um bem simulado cabeceamento
de convicta anuência, enquanto a embaída
vítima trejeiteava desvanecidos requebros,
em meio do côro hilariante da assistência. E
para ela agora com a mesma urbana solenidade,
o Azeredo, indicando o amigo:
―O meu amigo e patrício João da Silveira,
solteiro, rico, poeta... O homem que lhe convêm...
Um grande fidalgo e um grande enamorado.
No mais caricato arremêdo de êxtase, a enxundiosa
Calliope revoluteava a apática inexpressão
dos olhos, mordia o lenço, parodiava
atitudes infantís e motêtes ingénuos.
Entretanto,
na sua apologética parlenda o Azeredo
tornou:
―Uma voz de oiro!
―Dito por todos os mestres,―confirmou
Calliope com fatuìdade.
―Cinco anos de Conservatório e dez de
lições
particulares.
A inocente visada teve um salto de despeito.
E a seu lado o violinista, coçando deliciado a
nuca, piscando um ôlho:
―Não se pode dizer um talento muito espontâneo...
Porêm, vagamente apiedado, o Silveira:
―Deve ter começado de muito criança.
―Era tudo fôrça da
vocação...―aclarou o
[331]
Azeredo, no mesmo tom escarninho:―Quando
largou o
biberon, já
solfejava.
Em volta da mesa, agora, o riso estalou
sem rebuço. E o avantajado andaluz, que acendera
o cachimbo, fazia, mudo, sorridente e matreiro,
o giro atento da casa.
Mas de repente o Azeredo, consultando o
relógio, ergueu-se.―Eram horas de voltar ao
escritório:―E saíu rápido, com o
amigo, conduzindo-o
familiarmente ao seu quarto singelo e
claro, com varanda sôbre a rua. Ainda podiam
quedar-se uns minutos. Acendeu o cigarro e
sentou-se, na préga trocista dos lábios
apagando-se-lhe
as derradeiras vibrações por êsse
jôgo
desopilante com a
señorita Cernadas. O
Silveira
perguntou-lhe―que
bolha
fôra aquela de
mudar de pensão? E com ar enfadado, sucudindo
os ombros, o Azeredo explicou:
―Aquilo lá era uma maçada, menino! Imagina:
a tal viúva chilena dava-me uma sorte
completa... e que rica mulher! impetuosa, louca,
insaciável! Porêm o lamecha do caixeirola,
perdidamente
embeiçado por ela e sem sorte, tudo
era voltar-se contra mim, dardejava-me olhares
de desafio... um riso! fazia-me arremessos... E
à sua arisca Dulcineia escrevia então umas cartas
lacrimosas e tétricas, tresandando bafio
romântico,
nas quais havia desgrenhados apelos
ao refúgio amargo da morte, e por entre cujos
rábidos arrancos tremeluziam ameaças de
vingança.
―Que te importava a ti?
[332] ―Não, mas é que ao mesmo tempo essa
pobre rapariga
tanguista, que era
uma triste
lambisgoia, dizia-se apaixonada por mim e daí
seringava-me a todo o momento, metia-me bilhetinhos
pelo buraco da fechadura, espiava-me,
com scenas de ciúmes... Uma carraça, uma
cataplasma, um tédio! Uma noite, comeu as
cabeças tôdas duma caixa de fósforos e
foi naquela
casa um reboliço... vomitórios,
fricções,
prantos, desmaios... tivemos que levá-la à
Assistência.
―És o terror das pensões baratas.
―De sorte que eu então, p'ra evitar uma
dupla tragédia, tive um iluminado rasgo de prudente
decisão e raspei-me. E aqui, estou bem.
E uma casa
reinadía... O
diabo da patroa
joga como uma danada nas carreiras, e de cada
vez que ganha, é um deboche de
champagne
com os hóspedes e as amigas.―E logo num
tom de desafectada cordealidade, todo dobrado
para o amigo:―E tu por lá, meu maganão?...
O Silveira desfiou regaladamente a narrativa
entusiasta e louçã da sua breve estada no
campo,―a imensidade lendária da
pampa, a
luz, a côr, a paìsagem, o inéditismo
claro dos
aspectos, a rude singeleza dos costumes. Espraiou-se
em gratas referências ao hospitaleiro
carinho dos Saavedras, enaltecendo de
preferência, em enternecidas frases, essa doce
e encantadora figura de D. Teresa, na sua
aberta simplicidade, na sua bondade inverosímil.
[333]
Com um risinho misterioso, o Azeredo aventurou:
―Sim, sim... Ainda tu não sabes quanto
ela é de boa!
―Então?...
―É uma sogra rara, única, paradoxal.
―Como assim?
―Sabes que ela tem uma filha casada,
agora em Paris, a qual lhes deu já um netito,
êsse
guapo muchacho, o
Eduardo, que é a exclusiva
adoração do avô. Ora o pai do pequeno
é um perdulário, um sem vergonha, um
sensualão,
um estroinaço impenitente. Pois esta D.
Teresa, na sua louca dedicação pela filha, tem
a santa ingenuidade de assegurar uma mesada
ao genro só p'ra que êle, com as suas
calaveradas,
não dê desgostos à mulher.
―É bôa! Era uma sogra assim que me
servia.
―Não haverá duas na terra.
A seguir, o Silveira, depois duma pausa,―e
como quem tímidamente retarda o defrontar
com uma dificuldade, ou voluptuosamente dilata
a fruìção dum prazer,―referiu-se a
Maria
Mercedes, pastichou-lhe em tintas de vivo
entusiasmo o deslumbramento da beleza física,
apontou em vagas e trémulas linhas de incerteza
a complicação desconcertante do seu perfil moral.
E nesta empolgante análise retrospectiva,
a despeito do tom deliberadamente ligeiro dos
seus conceitos, a cada momento a comoção
traía-o. Inadvertido e quente, descobria-se. Um
[334]
sôpro de íntimo incêndio trazia-lhe a
alma
aos lábios, ao ensaiar a turbadora
evocação
dêsses formidáveis episódios, dessas
horas atormentadas
e profundas, relâmpagos de enlêvo,
eternidades de dôr, delícias dum instante.
O Azeredo, dando-se grado a grado conta
da situação, escutava-o em silêncio,
num crescendo
de apiedada estranheza, com aborrecimento,
com quesília, com desgôsto. E por fim,
tomando o chapéu para sair, com a bôca severa
e os cílios graves, aconselhou:
―Tem-me conta com essa
gaja...
Começa
por te derreter os miolos e acaba por te fundir
a algibeira.
―É rica.
―Não importa. A esta gente aqui está-lhes
na massa do sangue:
estafarem o seu
e o alheio.
Voltaram naturalmente a juntar-se naquela
tarde os dois amigos. Jantaram na
Rôtisserie
Sporstman, e foram ao teatro
San
Martin, desemborrar
um pouco os nervos na contemplação
da mímica petulante e lúbrica da Pastora
Império. No dia seguinte, esperto e ligeiro,
deu-se pressa o Silveira em ir fazer o giro matinal
de Palermo, onde já sob a claridade molhada
do ar, na renovação da temporada elegante,
um cordão de deliciosas silhuetas dandinava
pela orla escovada das
pelouses, e a
envernizada frescura do asfalto se emplumava do
[335]
trotar garboso das amazonas. Sentia-se bem...
Reganhava-o o sugestivo encanto da vida ampla
e fácil da cidade. Naquele doce ambiente de
agrados e belezas o seu estimulado ser tinha
um aprumo salutar... a vontade tomava raízes,
a sua galharda juventude frondejava em ímpetos,
sentia o pensamento inerte, embevecida a
alma, o coração cativo.―Buenos-Aires, bem se
dizia... era o Paris da América, seguramente!―Vinha-lhe
o dulceroso apetite de quedar-se
esquecidamente ali, nesse adorável ninho da felicidade,
essa esplendorosa sucursal do Paraíso,
deslumbrante e imensa caravançara onde à compita,
vinha estrelar-se o escol das civilizações,
onde émulos se davam cita os génios de
tôdas
as raças, o melhor dos progressos, das grandes
conquistas morais e materiais de todo o
mundo... ali, o privilegiado solar da fortuna, da
abundância e da harmonia, a terra das mulheres
de lindas bôcas, de rostos de linhas puras
e suaves, tendidas com nobreza.
Duma das vezes, ao desembocar na
Avenida
das Palmeiras, cêrca do lago, pareceu-lhe
distinguir
na sua frente, entre o pintalgado baralhamento
da quádrupla fita de veículos, uma
figura sua conhecida. Era com efeito o grosso
e ponderado Mafiori, que descia dum aparatoso
Peugeot, e mal que reconheceu o
Silveira, veio
logo adonde a êle, importante mas afável, a
oferecer-lhe as duas mãos e a perguntar-lhe―como
ia. Cortês e solícito por igual, pediu-lhe
tambêm o Silveira informações dos seus
negócios.
[336]
O marquês estava remoçado, parecia feliz.
Os olhos flácidos tinham mais brilho, a
vasta e epilada testa desanuviára, e tôda a face
rosada e redonda florescia, erguida pela saúde
ou dilatada pelo prazer. Às interessadas perguntas
do amigo, êle sorriu.―Bem! muito
bem!―E com a sua fidalga e resignada bonomia
aclarou, encolhendo os ombros,―que
aquela forçada abdicação dos seus
fóros nobiliárquicos
trouxéra-lhe sorte, afinal. Estava fazendo
bastante negócio. Fizera uma bôa venda
aos Spantuzzi, outra aos Ribolto, estava alcatifando
de novo a casa tôda dos Arriola,―um
palácio!―e tinha uma grande encomenda para
o
Jockey-Club.
E sempre com dignidade, uma ligeira sublinha
de irónico desdêm a encrespar-lhe os
lábios:
―A esta hora, já as venerandas ossadas dos
meus maiores hão-de haver estremecido, várias
vezes, de indignado horror, nos seus ricos mausoléus
lavrados. Uma indignação de mau gôsto,
no fim de contas... Porque outra coisa não há
a fazer nesta terra, que com todo o seu exibitivo
pedantismo não passa duma mercearia colossal.
Tudo mais ou menos se negoceia aqui:
é uma questão de rótulo. O
segrêdo está na
arte de embair o freguês a encarecer a fazenda.
Depois, num gesto de paternal incitamento:
―Porque não faz o mesmo, meu amigo...?
Súbito, como na onda vaga da multidão
descortinasse
algo que o interessava, despediu-se
[337]
de improviso, embrulhando banais desculpas e
rematando amável:
―Eu continuo no
Plaza. Venha um dia
almoçar
comigo.
E êle que segue dissimuladamente na peugada
duma mulher grande e loira, de idade à
primeira vista inclassificável, artista lírica em
disponibilidade ou
demi-mondaine em
decadência.
Certo foi que a prática significação
daquele
seu conselho calou suasiva e funda no ânimo
inconsistente do Silveira.―Seria realmente uma
coisa acertada, sensata, oportuna, tentar um negóciosito.
Porque não?... Já várias vezes
êle o
havia pensado: fazer como tôda a gente. Êle
trouxéra consigo uns contitos de réis,
p'r'ó que
désse e viésse... e porque não
procurar engrossá-los?
de preferência a desbaratá-los p'r'aí
estúpidamente, em aventuras banais com mulheres
ou jogando à tôa na roleta e nas carreiras?...
E, ainda, mais a dura preocupação dos
interêsses monetários poderia ser
quiçá um derivativo
salutar, e ter a virtude de pelo seu
áureo deslumbramento dissipar moles
inclinações
piégas e furtá-lo a
exaltações perigosas,
como essa agora da diabólica
Miquêtas... Vá
feito! Era o caminho a seguir.
Desta forma, o
Silveira,
sensível
ao contágio
do mercantilismo ambiente, perdido, como
tantos outros, na embriagadora miragem dum
engrandecimento rápido e retumbante, nos dias
subseqùentes dava-se com afinco à leitura dos
[338]
anúncios comerciais dos diários, concorria aos
leilões, era um assíduo freqùentador
das
vitrines
dos corretores, onde em taboletas relumbrantes
de emissões de títulos, vendas de lotes
de terras e quejandas alicantinas, se acenava
aos incautos com fortunas fabulosas. A intervalos,
as venusinas predilecções do seu
carácter
reganhavam o natural ascendente, e êle então
pensava em visitar os Wimeyer, que contudo
ainda não haviam regressado do campo. Queria
tambêm voltar a ver os Améglio; porêm
aquela cavilosa duplicidade de
Mrs.
Edith irritava-o...
Era porêm evidente que, por momentos,
a branca crôsta da sua alma metalizava-se.
Já jogava em fundos e entrára com
capital para a fundação duma
Sociedade Internacional
de Seguros. Êle era o primeiro a fazer
troça de si mesmo, desconhecia-se... e com familiar
abandôno comentava, perante o Azeredo:
―Tem graça! eu tam influido agora com
negócios... coisa que não é nada o meu
feitio.
E meio incrédulo, o amigo:
―Não te dura muito!
Contudo, o Azeredo, vagamente scéptico
mas no fundo de acôrdo, entendia que sim, que
fazia muito bem! porêm tinha que precaver-se
e ter muito ôlho contra essa imensa praga de
estafadores e meliantes... Ao mais
pintado êles
faziam o
conto do vigario, a cada
instante! Por
isso, que não tratasse senão com gente bem
conhecida.
Havia de apresentá-lo no
Club
Progresso,
onde teria ocasião de relacionar-se com
[339]
importantes financeiros e industriais, com grandes
e autênticos
terratenientes, com fazendeiros
honestos e firmas garantidas.
Entretanto, tôdas as manhãs, com uma pontualidade
de amanuense, o endurecido Silveira
subia a
Avenida de Mayo para ir ver
as cotações
da Bôlsa e em seguida fazer, por
San Martin
e Reconquista, o interessado giro do bairro
clássico dos negócios, dando-se a acariciadora
ilusão de ser já um grande capitalista ou
proprietário.
E ao mesmo tempo alguêm havia
que, com solícita antecedência e uma pontualidade
igual, em face mesmo do seu hotel, da esquina
oposta da Avenida, em plena rua, aguardava
em suspenso a sua aparição e espiava
afincadamente a realização quotidiana
dêste acto
banal da sua vida exterior.―Uma simples
e adorável rapariga do campo, verdadeiro diamante
em bruto, miudita, morena, bem calçada
mas vestindo pobremente, com o ar um
pouco estranho, desageitada, esquiva, em cabelo.
Tinha férvidamente posta a vida, o apetite,
o desejo, na enternecida fixidez dos grandes
olhos negros, incansavelmente apontados
ao portão espelhento do hotel; e, fechada no
exclusivismo da sua mordente inquirição, como
que buscava anular-se para tudo o mais, tímida
e pequena ante o roce brutal da multidão,
furtando-se aos galanteios, repelindo, assustada
e arisca, as propostas equívocas dos que
passavam. Depois, quando a aprumada figura
do Silveira assomava à porta e saía, passeio
[340]
fóra, a caminhar distraídamente, a sua
encantadora
e ignorada espia vibrava ao imperceptível
estímulo dum inefável júbilo interior
e seguia-lhe
humilde na peugada, durante uma ou duas
cuadras, paralelamente; e por fim,
quando se
perdia ao longe, na atropelada onda do movimento,
aquele desprevenido alvo do seu cuidado,
ela por seu turno, à primeira esquina, dobrava
e desaparecia tambêm num relance.
Mais de uma semana, com inalterável precisão,
dia por dia, se prolongou e repetiu êste
jôgo inocente para o inadvertido ânimo do Silveira
absolutamente despercebido. Té que, duma
vez, como êle tivesse que dirigir-se à
calle Vitória,
apenas saíu do hotel cortou direito a Avenida
e veio assim a cruzar-se, quáse ombro com
ombro, com a interessante figurita anónima que
o espiava, e que na sua deliciada confusão, ao
primeiro instante, queria evitá-lo, eliminar-se,
fugir... Impossível deixar de notá-la. E logo
súbito, numa expansão de grata
surprêsa, reconhecendo-a:
―Ó Luísa! tu aqui?...
Tolhida numa vergonha, a gentil rapariga
torceu as mãos, baixou os olhos, enquanto a
frescura virginal da face tôda se conflagrava em
tintas de incêndio.
Abrindo acolhedor os braços, o Silveira interrogou:
―Então? deixaste a
chacra onde trabalhavas?
―
No me pagaban.
[341] ―E teu irmão?
―
Me pegaba.
―Pobrezita! bem digo eu...―bondadoso o
Silveira tornou; e com apiedado interêsse, a seguir:―Fugiste
então e vieste p'ra Buenos-Aires
governar a vida?
Numa tácita aquiescência, muda e indecisa,
Luísa sorria vagamente.
―E gostas?―indagou o Silveira, muito afável;
e como a sua linda desconhecida abanasse
afirmativamente a cabeça, com o vago sorriso
de há um momento aquecido agora por uma
adorável expressão convicta:―E porquê?
Luísa teve uns segundos de comovido silêncio
e por fim, dobrando humilde o busto, com
as abatidas pálpebras seguindo, em baixo, o movimento
dos pés, que em taramelados giros raspavam
trémulos na orla do passeio, murmurou:
―
Porque aqui estoy mas cerca de
Usted...
Pelos arrepiados nervos do Silveira uma
branda emoção correu, mixto fundente de orgulho
e de prazer, de fatuidade e de ternura.
Sentiu-se quebrado, preso... Atingiu-o em cheio
na alma a ingénua confissão, a doçura
sentimental
da rapariga. Naquela tarde havia uma reùnião
de acionistas da tal
Sociedade Internacional
de Seguros, e êle ia agora à
calle Vitória
para ter uma conferência prévia com um
dos membros da Comissão Directiva, pois sobravam
razões para desconfiar que semelhante
Sociedade não passava
duma audaz mistificação,
duma burla descaradíssima, na qual êle
[342]
via já infelizmente a arder o seu rico dinheiro!
Porêm, num pronto, a aparição de
Luísa, ante
a inefável magia daquelas palavritas de oiro,
vencido pela singela eloqùência duma
confissão
tam espontânea e tam formal, tôda a sua grande
preocupação financeira,―uma
preocupação de
enxêrto,―se lhe varreu do sentido... Ao mesmo
tempo, numa tristeza de instinto, fitava com
demora a sua passiva interlocutora, olhava-a
bem, considerava a sua rudeza inata, o exotismo
da sua figura, a miséria do seu arranjo...
e sentia-se vèxado; via-se que não podia
decentemente
quedar-se ali assim muito tempo, às claras,
nesse comprometedor
tête-à-tête
num logar
tam público, nem tampouco acompanhar com
ela. Mas tambêm,―que demónio!―esquivar-se
agora e deixá-la, retribuir êsse infantil abandono
com a indiferença, seria a maior das
ingratidões, uma desumanidade, uma cobardia.
Por isso êle, de repente, cedendo a um cavalheiresco
impulso interior e todo dobrado para
Luísa, olhando-a com carinho:
―Já almoçaste? queres comer?
Por seu turno, Luísa, sem ousar encará-lo,
as mãos juntas erguidas aos lábios e confrangendo
o busto, tartamudeou uns monossílabos
de embaraço. E o Silveira então, adivinhando-a,
tomou-lhe do braço, e com afectuosa decisão,
familiarmente:
―Anda daí!
Internou-se com ela em Vitória, mandou-a
seguir rua abaixo, na sua frente, um pouco a
[343]
distância, em direcção ao Congresso; e
aí dobraram
rápido para Entre Rios, onde entraram
num
bar-restaurant de
ínfima classe, velhacouto
barato de
menesterosos,
rufiões, cocheiros,
chauffeurs,
caixeiros sem patrão e
redobloneros sem
clientela.
Abancaram os dois a uma das mesas mais
interiores, numa discreta penumbra, e, à
aproximação
solícita do moço, dobrado em interrogativa
atitude depois de haver passado maquinalmente
o guardanato sôbre a tábua encardida,
o Silveira insistiu com a suave morenita p'ra
que dissesse―o que queria tomar. E ela, numa
deliciosa hesitação, com a face incendida e os
olhos húmidos, sem acabar de ageitar-se na
cadeira, não atinava igualmente com o que havia
de escolher.―Não queria comer. Passára-lhe
a vontade...―Contudo, após uma laboriosa
inquirição pela hipertrófica lista dos
ágapes em giro, decidiu-se afinal por um chocolate
liviano e
sandwiches. Êle pediu um
Bilz.
E com familiar naturalidade, num singelo abandôno,
algareira, feliz, Luísa foi então contando:―Ela
não andava por'li assim tam perdida
como o seu
querido nenito imaginava.
Já estivera
por duas outras vezes em Buenos-Aires;
a última, quando foi do centenário. Tinha
mesmo aqui uma irmã... E que lá no campo
moíam-na com trabalho e ainda em cima não
lhe pagavam. Guilherme, o irmão, era um desalmado,
um bruto. Ela arrastava assim uma
vida de negra, era certo... mas, em suma, como
[344]
não sabia o que era mundo e não
alcançava a
mais, ia-se conformando... A vélha adivinha de
Castelli lá dizia: que cada um nasce com o seu
destino já talhado. Que lhe havia de fazer?...
Porêm que depois, de repente, nessa terrível
tarde que afinal se volveu p'ra ela numa aurora,
ao vê-lo surgir tam milagrosamente e salvá-la,
sentiu que se lhe abrira qualquer coisa dentro
da alma! como ela não sabia explicar... via e
abrangia agora as coisas por uma outra forma,
compreendia como podia
quererse a
alguêm...
e que a sua verdadeira existência começara
naquele momento, que não mais poderia quedar-se
ali onde a querida imagem do seu rico protector,
lhe aparecia a todo o momento, infiltrada
de saùdade, reclamando-a com império.
Premindo-lhe a mão com doçura, o Silveira
interrogou:
―Mas que te importa a ti?...
E ela, num profundo acento, gravemente:
―
Nada mas me importa en el mundo!
A seguir, por entre as freqùentes olhadas
oblíquas da freguesia equívoca do
bar, intrigada
pelo estranho
accouplement daquele
rico
mozalbete com uma tam
ordinária
piba,
Luísa
continuou desfiando,―que, resolvida a partir,
fôra a socorrer-se com aquela santa senhora,
D. Teresa, a qual lhe deu algum dinheiro e uma
carta de recomendação para êsse
gran comercio
de imagenes que havia na
calle Suipacha, onde
a admitiram como caixeira. Tinha graça! todo
o dia agora a lidar com santos, ela que nunca
[345]
se havia confessado nem comungado na sua
vida.
―Conféssas-te agora a mim.
―
Es que el señor es mi santo preferido.
El
señor y San Antonio.
―Mas então, estando aí empregada, como
é que?...
―
A las once salgo á almorzar. Y yo iba en
una carrera y luego me ponia en acecho, ya
sabe, frente mismo á su hotel. Por suerte algunas
veces mi amor tardaba en salir... Y yo
entonces, despues de verlo y seguido un rato,
como ya no tenia tiempo, volvia apurada á la
tienda, sin comer.
―Que disparate!
―
Es la cosa mas natural... Y no se me
importa: soy de poco comer.
―E aqui onde vives?
―
En la calle Tucumán, en una
pensión muy
cómoda e barata, dirijida por una espécie de
monjas, que ese buen santero de Suipacha me
indicó. La casa es solo para señoras y
señoritas.
Tengo un lindo cuarto, con el piso encerado
y la camita blanca. Tratan muy bien à
la gente. Pero tiene una cosa fastidiosa: no se
permitem visitas y despues de las nueve de la
noche ya nadie puede salir.
―Se precisares de alguma coisa...
E com crescente animação Luísa, num
progressivo
abandôno de todo o seu ser confiado e
vibrante:
―
Preciso, si... preciso verlo, oirlo,
tenerlo
[346]
algunos momentos cerca de mi, asi, bien cerquita!
Sus ojos me llenan el corazon de sol,
su simple presencia me infunde valor. Preciso
tanto de ella como del aire y de la luz, para
vivir... e con ella me contento, toda vez que no
puedo aspirar á su cariño. Lejos de Usted es
como yo ya no podria vivir! Porque ahora es
una cosa tan diferente... Si el señor vise como
yo, allá afuera, vivia solita y triste, sin afectos,
sin amparo, sin una pisca de alegria!...
Por eso necesito que se me convierta en un
dulce y leal amigo de siempre, mi generoso protector
dun instante. Que cargosa le voy a ser!...
No se acuerda el señor de aquella noche en que
la siniestra lechuza nos seguia todo el camino?...
Nos ligó en la vida y en la muerte. Es
la suerte ya vê... Y yo confio en ella y á ella
me entrego, y estoy contenta. Porque decia mi
abuelita, que Dios tenga en su gloria, que cuando
la felicidad se pone delante de nosotros á
abrirnos un camino, es como la desgracia,―es
por mucho tiempo.
Vagamente apreensivo, num frio e convencional
sorriso, o Silveira murmurou:
―Bem, está bem...
Luísa agora mudára de expressão, e com
adorável infantilidade, tristemente, olhando-se
com desprêzo:
―
Lo peor es que yo, verdaderamente, en
esta facha, me averguenzo... si, reconozco, tengo
que confessar que no soy digna de Usted!―Mas
logo, numa coqueteria ingénua, recobrando-se:―
Ah!
[347]
pero tambien yo sé
vestirme
como las señoritas de la ciudad. Y tengo com
qué, gracias al Señor!
―Não tens um chapéu?
―
Como no! Y una linda blusa de seda,
pollera con pliegues y cordon de oro.―Atirava
com decisão o guardanapo:―
Vá a
ver!
O Silveira expandiu-se num claro riso, entre
trocista e incrédulo; e após uma pausa, voltando
a afagar-lhe com carinho a mão sôbre a
mesa, suavemente:
―Mas, dize-me: então, sério, sério,
não te
lembra o campo?
―
Que me voy a acordar?
―Não deixaste por lá nenhuma
inclinação?
não tens saùdades?
―
Inclinación?... Acaso sé lo
que es eso!
―Era natural...
―
Nadie! nadie!―E com um sincero
calor,
beijando os dois indicadores postos em cruz:―
Juro!
por esta... Yo naci sin una flor en el
alma. Yo andaba por ahi como una pelota lanzada
al acaso, sin paradero, sin hogar, sin destino.
Quien hacia caso de mi?...―Depois, comovidamente,
com os antebraços ao alto, as
mãos postas em súplica e as pupilas ardentes
num amoroso enlêvo despedidas ao busto atónito
do Silveira:―
Ahora, si! es que yo creo
haber finalmente encontrado mi familia, mi
mundo... ahora es que yo compreendo la razón
y el fin de mi vida. Que feliz soy! Cuanto le
debo!
[348]
Súbito, como no seu enlevado giro os alarmados
olhos de Luísa se fixassem no grande
mostrador circular do relógio da sala, a timorata
rapariga estremeceu, e como quem desperta
dum sonho:
―
Ah! pero que tarde es!... Que disculpa
voy á dar en la tienda, valgame Dios?―E
pondo-se
de salto em pé, apressurada,
inquieta:―
Disculpe-me,
si?... Es forzoso. Voy á tomar el
tranvia.
Arredou a cadeira de golpe, e enquanto o
Silveira pagava, sem uma palavra de despedida
mais, sem um agradecimento banal, sem mesmo
esperar por êle, partiu precipitadamente.
O Silveira ficou ainda, uns minutos, como
avergado ao pêso dum inconfessável cuidado.
Acendeu um cigarro, saíu morosamente... e
longamente depois, penseroso, inerte, foi subindo
a pé a praça do Congresso.―Em que viria
aquilo a dar?... ia vagamente contrariado,
porque sentia que demasiado o preocupava
aquele trivial episódio
callejero. Increpava-se da
sua debilidade. O saboroso desenlace desta
aventura picante seduzia-o, fazia-lhe negaças ao
desejo; mas simultâneamente, perante a turbadora
ameaça do contubernal convívio com essa
criatura delicada e simples, o seu epicúrio
egoísmo
revoltava-se. E como quem padece dum
mal secreto, como se premeditasse algum delituoso
plano ou houvesse cometido alguma
acção indigna, guardou-se de contar qualquer
coisa ao Azeredo.
[349]
Curioso foi que à hora habitual, na manhã
seguinte,―e embora não houvessem feito nenhum
acôrdo prévio,―lá estavam os dois
outra
vez cada um no seu posto; dando-se até o caso
singular de ser o Silveira quem apareceu primeiro.
Pronto êle havia baixado ao salãosinho
de leitura do hotel e daí, sem mesmo pensar
em almoçar, recostado com indolência num
fauteuil, junto à janela,
seguia espiando em disfarce
a aparição, na esquina defronte, da sua
linda e suave companheira.―Nada tinham combinado,
mas de seguro que ela havia de vir!―E,
forte nesta acariciadora evidência, a curtos
intervalos êle não despegava de apontar os
olhos codiciosos ao outro lado da rua. Muito
não tardou que a sua femieira impaciência
não
fôsse satisfeita. E então, mal que o insofrido
galã viu em frente, debuxar-se no torvelinho
vago da multidão a fina silhueta apetecida, ergueu-se,
tomou o chapéu, correu à porta...
num momento estava junto dela.―Vinha outra,
com efeito, naquela manhã, conforme anunciára.
Já parecia alguêm... Cómicamente
travestida
em
señorita, trajava uma
singela blusa em
soyau
crême, decotada, com largo cabeção
à Tudor,
segundo a moda; uma saia negra em sino, muito
curta, com sobre-saia
plissée, da mesma
côr;
bota de pelica e verniz, e meia branca; ao colo
um ténue fio de oiro; na cabeça um barato
chapéusito
panier, de palha castanha, rebatido
sôbre
os olhos e atrás em sôlta curva erguido
sôbre
a mòlhada luzidía do cabelo, pregado à
[350]
nuca; e umas luvas triviais de algodão branco,
pospontadas de negro, sujeitavam a rústica aspereza
das mãos, donde pendia uma bolsinha
de sêda.
Entalada nesta convencional, e para ela quáse
inédita, indumenta urbana, Luísa aparecia
desfigurada.
Era uma autocaricatura. Era como
uma estiolada flor trazida do campo. Na sua
improvisada encadernação havia o que quere
que fôsse de contrafeito e exótico, que a
desfavorecia.
Ela mesmo não se sentia à vontade...
os movimentos eram hirtos, a expressão
estranha, não sabia que fazer dos braços. Estava
adorável de embaraço e de ridículo.
Mas a tudo
sobrelevava sem esfôrço o contôrno
picante da
sua figura, e dessa contrafacção
irrisória zombava
triunfal a sua mocidade recendente, a sua palidez
fresca de flor, a sua graça nativa, a sua
confiança
ingénua, o seu viço exuberante.
Saùdaram-se por um cordeal apêrto de
mão,
e de roda dela o Silveira tudo era mirá-la de
gôsto e aplaudi-la, complacente e risonho festejando-a
por aquele milagre de metamorfose
tam sedutora como imprevista. Achava-a encantadora.
Porque de todo aquele ingénuo esfôrço
ressaltava a exclusiva, a ardente preocupação
de interessá-lo; todo êsse preparo coquete
era um discreto convite, um desafio evidente,
que o enardecia... Do mesmo passo,
a confusa e tímida criança, no íntimo
lisonjeada,
pedia mimadamente―
que no le hiciese
burla...-e trejeiteava umas infantís e
humildes
[351]
expressões que, eram a demanda subtil do
seu agrado.
Contudo o Silveira encontrou-a triste. Mantinha-se
inconcebivelmeute perplexa, muda, cabisbaixa.
O que quere que fôsse de penoso e
molesto lhe ensombrava a expressão, lhe pesava
nos lábios e abatia o vôo sonhador das
pálpebras. Interrogou-a com insistente carinho
e ela sempre no mesmo silêncio embaraçoso e
difícil; té que por fim, por muito instada,
balbuciou
a custo:―que ao entrar na loja, na véspera,
como chegasse uma hora mais tarde, não
quiserem saber de razões nem desculpas. Pagaram-lhe
e despediram-na.
Tomado dum indominável frio egoísta, o Silveira
exclamou:
―E agora?...
―
Ahora que sé
yo?―murmurou Luísa mansamente;
e na sua resignação fatalista, encolhendo
os ombros:―
Busco otra casa.
Insensivelmente haviam retomado a andar,
rua abaixo, agora já sem esquivanças, sem
hesitações
nem dúvidas, mano a mano, como dois
iguais, como dois bons amigos. Mas seguiam
sem palavra ferir, silenciosos e graves, a par um
do outro e distanciados pela interposição
dêsse
arreliador problema económico, filosofando em
comum sôbre a dura incerteza do futuro. Porêm,
súbito, um outro problema bem mais grave
formularam as exigências fisiológicas do
Silveira,―a
necessidade de almoçar. E êste era de
solução imperativa, imediata. Fez sinal ao
primeiro
[352]
taxi fechado que passou,
empurrou para
dentro a rapariga e, de mão à portinhola e
pé
no estribo, ordenou ao
chauffeur que
tomasse em
direcção ao arrabalde, aí para Flores
ou Olivos,
e que aterrasse nalgum pequeno
restaurant,
aceado e cómodo, onde pudesse almoçar-se bem
e a bom recato.
E nesse acomodatício bucolismo de fóra de
portas foi onde gozaram o seu primeiro idílio,―breves,
fugazes horas de paz e de enlêvo, vividas
ao acalentador abrigo dos muros dum exíguo
patio colgado de trepadeiras, em
cujas sombras
transparentes os raios do sol vinham quebrar-se,
dançando, como sarabandas de beijos,
como boquitas de oiro. Gradualmente aquecendo,
o Silveira, profissional emérito nas práticas
da sedução, envolvia-a em cariciosas
espírulas
de encantamento e de sonho, acenava-lhe com
promessas, espertava-lhe desejos, insinuava-lhe
desvarios, dizia-lhe coisas audazes e perversas
que a deslumbrada criança recolhia inteiras,
num embevecimento ingénuo, com os grandes
e lindos olhos muito abertos, que pareciam escutar.
Depois Luísa tambêm, no progressivo alento
da confiança e pelo eflúvio excitante da comida,
tornava-se ligeira, expansiva, fácil, tagarela, e
com a sua vozita límpida e vibrátil, titilando
como uma luz ao vento, fazia o enternecido
relato do seu passado, da sua vida de desamparo
e miséria... e como agora sempre
o seu pensamento rodava incessante em volta
do seu rico amor... desnudava as mais íntimas
[353]
prégas do seu sentir, punha da mais comovedora
evidência a intacta virgindade da sua carne
e a nívea pureza da sua alma. Ao cabo, no regresso,
quando dentro do auto os dois outra vez,
êle cingiu-lhe a cintura, puxou-a a si, beijou-a
sôfregamente... e ela abandonava-se, poisando-lhe
em delíquio a cabeça contra o peito, encolhidita,
humilde, gozando o prazer inefável de
sentir-se pequena junto ao homem que adorava.
Nos dias subseqùentes, é de saber, a embriagadora
scena a repetir-se. Um e outro
tinham o dia todo por seu: nem ela nutria agora
maior empenho em buscar nova colocação, nem
tampouco êle se interessava demasiado pelos
negócios.
Narcotizava-os a tirania mole do instinto,
embalava-os, adormecia-os uma preguiceira
onda de prazer. E assim, numa despótica
e mútua sedução, dias pós
dias, foram indominávelmente
consumindo o tempo e pelo seu
amoroso exclusivismo enchendo as horas, num
delicioso deambular de acaso, alheios ao mundo,
perdidos pelas tascas dos bairros suburbanos,
delidos nas orvalhadas sombras do Tigre, extraviados
na quietude vaga e balsâmica do
campo. E êste delicioso parêntesis de sonho
engrinaldava-o Luísa com um chancear cristalino
e alegre, intervalado de carícias tam espontâneas
e tam ardentes, que o inflamado Silveira
não sabia por vezes a que sobreùmanas
fôrças
socorrer-se para enfrear a violência do desejo.
Eram as consabidas étapas duma
capitulação moral,
[354]
gostosa, inevitável, em que a alucinada
criança ia deixando a pedaços o pudor,―essa
epiderme da alma,―como antes, pelo campo,
a fímbria da rústica saia esgarçada
nas balsas
dos caminhos.
Debalde prudencialmente o Azeredo, já ao
tempo conhecedor da situação, buscava conter e
dissuadir o amigo. Fazia-lhe ver, dêsse resvalo
inobre em que se obstinava, as responsabilidades,
os contras, os alçapões, os tédios...
porventura
os perigos.―Que precisão tinha êle?
com tanta mulher por'í e noutras
condições, e
mais educadas, mais lindas, melhores, seguramente!―A
nada porêm cedia a libidinosa querença
do Silveira. Se êle a princípio
hesitára,
agora, mercê da garra mansa do convívio, o
domínio, o gôzo, a plena posse de Luísa
tornára-se
para êle uma idéa obsidiante. Pressentia-lhe
o aroma e o sabor dos frutos silvestres.
Como um cacho ruivo de medronhos, embebedava-o
o apetite acirrante de mais esta aventura,
tanto na sua tradição como do seu agrado. Por
fim, lógicamente, amaram-se na cumplicidade
mercenária duma
casa
amueblada. E logo nessa
noite o Silveira, quando a sós, no hotel, com a
reflexiva calma do seu leito, sentiu correr-lhe a
espinha um frio de vaga e presága angústia.
Inexplicavelmente, e uma vez dissipado agora,
com a posse, o encanto, o devassado mistério
dessa criatura confiada e simples, uma sorte de
áspero cuidado espancava-lhe o sono... remordia-o
um amargo e apiedado sentimento, para
[355]
êle desconhecido. Tinha supersticiosas apreensões
e vinha-lhe uma tristeza. Quereria retrogradar,
increpava-se, arrependia-se... No desfecho
tam plausível e tam humano dêsse vulgar
lance de amor, a sua consciência em alarme futurava
qualquer coisa encaminhada a fazer sangrar
a sua alma e a pesar no seu destino.
X
Mais ou menos o mesmo severo aspecto revestiram,
no dia seguinte e quando inteirado do
sucedido, os repreensivos comentários do Azeredo,
que duramente increpou o amigo.―Afinal
havia caído na mesma estupidez de sempre! E
p'ra quê, no fim de contas?... Porque não soubera
reprimir-se, atalhar o mal a tempo, furtar-se,
desertar, reagir? E que tivesse vergonha!
pois aquela premeditada violência era sempre
no fundo uma acção indigna.
Depois, com uma doçura amável a cantar-lhe
na expressão, sensatamente ponderava:
―Sim, porque essa pobre rapariga agora
não te larga... tens que ampará-la no novo
caminho
que lhe fizeste. Pendura-se-te da vontade,
enrosca-se-te ao desejo. E é bem feito!
E vai tu, com o teu bom génio, com êsse feitio
brando e sensualão, deixas-te gradualmente
[358]
prender, apiédas-te, habituas-te, condescendes...
e acabarás por descer a essa equívoca
situação
tam do agrado de todo o bom português: a
mancebia.
―Não é mulher p'r'a mim,
―P'r'os homens fracos e lascivos como tu,
tôdas as mulheres estão à altura.―E
num
gesto nobre e viril, sacudindo os ombros:―Porque
não fazes como eu?... Tentações dessas
prefiro que venham adonde a mim. Fica-se
sempre bem... Foi o meu caso com a chilena.
O verdadeiro prazer deve ter asas, ser leve como
uma pena e fácil como os frutos maduros.
Até por uma questão de egoísmo. Pois
tu não
vês? que diabo!... perante a epicúrea gula dos
nossos sentidos, o convidativo saber da mulher
feita vale mais que o espanto semsabor da virgindade.
Confundido e vèxado, o Silveira concedia―que
sim... o seu amigo tinha razão. São destas
coisas que acontecem. Já tinha que ser...―Mas
logo, com desdenhosa arrogância, recobrando-se:―O
que não valia a pena era dar
ao caso maior importância. O que melhormente
agora ali o interessava era ganhar
plata. O
mais, queria lá saber!―Aproveitando jubiloso
a derivante, logo o Azeredo lhe disse que ainda
na véspera, no
Club
Progresso, o comendador
Niatello com todo o interêsse lhe perguntára
por êle.
―Tem estranhado a tua ausência e com
razão. Nunca mais apareceste!
[359]
O Silveira prometeu que iria naquela noite
sem falta. E com efeito, cêrca das 10 horas, aí
entravam os dois a portada banal do
Club, na
Avenida de Mayo. Transporta a
modesta escalinata,
em mármore branco e mosaico, e atravessado
em cima um esguio vestíbulo envidraçado,
cortaram logo para o primeiro salão, à
direita, uma grande e bem esquadrada peça
participando do simultâneo carácter de centro
de conversação,
fumoir, biblioteca e sala de
leitura.
O teto, alto e distante, era todo artezonado
em bastos e simétricos caixotões de estuque
lavrado, com abundância de oiros e relêvos;
pelo amplo lençol das paredes, forradas duma
espécie de brocado verde, de lã, com filetitos
de oiro, penduravam-se aparatosas taboletas
emoldurando recompensas industriais, oleografias,
espelhos, a lista impressa dos sócios e o
plano policromo da cidade; em baixo, sôbre o
envernizado
parquet, havia uma mesa
enorme,
pejada de jornais e revistas, e disseminavam-se
em profusão as cadeiras, poltronas, sofás,
causeuses
e
fauteuils de tôda a
espécie, obrigado
refúgio à modorrenta inércia dum
avultado número
de assistentes, dos quais alguns, raros,
em traje de
soirée ou
smoking, porêm a maior
parte encadernados no comodismo plebeu do
jaquetão, e todos com arrastado vagar discorrendo
sôbre triviais casos mundanos ou tricas
vulgares de negócios.
Junto a uma janela abancava, com três sócios
mais, o comendador Niatello, um quinquagenário
[360]
reforçado e grande, de queixo
querençoso,
de olhos ladinos, saltando com dominador
relêvo da abaçanada flacidez da larga face curtida
e negrusca, inteiramente escanhoada. Mal
que êle descortinou os dois amigos, logo de
chamá-los de longe com protectores acenos familiares,
afectuosamente. E à sua aproximação
ergueu-se e adiantou-se a acolhê-los, numa
solícita cortesia, convidando-os logo a tomar
asiento e apresentando-os sorridente
aos três
companheiros.―Todos vélhos. Vicente Alvear,
descendente duma antiga família colonial e herdeiro
duma grossa fortuna, era ainda uma bela
figura marcial, com a sôlta elegância de movimentos
que nos dá uma vida fácil.
Recêm-chegára
da Europa, dizia as coisas mais triviais
com solene entono, tinha um certo
aplomb fidalgo,
e o seu rosto liso, afável e atraente iluminava-se
da espelhada abundância e frescura
do bigode e cabelo, totalmente brancos. Não
assim José Piétronero, que desbarbado, esguio,
pequenino, era a mais completa e flagrante
realização
dum dêstes grilhetas eternos do trabalho,
vestindo pobremente, com a arisca silhueta repregada
sôbre si mesma, os olhitos cavilosos, a
face rechupada e o chinó grisalho, recurvo o
dorso como um cifrão, as mãos crispadas como
garras. Finalmente, Pedro Urquiza era o mais
galhardo e mocetão dos três. Grosso, moreno,
gordote, a cara opada e macia, o cabelo lustrado
de óleos, as mãos moles e brunidas, era
bem um tipo de puro e contumás
porteño, no
[361]
córte arrogante do busto, no desempêno viril
dos gestos, na linha imperativa da bôca, entre
voraz e insolente, na dura expressão do olhar,
entre altaneiro e cínico. Trajava com
afectação,
de calça excessivamente curta, polainas, grande
pérola na gravata e um cravo branco no olhal
do jaquetão cintado.
Foi êle quem imediatamente reatou conversa.
Fazia a apologética enumeração das
fabulosas
riquezas naturais do país, postas agora a
claro: os jazigos petrolíferos de Comodoro Rivadavia,
as hulheiras de Chubut, os incontáveis
tesouros em minério da cordilheira. Tanta maravilha
por'í assim a explorar! tanta coisa misteriosa,
ignorada, inédita, imprevista! No mundo
não havia melhor.
―Parece-lhe então que todo êsse sul da
Rèpública?...―indagou
ingénuamente Vicente Alvear,
avançando o busto com interêsse...
―É o nosso futuro Potosi, não há
dúvida!
Bem vê, o norte para a exploração
intensiva é
ainda demasiado selvagem, o centro está dando
o mais que pode dar... de sorte que é para essas
caudais de abundância do sul que deve de
preferência
voltar-se a nossa atenção e canalizar-se
o nosso dinheiro.
―Parece que essa obra do carvão de Chubut
es un cuento,―mascou o cauto
Piétronero
com frieza, fransindo desconfiado os olhos e
apertando os braços.
―Como,
un cuento!?
―Sim... eu li algures a opinião do engenheiro
[362]
Rivoretto, um informe oficial, que diz
que são jazigos demasiado recentes.
―Pelo contrário,―acudiu o Alvear com entusiasmo,―na
Europa corre que é um carvão
que pode competir com o melhor de Cardiff.
―Poderá... daqui a mil anos.
―Tudo isso são abomináveis
maquinações
e intrigas de tanto invejoso, tanto malfadado empatador
que p'r'aí abunda!―contestou indignado
Pedro Urquiza. E com persuadente intimativa:―Não
tenham dúvida: o valor das hulheiras
de Chubut, mas o valor actual, imediato,
é enorme. Depois, há ainda os mananciais do
Neuquem, há tôda essa imensa e feraz
Patagónia...―E
num ardor de patriótica exaltação,
pondo-se em pé, com os lábios imperiosos, com
uns olhos de vidente:―Ah, creiam, meus amigos!
por tudo, até pela raça, é no sul que
repousa
o engrandecimento, é do sul que há-de
avassaladoramente romper e impôr-se o grande
futuro da Rèpública. E o dever de todos
nós
é, desde já! não só
acompanhar, mas estimular
êsse portentoso fenómeno natural com as nossas
melhores reservas de actividade, de inteligência
e de numerário.―Rodeou o grupo em
duas passadas nervosas, e por fim, abatendo a
mão sôbre o engerido ombro do
Piétronero:―Você
que diz?
Este teve um instintivo estremecimento, e
naquele gesto tam seu, de como quem defende
a algibeira, encolhendo os braços todo dobrado:
[363] ―Eu não sou ambicioso... não digo nada.
―Duvida? tem receio?
―Não sei, não sei... Aquilo que tenho custou-me
tanto a ajuntar!...
―Não diga isso! Um homem como você,
dos do bom tempo, quando inesperadamente se
acordava rico... Um felizão, que apanhou fortunas
de mão beijada...
―Sim... porêm o meu amigo não atenta
agora, com as reviravoltas da crise, em quantos
títulos eu tenho comprometidos... não toma
em conta a imensidade de terrenos que eu comprei
a 30 pesos o hectare, e que neste momento
não valem 5... Ninguêm mos quere!
―São injustificadas apreensões. Lá
virá seu
tempo.
―Virtualmente estou pobre.
Uma girândola de incrédulos risos acolheu
êste lamento hipócrita. E a seguir num generoso
arranque de confiança, o Alvear:
―Pois eu cá, não! eu estou meio tentado.
O dinheiro que os meus me legaram, p'ra que
o quero eu? senão p'ra pô-lo ao serviço
do
meu país, ajudando-o e engrandecendo-me?...
Que essas novas empresas consigam do govêrno,
pelo menos, o apoio moral, e o meu capital
disponível estará com elas.
―Bravo! meu nobre amigo. Muito bem!―exclamou
com festiva arrogância o grosso Urquiza,
dobrado com esfôrço, sobre a espalda do
amigo. E logo para o Silveira, que, sentado ao
lado, seguia num vago deslumbramento o giro
[364]
tintinabulante do diálogo:―E que diz a isto o
nosso simpático estrangeiro?
Aqui interveio o ladino comendador, até então
silencioso, e que com dulcerosa expressão,
envolvendo protector o Silveira na chispa traficante
do olhar, astutamente:
―Ah, o meu joven amigo não precisa aventurar-se
tam longe p'ra fazer fortuna. Tem um
pouco mais perto, já sabe... os meus terrenos
da província de Cordoba. Não é
verdade?
Maquinalmente, o Silveira sorriu; enquanto
o Azeredo fransia a testa com desgôsto, o negrusco
aliciador continuava:
―Pode ali fazer uma rica exploração
agrícola
em larga escala. É o mais simples e o mais
seguro.
―Eu gosto muito do campo.
―Aí tem! Que melhor oportunidade que a
que eu lhe ofereço agora? E olhe que poucos
lotes me restam já... Um terreno privilegiado,
não imagina! Ainda não viu a
exposição dos
produtos dessa minha terra, aqui em Florida?...
Faz o assombro de tôda a gente. Vá ver,
vá...
e eu tenho a antecipada certeza que de lá o
meu amigo correrá ao meu escritório.
―Haveria logar para tudo...―magnânimo
o Urquiza aventurou.
―Nada! nada!
Qué
esperanza... Creia, amigo
Silveira, nenhum negócio como êste meu.
Garanto-lhe que, em dois anos, tem o valor do
seu capital quintuplicado. Quere ver?
E, dizendo, o acobreado Niatello sacava duma
[365]
pasta e desdobrava aparatosamente sôbre a
mesa uma grande planta policróma, enquanto
de roda os três vélhos cambiavam entre si um
imperceptível olhar escarninho, e o Azeredo
impaciente beliscava o braço ao Silveira.
―Bem! vou ao meu assalto de florete,―anunciou,
num sêco gesto de despedida, o Urquiza.
E para o Silveira, com especial
predilecção:―Tive
imenso prazer em conhecê-lo, pode
crêr...
Calle Lavalle,
1391, inteiramente ao seu
dispôr. E fóra disso, pelas tardes, encontra-me
sempre invariávelmente fazendo a
calle Florida,
no
Jockey Club ou aí pela
livraria
Mendeski,
pelo
Wictomb, à porta do
Lacloche ou no
Rumplmeyer.
Seguiu, breve e altaneiro, para o interior da
casa, tomando-lhe o exemplo, a poucos minutos
passados, Vicente Alvear e o Piétronero,
que deixaram o comendador a desdobrar à vontade
a sua estratégia de sedução perante os
dois
portugueses. Assentou êle em pêso a negra
mão convincente sôbre uma larga fôlha de
papel-tela,
onde tentadoramente se estrelava uma
grande mancha trapezoidal, escaqueada por um
labirinto de pequeninos rectângulos, brancos,
amarelos, azúis e verdes, que uma floresta de
traços negros definia, e carimbados a algarismos
vermelhos. A toalha esfíngica da fortuna.
―Isto aqui é o melhor que pode haver, notem
os srs. bem! Província de Cordoba, departamento
de Iulumba. Dôze horas de ferro-carril;
é um passeio. O lote que eu lhe ofereço
é
[366]
êste, o n.º 13, um número de sorte, um
verdadeiro
regalo. Veja: são
cêrca de oito mil hectares,
terrenos absolutamente virgens, a dois passos
da linha férrea, abundantes carreteiras, e
em condições topográficas
excepcionalmente favoráveis,
entre a montanha e o rio.
―Há-de ser caro...
―Quê, caro? objectou com a mais teatral
isenção o comendador.―O meu amigo não
me conhece... De tanta soma de terras aqui
vendidas já eu tirei um lucro bastante compensador;
de sorte que agora êste resto,―que não
é um refugo, senão um mimo,―ceder-lho hei
por nada, quáse de graça.
―E como é que tanta preciosidade―arriscou
com impertinência o Azeredo,―se conservou
até agora assim baldia, estéril, ignorada,
inútil?
―E um fenómeno vulgar em tôda esta imensidade.
―Bem, mas em todo o caso este meu amigo,
sem ver, sem se informar melhor... não pode
assim de golpe comprometer-se...
―E porque não vão lá primeiro,
certificar-se?
Eu até estimo.
―Desnecessário!―atalhou, num rasgo de
quente decisão, o Silveira.―Está posta de parte,
por descabida entre nós, a questão de
confiança.―Depois
a meia voz, para o Azeredo:―Talvez
convenha, hein?―E na hipnose ingénua
do oiro, erguendo-se:―Olhe, meu caro
comendador, eu não resolvo nada de pronto;
[367]
no entanto peço-lhe que me reserve o lote, que
me dê um prazo.
―Só sendo muito curto, já vê...
―Eu àmanhã sem falta vou ver a sua
exposição,
e em seguida, em qualquer hipótese, passarei
pelo seu escritório.
E com um efusivo apêrto de mão despediu-se
e afastou-se, com o Azeredo, enquanto o comendador
dobrava e guardava, num jubiloso
vagar, o seu trapaceiro
dossier, com
a segurança
ardilosa do triunfo a bailar-lhe no olhar
astuto.
Não muitos metros andados na direcção
dos
bilhares, chamou a atenção dos dois amigos,
quáse travando-lhes o passo, um grupo atónito
e compacto que em extátíca
suspensão escutava
o verbo suasivo e ardente dum invisível
charlatão, sob o domínio empolgante da sua
embaìdora parlenda desdobrando cifras e barafustando
enganos.
―É um assunto que eu pensei maduramente,
meus senhores!―pregoava êle na sua ardorosa
invocação, convictamente.―É uma
grande empresa,
um negócio estupendo!
Cá de fóra e de longe, o Silveira não
podia
distinguir a figura do industrioso perorador;
mas pareceu-lhe reconhecer aquela voz sacudida
e vibrante, de timbre metálico, saltando no
silêncio
espectante de em tôrno como um jôrro
de moedas batidas sôbre o balcão. Ergueu-se
então em bicos de pés... e, com efeito! era o
seu abortivo Ramón Alvarez quem com tam
[368]
compenetrada fúria encarecia as maravilhas dalgum
inédito elixir da sua lavra. E que de repente,
ao vê-lo:
―Oh, meu caro Silveira! Que feliz, que providencial
acaso! Quanto estimo!
Pase,
pase, venha
ouvir... Como chega a propósito!
E tam pronto fez praça ao amigo, logo êle,
para não perder o calor sugestivo do momento,
rompeu clamoroso outra vez:
―Trata-se nem mais nem menos que da
construção dum grande, um alado, um colossal
e gigantesco pára-sol sôbre tôda a
praça de
Mayo.
Os paresiados rostos dos circunstantes fulguraram
num rasgo de admiração alarve. E êle,
impudente, imperturbável:
―Os senhores compreendem bem a minha
idéa, o meu fim essencial: oferecer um pouco de
comodidade ao grosso publico, furtar às
inclemências
do calor e ao rigor das intempéries tôda
a imensa aluvião humana que de sol a sol febrilmente
circula e se agita nessa túmida aorta
da cidade. Mas de passo eu quero reùnir ao
útil o agradável, quero adornar de atractivos,
rodear de fartas e lindas diversões, essa
benéfica
estância de repouso. Será um ponto de
reùnião
forçado, uma obrigada estação de
prazer,
chic, estética, elegante.
Haverá por exemplo ali
assim, logo em baixo, tôda a sorte de
tiendas,
restaurants, bazares,
garages de automóveis,
que sei eu?... Depois, em cima, envolvendo o
grande suporte central, e suspenso, teremos um
[369]
vasto salão de concertos; dos extremos de cada
vareta, ao largo de tôda essa perifería, eu farei
igualmente suspender quantidade de teatrinhos,
cinemas,
bars, estufas, e por fim,
no afusado
remate do vértice, rendado e fino como uma
agulha de catedral, erguer-se há um lindo
belvedére
e flutuará um balão cativo.
―Encantador, grandioso, realmente!
―É uma idéa bem americana!
―Parecer-lhes há estranha, à primeira
vista...―ponderou
o grotesco Alvarez, sorridente,
pendulando a fenomenal cabeça com modestia.―E
no entanto nada de mais exequível, de
mais oportuno, de mais simples, de mais a propósito.
Mas por entre o côro basbaque dos aplausos
algumas birrentas dúvidas surdiam.
―Acho um plano em demasia arrojado.
―Impraticável talvez...
―Como, impraticável?―de salto o Alvarez
acudiu, com o frio cobalto dos olhos súbito
incendido.―Ao contrário, hoje, com o ferro
e o cimento, é tudo quanto há de mais
fácil.
―A mim parece-me a renovação da
cómica
façanha do
homem das
botas... com a diferença
que esta não custou dinheiro,―disse em surdina
para o Silveira o Azeredo.
―E a forma prática de o realizar?―interpelou
um ouvinte mais rebelde.
―A municipalidade consentirá? Já obteve a
concessão do exclusivo?
―Ainda não... porêm tenho a promessa formal
[370]
do
édecan da
Presidência.―Um crédulo
cabeceamento de aplauso acolheu esta animadora
notícia.―O lucro vai ser imediato, enorme,
colossal!―tornou dogmático o Alvarez; e
após uma ardilosa pausa, abrindo familiar os
braços, singelamente:―Agora o que há,
é que
estas coisas, sem dinheiro, sem muito capital...
Eu só não posso... Pensei numa sociedade por
acções, de cem pesos, cobráveis em
duas prestações.
Está ao alcance de tôdas as bolsas. Uma
coisa de nada! Aqueles dos srs. que me queiram
acompanhar...
Entretanto, nas fôlhas do providencial
carnet
que um solícito
corredor
ia fazendo adrede
circular pela assistência, choviam abundantes
as adesões e as rubricas dos subscritores. O
Silveira inscreveu-se com cem acções, levado na
rútila asa dos seus sonhos de fortuna.
Na manhã seguinte, tomado de plutonómica
impaciência, êle aí ia visitar, em
calle Florida,
o tam apregoado mostruário agrícola do
comendador.
A distância de mais de meia
cuadra, já
êle distinguiu um grosso grupo de mirones, na
sua curiosa inquirição colados com avidez
à
montra, tomando o passeio e daí alastrando
ainda em arrelienta cauda pela rua. Tanta soma
de interêsse foi para o hipnotizado Silveira mais
um estímulo. Estugou o passo, e, breve, a poder
de firmeza e de decisão, pedindo vénia,
acotovelando,
rompendo, atropelando, logrou alcançar
o posto de exame desejado.―Um perfeito deslumbramento!
Distribuida com arte e colmando
[371]
superabundante a vidreira, havia a mais tentadora
profusão de bulbos, de sementes, de frutos,
leguminosas e gramíneas de toda a sorte e
tudo sôltamente luxuriando em côres
sadías e
brunidas, em túmidas e aveludadas curvas, em
farturas reçumantes, escarolados cofres da
abundância,
gordos, frescos, viçosos, grandes como
êle nunca vira igual! Alguns eram duma corpulência
descomunal, verdadeiros prodígios da Natureza.
Havia ali batatas grandes como melões, melões
que pareciam abóboras, abóboras que eram
como as tôrres da Senhora dos Remédios ou do
Bom Jesus, na sua terra. Seguramente, na última
exposição promovida pelo Vilarinho de S.
Romão no Palácio de Cristal, e que tam falada
foi, não aparecera nada capaz de se comparar
com isto. Era uma possança paradisíaca que
metia positivamente num chinelo os afamados
feijões e as couves de S. Cosme, os pêssegos
do Varosa ou os calombros de Lamego. Que
portentosa produção e que privilegiada terra!
Nem todos pareciam, entretanto, manter
esta corrente ingénua de sentir, no heterogéneo
grupo da assistência. Um que outro dito mordaz
passava dissimulado ou esfusiava escarninho;
alguns rodavam num propósito manifesto
de troça, assobiando; e mesmo junto à orelha
do indignado Silveira, alguêm houve que, fransindo
o nariz, com implicativo acento exclamou:
―Hum! A mim parece-me isto um
conto do
vigário.
[372]
O Silveira sentiu ganas de contraditar a blasfémia;
e sobranceiro a êste deletério
contágio,
como um decisivo gesto do seu protesto pessoal
a tanta soma de imbecilidade e ingratidão,
súbitamente,
deixou por seu turno a vidreira e seguiu
na pressurosa demanda do comendador,―não
fôsse algum mais diligente e esperto antecipar-se-lhe!―e
adquiriu para si o famoso
lote n.º 13. Oito mil hectares de terra virgem,
a dez pesos o hectare. Um ovo por um rial. Um
negócio de mão cheia.
Descontado êste dinheiro, mais o capital que
arriscára na
Sociedade Internacional de
Seguros,
e o custo das cem acções, do dia anterior,
não lhe restava já do seu parco
património,
feitas bem as contas, mais do que com que
viver, e bem escassamente, quando muito, por
um ano... Oh, mas que importava isso, se dentro
em poucos meses, seguramente, êle dos seus
esplêndidos negócios ia colhêr rios de
dinheiro!―Bem
bom! bem bom!―dizia-se, esfregando
as mãos, sorridente.―É um dito êste
bem certo: que há males que veem por bem...
Afinal, em bôa hora viera. Ia
fazer a
América,
veriam! Ainda havia de mandar depois as brôas
ao Afonso Costa. E que esmagadora lição
êle
infligia à Laurita!
Arrastado na falaz miragem dêste sonho magnificente,
tôda a tarde o Silveira levou, desocupado
e frívolo, em prazenteiros
flirts pela cidade.
Começára o delicioso mês de maio, o
opulento
batedor da
season, arrepiado dos
primeiros
[373]
frios e com as suas plácidas manhãs
envôltas
vagamente, como por uma peliça cara, nas peroladas
franjas da neblina. Apetecia o confôrto
caseiro e lembrava, gratamente, o sôpro morno
dos
calentadores, o efusivo calor
das recepções
mundanas, o tépido e sensual ambiente das veladas,
dos concertos, dos bailes, dos teatros.
Haviam-se inaugurado já os selectos
tés dominicais
do Plaza, e os aristocráticos cartazes com
o
elenco do
Colón tenorinavam
líricas tentações
pelas esquinas. Ao longo da Avenida de Mayo,
limpa já de ruturas, porêm ciscada a trechos
pela chuva outoniça da folhagem dos seus
plátanos,
várias brigadas de obreiros lidavam regulamentarmente,
desdobrando tubagens, firmando
plintos, marchetando escudos, aprumando
postes, bandeiras, mastaréus, pendurando
sanefas de lumes e articulando pórticos de ripado,
para as próximas iluminações das
festas
da Independência. E tornavam a aparecer as
equipagens de preço, e pelas ourivezarias e casas
de modas cruzavam, em vagarosa importância,
as grandes figuras conhecidas. Era
la
gente bien da grande cidade que, de novo,
condescendia
em mostrar-se, era um novo ciclo da
sua ostentosa vida social a definir-se. Opulências,
brilhos, vertigens, intrigas, caprichos, loucuras,
traições, amores... Era a lampejante
renovação
de mais um dêsses embriagadores remolinhos
de fortuna, de engano e de prazer em
que o aturdido Silveira estava disposto agora a
deixar-se envolver, pronta e avassaladoramente.
[374]
Ora, justo no dia seguinte, primeira terça-feira
do mês, os Wimeyer recebiam. Às 6 da
tarde, lá estava pontualmente o Silveira à
portita
discreta e esguia dêsse modesto
rés-do-chão da
calle Paraguay. Desta vez a criada,
sem hesitar,
abriu logo o batente da porta envidraçada,
dando afável o passo ao visitante, que se encontrou
num escuro e enfadonho
hall, de teto
envidraçado, onde êle poisou o chapéu e
a bengala,
passando logo, à esquerda, ao salãosinho
da frente, que dava para a rua. Aí, sôbre um
coçado sofá, no logar de cerimónia,
espapavam-se
duas assaz ponderáveis matronas, amplas
e obêsas, de negro, com muitos bandós e
pérolas, atendidas solícitamente pela dona da
casa. E não havia mais senão, um pouco
à
parte, junto ao piano fechado prudencialmente,
duas raparigas vestidas de claro, ambas dum
córte igual, em pé e com o exíguo
ventre em
abandôno à frente, os ombros ladeiros,―cuja
frívola atenção Irene e Dolores
buscavam maquinalmente
prender, mostrando-lhes num convencional
agrado um jornal de modas, que as
duas delambidas olhavam como por demais, de
pálpebras froixas, o longo narizito afilando enjoado
no rosto impertinente.
Fez naturalmente sensação a imprevista entrada
do Silveira, cortando assim de improviso
a sorna frialdade do pequeno círculo feminino.
D. Catalina festejou-o muito, dando-lhe com
marcada alegria as bôas-vindas, e logo, com o
seu ar repousado e lânguido de sempre, apresentando-o
[375]
às duas bisarmais amigas. A seguir,
o Silveira dirigiu-se a cortejar o apartado grupo
das quatro jovens, que lhe acenavam com sorrisos;
e então, ao defrontar-se com Irene, estremeceu
e sentiu que lhe banhava a espinha um
frio de estranheza. Olhava, olhava e não queria
crêr... Estava mais alta, mais dura e mais
forte, engrossára deplorávelmente. Parecia-lhe
outra, desagradava-lhe, desconhecia-a... Já D.
Catalina o chamava afectuosamente, ageitando-lhe
cadeira a seu lado, e o desencantado Silveira
não conseguia confortar-se do seu desgôsto
nem repôr-se do seu espanto. Sofria a
mais amarga e dolorosa decepção! Que era feito
então dessa alada e fugidía figura de
há dois
meses antes? que lance cruel do azar ou que
tirania estúpida de raça lhe haviam assim
desfeito
o encanto ideal dessa visão bemdita, durante
a viagem?... Êle estava a ver! perdera a
sua linha fidalga, aquele soberbo ar de
palmeira
imperial, na sua aérea esbeltez, na sua
altívola
frescura... Tinha agora uns ombros quadrados
e roliços, um pulso de cavador, uma anca rotundamente
animal, espatinados os seios, a pele
ardída, as feições empastadas e sob o
queixo
fazia refêgos. Como fôra aquilo, em tam pouco
tempo?!
Entretanto, D. Catalina, sem poder dar-se
conta desta arreliadora surprêsa do Silveira, carinhosamente
interpelava-o:―Como tinha êle
passado durante todo aquele tempo? E Buenos-Aires
que lhe parecia?―Impaciente e distraído,
[376]
o Silveira arrastava quaisquer vagas banalidades.
E logo mui dulcerosa a mãe Wimeyer:―Que
êles é que nunca poderiam esquecer tam
bom amigo. Falavam nêle todos os dias... E
que haviam recêm-chegado. Dolores estivera
com o pai em Salta. Irene, não! essa era mais
regalona, acompanhára a
mãe no Tigre.
―Nunca o vimos por lá...―aqui acudiu naturalmente
Irene.―Todos os dias à espera!
Com o ar humilde e contrito, quáse vèxado,
o Silveira balbuciou―que, com efeito, confessava
o seu pecado... mas nunca tinha ido ao
Tigre.
―Como!? E ainda o diz?―reprimendou,
a fazer de agastada, a doutoral mãe de
Irene.―Não
podemos perdoar-lhe semelhante falta!
A nossa melhor estância de verão... Nem a
Suíça... Dito por todos!
―O Tigre é lindo!―acudiu com ênfase
uma das paparretas de junto do piano, aproximando-se.
―A minha filha deu-se muito bem por lá...―tornou
D. Catalina.―Erguia-se muito cedo,
todo o dia ao ar livre... pescava, montava a cavalo,
remava muito. Não vê como lhe fez bem?
Neste preciso momento, Irene aproximava-se
do Silveira e vinha oferecer-lhe uma chávena
de chá, còrando ligeiramente, com a sua habitual
singeleza. E posta assim, natural e simples,
diante dêle, revelava numa irrecusável
eloqùência
êsse subito e passivo avatar burguês da
sua figura.
[377]
Não era nada já a esquiva e patrícia
silhueta
ideal do
Almeria; antes, entre
tantos, um rebarbativo
exemplar mais de fêmea prolífica e segura.
Tomando enguiçado da bandejita a chávena,
o Silveira não podia no íntimo perdoar-lhe...
Os seus olhos agora repeliam-na, o seu
coração repudiava-a. Perdera para êle
todo o
interêsse. Sentia-se roubado.
Contudo, atencioso e galante por instinto,
dos lábios frios ia deixando, com importante
pausa e um pouco à tôa, escapar seus lisonjeiros
comentários
sôbre
a sociedade e a vida
porteña, frisando a tempo
a sua impressão e
déstramente sublinhando de admirativas frases o
tiroteio vago de perguntas com que o pequeno
círculo feminino o assediava,―tôdas agora em
interessado grupo rodeando-o, e as raparigas já
com desabusada familiaridade depois que souberam
que êle não era casado.
Foi quando pai Wimeyer entrou, e ao divisar
o Silveira, os seus olhitos claros chisparam
num guloso raio de alegria. Vinha invariávelmente
todo de negro, e sempre rosado, gordote,
apesar de bastante mais avelhentado. E logo,
com o seu ar didático e afável, adiantando-se:
―Oh, o nosso bom e simpático português
por cá! Finalmente... Já me tardava. Quanto
gôsto eu tenho!
O Silveira teve um mudo calafrio de terror;
e, num aberto desvanecimento, D. Catalina para
o marido:
―Diz que gosta imenso de Buenos-Aires.
[378] ―Promete radicar-se na Argentina,―acrescentou
Irene.
E dogmaticamente o dr. Justus:
―É o que deve fazer! Em estando mais
vinculado aqui, verá como se sente bem. A Argentina
é um país cativante, remunerador. Tem
o meu exemplo.
―E então que pode encontrar por'í uma
linda noiva...―lisonjeira interveio uma das arcáicas
bisarmas do sofá, em pancaditas suaves
de regalo sôbre o ventre.
―Encontra com certeza!―a mãe Wimeyer
sublinhou, num risinho inteligente.
―E em todo o caso―tornou com dulcerosa
intimativa o dr. Justus―as nossas prometidas
lições que não esqueçam.
―Quando vossa excelência quiser...―balbuciou
o Silveira com esfôrço, ante a estopante
ameaça empalidecendo.
―Não creia que a ideia inicial seja minha.
Não. Tem até graça... sugeriu-ma um
vélho
compatriota seu, filho da India, o dr. Gomes,
que eu em Lisboa conheci casualmente. Que
homem talentoso, raro, profundo, subtil! Era
uma figura estranha e insinuante, com os seus
agudos olhos de vidente, as suas atitudes estáticas
de
fakir, a sua cútis de
bronze oxidado, a
sua longa barba messiânica. Habitávamos a
mesma pensão, e aí sôbre coisas da alma
e do
espírito nós caturrávamos longamente.
E vai
êle então, que era um tuberculoso
irremissível,
ao morrer legou-me um precioso manuscrito
[379]
garatujado de números, fórmulas,
símbolos e
chavetas complicadas, que era a embrionária
génese do seu plano. Uma teoria genial! Tenho
que pô-la a claro.
―Pois sim...―atalhou benevolente a mãe
Wimeyer,―porêm, deves compreender que o
sr. Silveira terá coisas mais agradáveis que o
interessem. Na sua idade...
―Ainda um rapaz...―protectora reforçou
a dama suave do regalo.
―Há tempo p'ra tudo. Não é certo?
―Como não?―maquinalmente o Silveira
aquiesceu.
E como neste momento uma das grossas figuras
do sofá se erguesse para sair, êle despediu-se
tambêm, com a promessa de voltar pronto,
e deu-se pressa em alcançar a rua. Ansiava
por ver-se a salvo... dali bem longe. Ia na resoluta
disposição de tam cedo não voltar.
Desta
aziaga mansão de desencanto e horror concorriam
simultâneamente a distanciá-lo―a birra
pedagógica do pai e o engrossamento prosaico
da filha.
Chegado ao hotel, o Silveira encontrou um
cartão do conde Améglio, com duas linhas
amáveis
reclamando a sua presença.―Pedia-lhe
que passasse pelo local da sua exposição,
calle
Viamonte, e iriam depois a casa os dois tomar
chá, com a condessa.―A primeira impressão
foi de encantado alvorôço. Num sugestivo instante,
o seu insatisfeito apetite evocou, reviu e
enroscou-se à deliciosa imagem da irlandesa,
[380]
fazendo-lhe saltar nos nervos chispas lúbricas de
desejo. Porêm, ao mesmo tempo quáse, chamavam-no
ao telefone. Era Jorge Saavedra que lhe
anunciava o regresso, dêle e da família, do
campo, rogando-lhe por igual que aparecesse,
se, antes, êle mesmo não fôsse
visitá-lo.―Finalmente...
Ainda bem!―Nova e mais deliciosa
impressão lhe fez correr, pelos sentidos
em alarme, a grata e inesperada notícia.―Sim!
porque a volta dos Saavedras significava
que teria vindo tambêm Maria Mercedes. E êle
morria por tornar a vê-la... oh, a esta de
preferência
a tudo o mais! Era um vivo e complicado
demónio que, pela fórma mais
adorávelmente
despótica, se lhe instalára na vontade e lhe
monopolizára
a existência. Pois êle poderia lá viver
sem ela, ali, próximos e familiares os dois dentro
da mesma cidade, sob o mesmo azul carinhoso,
no mesmo ambiente perturbador, ao mesmo contacto
amigo! E, depois, tinha contas que ajustar
com ela... Havia uma deprimente situação
que liquidar entre os seus brios varonis e essa
criatura enigmática e divina. Assim duplamente
lho impunham o seu coração machucado e o
seu amor-próprio ferido.
Na tarde seguinte, querendo iniciar a sua
galante digressão pelo mais fácil, tomou o
Silveira
um auto e rodou para Viamonte, onde
entrou num pequenino salão térreo, decorado
com ricos móveis Renascença, pelas paredes
verdoengas um profuso mostruário de telas de
preço, porêm de gente deplorávelmente
vazio.
[381]
Na desconfortante solidão daquela fracassada armadilha
artística apenas, lenta e merencóreamente,
se movia o dono da casa,―uma baça
figura loira, de olhos claros de porcelana, barbicha
em ponta e lunetas, e o cabotino Améglio,
astutamente cingido ao crítico de arte de
La
Nación, a quem com loquaz intimativa, num
atropelado desbarato de grossos gestos e frases
feitas, buscava alarvemente encaminhar a
atenção e subornar o critério. E
depois que êste
partiu, o mesmo conde, agora absolutamente
só com o Silveira, e no íntimo vèxado
por aquela
evidenciação patente do seu rotundo insucesso,
contudo assumia atitudes de importância, e num
desvanecido ar superior, os olhos negligentes
na face cínica, passando a mão pelo cabelo,
atribuía, fátuo e altaneiro, o facto a um
mesquinho
concurso de causas bem inferiores ao
seu alto propósito. E enumerava com desdêm,―o
pouco adiantado da estação, a crise, a incultura
geral, o retraímento invejoso dos artistas,
a hostilidade surda da imprensa.
Passado pouco tempo, e ninguem havendo
a atender, os dois retiraram e dirigiram-se ao
pensionato pelintra que os Di Paoli ocupavam,
na Praça do Congresso. Aí, das paredes
roçadas
e encardidas, quáse totalmente nuas, apenas
agora pendiam, destacando sôbre uma medíocre
miuçalha industrial, uma pequena paìsagem
de realce e o bárbaro retrato da condessa.
Esta acolheu o Silveira naturalmente, com um
risinho afável mas sem calor, sem a mínima
demonstração
[382]
expansiva, com uma frieza exasperante,
fechada outra vez naquela expressão calma,
alheada e infantil que a bordo, era para o
insofrido galã o maior encanto e o melhor
estímulo.
Falaram ligeiramente sôbre uma quantidade
de coisas indiferentes e banais, o Silveira
fez o pitoresco relato da sua estada no campo;
e por fim, como o diálogo voltasse naturalmente
a recair sôbre a digressão artística do
conde e
o seu resultado económico, êste num
abandôno
de familiar confiança, manifestou ao amigo,―que,
devia dizer-lhe com franqueza, as coisas
não lhe corriam nada bem... Estava por completo
desalentado, não tinha vendido nada! Parecia-lhe
aquilo um país de pedantes e impostores.―E
numa autorevelação inconsciente:―Tudo
puro charlatanismo.
Parada,
parada, conforme
êles diziam... porêm no fundo nada de
quantioso, de firme, de sólido. Queria êle
saber?...
Êsse belo Corot que êle ali havia visto,
mandára-o, a pedido do milionário Spantuzzi,
o célebre coleccionador, a casa dêle, para o
estudar devagar, para se inteirar melhor, para
ver...―Cruzava indignado os braços.―Isto
havia dois meses. O tempo fôra passando...
Era pr'a considerá-lo vendido, não era
verdade?...
Pois que agora lhe devolvera o quadro,
com uma carta muito sêca, dizendo que afinal
Corot não era dos pintores da sua
predilecção,
e que já tinha três, e que por isso resolvera
não
comprar...
Abria numa irritação os braços, e
sacudindo
[383]
a cabeça com dignidade e erguendo-se,
acremente:
―E tudo o mais assim! Há três meses, apenas,
em Buenos-Aires e já gastei quinze mil francos.
E lucros nenhuns... Um pavor! Em má
hora vim aqui... Que tremenda desilusão! Vou
retirar breve seguramente.
Deplorando-o com sinceridade o Silveira, e
num instintivo terror aproximando a sua sorte
da do conde, tentava confortá-lo. Porêm,
súbito,
êste, aplacado, risonho e com afável singeleza,
a mão interesseira estendida à parede:
―O seu quadrito ali está... P'ra onde quere
que lho mande?
O Silveira estremeceu. Nem êle se lembrava
já... E contudo hão havia meio, agora, de
furtar-se
decorosamente àquela polida
insinuação,
que para o seu carácter valia uma
intimação formal.
Que enormidade iria êle cobrar-lhe? Alguns
dois ou três mil pêsos, estava a ver... Um
rombo muito sofrível no seu já tam reduzido
capital,
um saque não previsto que lhe desequilibrava
o orçamento. E é que não havia
remédio!...
Numa retracção íntima de terror,
êle increpava-se
duramente pela sua imbecilidade,
dava ao diabo o azarento acaso dêste conhecimento...
Porêm, breve, a sua proverbial imprevisão
a fazer-lhe bailar no espírito aquela
suculenta miragem das abóboras e dos melões
do lote n.º 13. Providencial
compensação! Que
importava o resto?... Ele poderia bem, já
agora, ajudar êste pobre diabo e burlar-se da
[384]
condessa... que a sua brilhante e áurea desforra
estava certa, depois. Questão de tempo... deixar
correr!
E com marcada sobranceria, ao despedir-se,
recomendou então ao conde, sem discutir o preço,
que lhe mandasse o quadrito ao hotel, com
a conta, no dia seguinte.
Queria ainda naquela tarde encontrar-se
com Jorge. Baldado empenho porêm, pelo momento;
pois que, tendo chegado ao hotel e telefonado
sucessivamente para casa dêle, para o
Circulo de Armas, para o
Jockey-Club e para o
Plaza, de parte nenhuma lhe davam
notícia dêle
nem sabiam dizer-lhe onde porventura se poderia
encontrar.―Estaria p'r'aí talvez na sessão
vermouth dalgum teatro barato. Mas
qual?...
Fôssem lá saber!―Ficaria o encontro
então
para a noite, sôbre o jantar. Disposto pacientemente
a esperar, o Silveira correu a coluna
de anúncios dos espectáculos, na
Prensa e viu
que naquela noite havia no
Palace
Théâtre uma
função em benefício de
La Caja Dotal de Obreras,
pia instituìção patrocinada pelas
damas da
primeira sociedade. Lá estaria certo o rapaz.
E possívelmente Maria Mercedes...
Alentado por êste desejo e enardecido por
esta esperança, logo que acabou de comer, o
Silveira saíu. Mal havia dado porêm, confiado
e quente, os primeiros passos, e logo à esquina
da
cuadra seguinte, ei-lo que se
defronta súbito
com Luísa... a qual buscou simular um encontro
de acaso, mas que, tímida e inexorável,
[385]
mais uma vez o estava dali espiando, seguramente.
O Silveira teve um claro sacudimento de arrelia,
e brusco e hostíl, plantado com dureza
frente à sua adorável e simples amiguita,
fitando-a
com império:
―Que fazes tu aqui!? que quere isto dizer?...―E
como a atónita rapariga se mantivesse
muda, numa compungida atitude de assombro,
os olhos baixos, a fria prega dos lábios
transida de amargura, êle na mesma clara dureza
tomou:―Não são horas e mais que horas
de recolheres a casa? Como vais agora entrar?
Luísa ergueu para o seu áspero censor os
grandes olhos, repassados de piedade, e após
uns segundos de embaraço, naturalmente:
―
Yo cambié de domicilio.
―O quê!? Deixaste essa bôa casa de
Tucumán?
Que fizeste tu por lá?
―
Yo nada, señor.
―Puseram-te na rua?
Ao golpe achincalhante da interpelação, a
pobre Luísa fez-se branca, torceu-se numa
contorsão
aflitiva, e logo, reagindo, a protestar com
suavidade, as mãos trémulas em magoada cruz
sôbre o peito:
―
Nada tienen que reprocharme alli, se lo
juro! Al contrario, las buenas madres eran bien
amigas mias.
―Nesse caso, então?...
Nova pausa, de eloqùente silêncio agora, e
logo ela, còrando, a segredar docemente:
[386] ―
Es que yo no podia pasar asi todas las
noches, sin verlo...
―Com efeito!―exclamou o Silveira, numa
fatuìdade sorridente.
―
La culpa es toda suya, ya
vé...
Insensível porêm o Silveira à
voluntária e
total abdicação desta alma:
―De sorte que te encontras agora aqui assim
à tuna, sem uma ocupação, sem
família, sem
casa nem abrigo?
―
Yo no le pido nada.
―Pois, meu rico amor, se vinhas co'a idéa
de entreter a noite comigo, perdeste o teu tempo.―E
como a desconfortada rapariga o envolvesse
numa fundente expressão de carinho
e ensaiasse um tímido gesto suplicante:―Não!
não! Vou com pressa. Tenho um compromisso.
Palavra!
―
Que compromiso mayor que el
nuestro?
―És tôla!
E no mesmo instante o Silveira, duro sempre
e insensível, jogado ao ímpeto do seu cobarde
egoísmo, voltou costas e seguiu caminho, deixando
a sua amantesita infeliz pregada e fria
como uma estátua, os lábios lívidos,
tolhida de
dôr e de vergonha, imobilizada de pasmo e de
tristeza.
Cortando logo para Corrientes, o arreliado
Silveira caminhava rápido e, a intervalos, voltava-se,
a inquirir se porventura, e a despeito
da sua formal negativa, êle não seria seguido.
Enfastiou-o de-véras o episódio. Incendeu-o
[387]
num furor pueril, que lhe punha asas nos pés, a
insistência piégas da rapariga.―Tam longe
êle
estava agora de semelhante coisa!―Três dias
havia que não sabia dela, buscando insensivelmente
furtar-se e fechar impunemente o ciclo de
mais esta fugaz aventura com o sêlo cómodo
do olvido.―Por que era uma maçada, no fim
de contas, a peganhice infantil dessa seresma!
Bôa rapariga, não havia dúvida... Mas
tambêm
as môças que êle, na sua terra, tivera a
sorte de
arrastar a uma torpêza igual, eram bôas como
esta... e mais dóceis, mais razoáveis. Sabiam
medir distâncias, compreendiam a
situação. A
breve trecho, eram elas as primeiras a anular-se...
voltavam ao que eram e não o importunavam
mais, conformavam-se sem lamúrias e
deixavam-no em descanso. Ao passo que agora
esta carraça... Em má hora lhe tinha acudido!―E
a biltraria recôndita do seu ânimo fortalecia-se.
Erguia a cabeça com jubiloso arreganho
e caminhava mais apressado. Porêm a espaços,
não obstante, se num claro de grata
recordação
a sua alma evocava a cândida imagem
de Luísa, crescia-lhe súbito no íntimo
uma onda
de condoída ternura, que o envolvia, que o
abrandava, que o fazia arrepender-se e parar no
caminho. E êle revia então, em num furor pueril,
que lhe punha asas nos pés, a
insistência piégas da rapariga.―Tam longe
êle
estava agora de semelhante coisa!―Três dias
havia que não sabia dela, buscando insensivelmente
furtar-se e fechar impunemente o ciclo de
mais esta fugaz aventura com o sêlo cómodo
do olvido.―Por que era uma maçada, no fim
de contas, a peganhice infantil dessa seresma!
Bôa rapariga, não havia dúvida... Mas
tambêm
as môças que êle, na sua terra, tivera a
sorte de
arrastar a uma torpêza igual, eram bôas como
esta... e mais dóceis, mais razoáveis. Sabiam
medir distâncias, compreendiam a
situação. A
breve trecho, eram elas as primeiras a anular-se...
voltavam ao que eram e não o importunavam
mais, conformavam-se sem lamúrias e
deixavam-no em descanso. Ao passo que agora
esta carraça... Em má hora lhe tinha acudido!―E
a biltraria recôndita do seu ânimo fortalecia-se.
Erguia a cabeça com jubiloso arreganho
e caminhava mais apressado. Porêm a espaços,
não obstante, se num claro de grata
recordação
a sua alma evocava a cândida imagem
de Luísa, crescia-lhe súbito no íntimo
uma onda
de condoída ternura, que o envolvia, que o
abrandava, que o fazia arrepender-se e parar no
caminho. E êle revia então, em todo o seu
incondicional
abandôno, em tôda a sua rústica
simpleza, essa esplêndida flôr do campo, a tinta
ardente da sua epiderme, o alçapão de desejos
que era a sua bôca, o lume de paixão espirrante
dos seus olhos cheios de fogo... e pensava.―Talvez
[388]
que esta sentisse mais e melhor que as
outras... Valeria mais que tôdas!
Esta quáse palpável evidência
perturbava-o.
Já perdia a noção exacta do rumo que
levava.
Entrou no vestíbulo do
Royal, tomando-o por
o
Palace
Théâtre; e por êste
passou desgarradamente,
uma e duas vezes, antes de reconhecê-lo.
Pesava-lhe na alma essa obsidiante luta
interior entre o apiedado alarme da sua consciência
e a farta repulsão do seu desejo......
NOTA FINAL
Abel Botelho, o artista ilustre que
às letras do seu
país
legou tantas páginas de inspiração e
de beleza, não teve
tempo de concluir o romance
Amor
Crioulo, escrito longe
da sua terra e da sua gente mas sempre com a
imaginação e
os olhos postos na Pátria distante. A morte colheu-o de
súbito,
paralisando para sempre a mão augusta que tam activamente
lidou e a lúcida inteligência que nunca se fatigou
de
combater, durante meio século de
esfôrço permanente e fecundo,
para atingir um ideal de perfeição suprema.
Analista subtil do coração humano,
psicólogo, moralista
pelo castigo áspero do sarcasmo, Abel Botelho desceu a
profundidades poucas vezes exploradas antes dêle, tentando
imprimir uma utilidade social à sua arte. A vasta obra que
nos deixou e em que a sua alta personalidade se perpetuará,
tem de ser tomada como uma lição, mesmo nos seus
aspectos
de mais cru realismo e na sua mais cruel expressão―que
fazem dela um flagrante documento da época e do meio
em que foi elaborada. Vista em conjunto―que é como deve
ser julgada pelos espíritos imparciais―há-de
necessáriamente
reconhecer-se-lhe um mérito estético e moral.
Os derradeiros capítulos que compôs, com tanta
ternura
e tanto relêvo artístico, foram estes do
Amor Crioulo, que os
seus Editores hoje lançam aos alaridos da publicidade para
que nada se perca de tudo quanto o romancista excelso produziu.
[390]
O livro ficou incompleto. Todas as pacientes buscas
encetadas, para se encontrar a parte final, em Lisboa, onde
Abel Botelho tinha a sua casa, e em Buenos-Ayres, onde êle
era o representante diplomático do Governo da
Rèpública
Portuguesa, foram infrutíferas. A doença
inesperada interrompêra,
certamente, o trabalho do escritor insigne, que a morte
não tardaria a eliminar da comédia da
existência. A acção do
romance estava em pleno desenvolvimento quando o braço
do seu autor caíu desfalecido. Adivinha-se, no entanto, o
desfecho
do
Amor Crioulo pela leitura dos
coloridos, nervosos
e movimentados episódios em que a sua tessitura se desenha
vigorosamente e o conflito sentimental se estabelece.
Publicando-o tal como lhes foi entregue, os Editores
contribuem com novos e valiosos subsídios para o estudo e
para a crítica da individualidade de Abel Botelho que, na
moderna literatura nacional, se afirmou com nobre superioridade.
A Escola realista entre nós poucas figuras mais elevadas
possue. Abel Botelho era um pintor por vastas massas,
dispondo duma paleta muito rica, um minucioso observador
da vida que à sua volta desenrolava maravilhosos
scenários
e que êle reproduzia com surpreendente fidelidade e um justo
conhecimento dos tons e dos valores.
Foi, em todo o caso, lamentável que não
terminasse êste
volume póstumo―porventura aquele em que pôs mais
devotado
carinho, mais emoção, mais orgulho de
raça, e que,
mesmo fragmentado, o denuncia como uma entidade representativa.
Nem ao menos pôde corrigir as provas em que os
escritores da sua rara estírpe dão sempre os
últimos retoques
de graça, de harmonia, de equilíbrio e de luz. A
elevada
honra dessa tarefa foi-me confiada a mim, procurando eu
desempenhá-la o melhor que me foi possível e
suprindo pela
vontade de acertar o que me falta em competência. Qualquer
êrro que no texto apareça terá,
portanto, de me ser imputado,
e não ao escritor modelar que tanto dignificou a sua
nacionalidade
nos luminosos domínios do pensamento e da arte.
Pôrto, 28 de julho de 1919.
João
Grave.
Lista de erros corrigidos
Aqui
encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
A pontuação em alguns casos foi
substituída (pontos
por vírgulas e dois pontos por
ponto&vígula, e vice-versa), conforme se verificava
errada a sua utilização.